Como são preconceituosos os Procuradores da República
Comentários misóginos. Alusão ao “sofrimento merecido” dos nordestinos. Discriminação contra usuários do SUS. Análise das conversas hackeadas da Lava Jato expõe o pensamento colonial dos que deveriam defender a população
Publicado 14/03/2024 às 18:35 - Atualizado 14/03/2024 às 18:36
Por João Batista Jr., na Piauí
Poucos temas mobilizaram tanto o Ministério Público Federal quanto a Operação Lava Jato, que tinha suas principais atividades centralizadas em Curitiba, mas braços em outras capitais. Mesmo procuradores que não faziam parte dos trabalhos se aproximavam da força-tarefa do Paraná, coordenada por Deltan Dallagnol, e trocavam ideias frequentes sobre as investigações. Muitos deram palpites até no texto da denúncia contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no episódio do tríplex do Guarujá, como mostrou reportagem da edição de março da piauí, a partir da leitura de aproximadamente 952.754 mensagens enviadas e recebidas no aplicativo Telegram do celular de Dallagnol.
Além de serem reveladoras sobre a operação, a análise das conversas frequentes sobre múltiplos assuntos permite entender um pouco o que pensam procuradores influentes a respeito de temas de interesse da sociedade civil.
Na tarde de 1º de dezembro de 2015, um dos grupos mais ativos entre os procuradores, o BD (de “brigada digital”), discutia metas fiscais e aumento de gastos públicos de forma genérica. O assunto esquentou quando Helio Telho, procurador do estado de Goiás, lançou mão de uma proposta com objetivo de economizar dinheiro público na área da saúde: “Se a pessoa quer fumar até pegar um câncer, devia lhe ser exigido renunciar ao direito de atendimento pelo SUS, notadamente ao de buscar, inclusive na Justiça, remédios de alto custo financiados com impostos pagos pelos outros cidadãos.” Seu colega José Robalinho Cavalcanti, lotado no Distrito Federal e nessa época presidente da Agência Nacional de Procuradores da República, usou ironia para rechaçar o comentário de Telho, em cinco mensagens sequenciais:
“Idem para tomar Coca-Cola. Idem para esportes radicais. Idem para todos os atos ditos não saudáveis. Mais ainda para as deficiências congênitas. Gastam muito. Minha mulher, que é diabética desde os 11, deveria ser presa se descontrolar a dieta rs. Desculpe, Hélio, mas prefiro não viver neste mundo. PS: Vamos banir as motocicletas. Que tal? Gastam hoje mais do que o fumo. Dos sistemas de saúde.” A procuradora Janice Ascari, de São Paulo, deu força. Lembrando dos malefícios do álcool, constatou: “Estaríamos todos em cana.”
Os argumentos foram contestados por Wellington Saraiva, procurador também pelo DF (e motociclista, segundo seu perfil no X, o antigo Twitter):
“Para motocicletas, já pagamos DPVAT altíssimo, muito maior do que o dos carros. A comparação é impertinente. Moto é meio de transporte, que tem risco (como carro, avião, elevador e escada rolante), mas não é necessariamente patogênica nem teratogênico [prejudicial ao embrião]. Cigarro é patogênico e teratogênico, além de desnecessário. Álcool também não é necessariamente patogênico. Em doses moderadas, é até saudável. Outra comparação impertinente.”
Robalinho rebateu: “E não acho impertinente não, mestre W. Posso citar dez comportamentos aceitos que fazem a indivíduos vários muito mais mal do que o cigarro à população em geral e são aceitos e até aplaudidos”, escreveu. Algumas mensagens a mais foram trocadas, até que o procurador Ailton Benedito de Souza, de Goiás, se manifestou em sobretaxar “quem fuma crack, maconha etc. Idem para quem pega HIV.”
O grupo levava a sigla de “brigada digital” por ser destinado a discutir temas a serem compartilhados nas redes sociais. Foi criado em 2013, quando os procuradores se organizaram para protestar contra a Proposta de Emenda à Constituição 37, que pretendia tirar o poder de investigação do Ministério Público. As discussões no campo do comportamento iam muito além e incluíam piadas duvidosas, como quando o procurador João Carlos de Carvalho Rocha, do Rio Grande do Sul, escreveu em março de 2015 no grupo Terra de Brutos: “Esse negócio de ser Gay, Lésbica, Botafoguense ou Transgênero é dureza. Rola muita incompreensão. Então respeito os caras”, em alusão aos empates em jogos com os times do Barra Mansa e Vasco da Gama, dias antes, pelo Campeonato Carioca.
Sem que nenhum integrante do grupo Terra de Brutos desse prosseguimento ao assunto, Telho quis expor sua visão sobre diversidade sexual: “50% irônico, 50% homofóbico, 100% matematicamente certo. A perpetuação da espécie depende do heterossexualismo.” Robalinho respondeu logo em seguida, para contestar a análise de seu colega e aprofundar o conceito de família. “Heterossexual convicto e absoluto que sou, ouso discordar rs. A perpetuação da espécie depende razoavelmente de relações sexuais heterossexuais esporádicas, sem contar hipóteses de inseminação artificial. Há inúmeros gays masculinos e femininos com filhos naturais; família é muito mais do que isso.” Robalinho ainda citou o Goiás de Telho, tradicional na agropecuária, em referência à inseminação artificial: “Nem todos os touros de raça pura e cara cobriram todas as vacas que tiveram filhos deles aí por Goiás, pois não? Rs.” Benedito de Souza se manifestou em defesa de Telho: “Robalovich, esses touros e esses vacas tampouco saem por aí praticando sexo homossexual bovino.”
Telho esticou a conversa (“Não dá para perpetuar espécie só com inseminação artificial”) para depois propor uma cota de heterossexuais no mundo para que a humanidade não entre em extinção: “Ademais, não me referi à família ou casamento. Me referia ao heterossexualismo. Se não houver um mínimo (uma cota) de heterossexualismo, a raça humana perecerá.”
Procurado pela piauí, Telho não se recorda das mensagens, diz não ser homofóbico e informa ter participado de uma Parada Gay no Rio ao lado de sua mulher. Ele também refuta ter sugerido que fumantes não pudessem ter acesso ao SUS. “Sem que eu possa ter acesso a todo o contexto, fica realmente difícil dizer algo. Não me lembro das mensagens, já faz muitos anos, sequer posso confirmá-las. O que eu posso dizer, lendo os trechos que você pinçou, é que a mensagem que você transcreveu não defende que o tabagismo não deva ser tratado pelo SUS, muito pelo contrário. Pessoas tabagistas que se recusam a tratar o tabagismo desenvolvem outras doenças cujo tratamento onera muito o SUS, é o que me parece dizer essa mensagem. Quanto à outra mensagem que você transcreveu, e de que também não me lembro e não posso confirmar, não me parece haver qualquer cunho homofóbico nela. Heterossexualidade e homossexualidade não são excludentes, ao contrário, podem e devem conviver e coexistir. Defender uma não significa excluir a outra. Só pensamentos binários é que interpretam que a defesa de um implica excluir o outro. Por exemplo, sou heterossexual e isso não me impediu de prestigiar e apoiar a parada LGBTQIA+ em Copacabana, em 2022, junto com minha mulher.”
Robalinho, ao ser questionado sobre o teor dessas mensagens, diz não recordar de memória.
O aborto virou tema de uma discussão acalorada no grupo BD. Foi quando compartilharam o link de uma reportagem sobre a ideia do deputado Laerte Bessa (PR-DF), relator do projeto de redução de maioridade penal na Câmara, que disse em entrevista para o jornal inglês The Guardian que no futuro será possível abortar quando se determinar, já no útero da mãe, se o feto tem tendências criminosas. O procurador Vladimir Aras, do Distrito Federal, viu nessa ideia bárbara uma desculpa de “abortistas para promover a lucrativa indústria do aborto”. Ailton Benedito mordeu a isca e começou a disparar mensagens sobre o assunto. Ele começou dizendo que as ações de planejamento familiar do SUS não têm eficácia alguma, para depois afirmar: “O estado nazista foi efetivo em minorar os desajustes.”
Benedito vai além em sua explicação ao lembrar que no nazismo aqueles que não eram arianos “deveriam ser eliminados, inclusive antes do nascimento”. O aborto dos potenciais “monstros”, para ele, é uma forma de praticar eugenia. O procurador sugere que pai e mãe que abandonam o filho devem receber dez chibatadas diárias em praça pública. Mas como essa medida não é possível, ele faz uma outra proposta: “Acabar com o Bolsa Família e todos os benefícios assistências que incentivam a procriação faria bem às famílias.”
Luiz Lessa, então, finaliza o assunto com ironia: “O boquete é a solução.”
Mulheres com projeção na política nacional eram alvo frequente de comentários machistas nos grupos de procuradores.
Ainda que Gilmar Mendes fosse o ministro do Supremo Tribunal Federal mais criticado nos grupos, Cármen Lúcia, então presidente do STF, recebeu os comentários mais ultrajantes. Em uma conversa, especulam sobre sua vida pessoal e o fato de não pintar o cabelo.
Livia Tinoco: Cármen Lúcia é franciscana. Mulher simples. De muita renúncia. Não tem filho para sustentar.
Janice Ascari: Nem gasta com cabeleireiro.
Lívia Tinoco: Nem com dentista. Tem uns dentes horríveis, Amarelos e tortos. Mereciam uma lente pra ajudar um pouco o sorriso. […] Já passou da hora de fazer um preenchimento e um botox
Janice Ascari: hahahahahahaha
Wellington Saraiva: Alguém sabe se é casada, já casou, teve união com qualquer nível de estabilidade e se tem filhos? Não que isso tenha relevância profissional, mas tem…
Lívia Tinoco: Eu gosto tanto da Cármen Lúcia. Acho ótima magistrada. Mas em matéria de cuidados corporais ela é péssima. Parece até ser anti-higiênica.
Janice Ascari: Galega, pegou pesado hahaha
Luiz Lessa: A quantidade de publicações indica que ela não teve tempo para romance.
No dia 24 de junho de 2015, o assunto era o famoso discurso em que Dilma saudou a mandioca (como item essencial da alimentação em território do povo brasileiro). A frase virou piada e deu munição a toda sorte de ironia. Ailton Benedito de Souza cravou: “Deve estar sempre sonhando acordada com a mandioca.”
Preconceitos de origem também surgiram depois da reeleição de Dilma Rousseff, puxada especialmente por votos da região Nordeste. Em julho de 2015, Benedito de Souza, mesmo em meio a colegas de todas as regiões do país no grupo, escreveu: “Por isso que não tenho pena dos nordestinos […] Quando os vejo sofrer pelas suas desgraças, considero-as merecidas.” Vladimir Aras, nascido em Salvador e integrante do Ministério Público Federal em Brasília, rebateu: “Menos, Ailton, menos.” Souza arrematou: “Apenas consequências das próprias escolhas, que somos todos livres para fazer.”
Em abril de 2016, o assunto foi o discurso de Janaína Paschoal na USP. Peterson de Paula Pereira disse: “Constrangedor… Caso de internação. Tivesse ali pulava em cima e chamava ambulância.” Helio Telho, fazendo joça, exclamou: “Pet, confesse. Você está querendo se perder com a Janaina!” Em seguida, Vladimir Aras elocubrou: “Imagina o marido dessa mulher como sofre.” Janice sugeriu: “Ela podia se candidatar a deputada. Ganhava fácil e as sessões iam ser bem divertidas. Podiam até criar a Bolsa Rivotril.”
Alvos da Lava Jato eram tema de piada. A procuradora Laura Tessler, de Curitiba, escreveu: “Diz que o sítio é mesmo do Lula. A primeira foto mostra uma 51!!!” Depois da prisão coercitiva de Lula, Luiz Lessa repetiu uma das troças que circulavam na internet: “Finalmente as piadas falando que o Lula é analfabeto vão acabar. Hoje Lula entrou na Federal!!” O próprio Lessa, no dia seguinte, chamou a falecida esposa de Lula, Marisa Letícia, “de tribufu do inferno stalinista”.
A piauí pediu entrevista a todos os procuradores citados, diretamente ou por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público Federal, mas apenas Telho, Saraiva e Robalinho falaram com a reportagem.
As conversas relatadas acima estão entre as mensagens que integram o acervo da Operação Spoofing, deflagrada pela Polícia Federal em julho de 2019. O objetivo dessa operação foi investigar o vazamento de contas de Telegram mantidas por participantes da Lava Jato, um escândalo que ficou conhecido como Vaza Jato. Divulgados em primeira mão pelo site Intercept Brasil, os lotes de mensagens vazadas por um hacker mostraram que os procuradores da Lava Jato – com Deltan Dallagnol à frente – faziam combinações com o então juiz Sergio Moro. Eles trocavam informações e acertavam planos de ação.
No final do ano passado, a reportagem da piauí teve acesso ao conteúdo integral das mais de 952 mil mensagens enviadas e recebidas pelo coordenador da força-tarefa, Deltan Dallagnol, entre maio de 2014 e abril de 2019. Com base nelas, foi publicada uma reportagem na edição de março da revista, que pode ser lida aqui, sobre as táticas e motivações de Dallagnol na operação.
Colaboraram Allan de Abreu, Felippe Aníbal, Lígia Mesquita, Matheus Pichonelli e Luiz Fernando Toledo
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