Redução da jornada de trabalho. Uma nova relação com o tempo. Entrevista especial com Ana Cláudia Cardoso | |||||||
Em ano eleitoral, a discussão em torno da redução da jornada de trabalho volta ao cenário nacional e, segundo a supervisora do Dieese, “o Brasil tem condições e necessidade para aderir à redução da jornada de trabalho”. A socióloga informa que o ganho de produtividade adquirido na última década pode ser utilizado, neste momento, para reduzir a jornada de trabalho, sem redução de salários. “Se observarmos o período de 1988 – quando ocorreu a última redução da jornada de trabalho - até 2008, percebemos que houve um ganho de produtividade de 84%, ou seja, um ganho que não foi distribuído para os salários”. Na entrevista que segue, concedida por telefone à IHU On-Line, Ana Cláudia frisa que a discussão em torno da redução da jornada de trabalho possibilita que todos tenham governabilidade de uma parte de seu tempo. “A redução da jornada faz com que as pessoas revejam seus valores. Não estou dizendo que esta medida tem unicamente o poder de transformar a realidade atual, mas ela possibilita a implementação de um processo de redução gradativa da jornada de trabalho para 40, 35, 30 horas. Ela nos ajuda a construir uma nova relação com o tempo de trabalho e tempo de não trabalho”. Ana Cláudia Moreira Cardoso é graduada em Ciências Sociais e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP. Também cursou o doutorado em Sociologia na USP e na Universidade de Paris 8, na França. Confira a entrevista. IHU On-Line - Como se configurou a construção social do tempo de trabalho até a concepção que temos nos dias atuais? Ana Cláudia Moreira Cardoso – Temos uma noção contemporânea de tempo de trabalho e de tempo de não trabalho – esses conceitos estão sempre juntos -, que é fruto do processo da Revolução Industrial. Se antes tínhamos um tempo de trabalho, onde os artesãos eram donos do seu tempo, no sentido de que a família toda trabalhava junta num determinado espaço e, portanto, definia aquele ambiente, a partir da Revolução Industrial, os trabalhadores vão perdendo seus meios de produção e a capacidade de gerir o seu próprio tempo. Antes da Revolução, existiam vários feriados católicos, as pessoas praticamente não trabalhavam no inverno ou quando estavam doentes. Com o processo da Revolução, isso foi mudando radicalmente e se passou a ter não só um espaço, como um tempo de trabalho determinado pelos trabalhadores e pelo empregador. Parece que o processo da Revolução Industrial foi simples, que os capitalistas implementaram um novo tempo de trabalho, e os trabalhadores aceitaram. Mas não foi nada disso. Como todo processo de construção social, ele implica em lutas longas, com resistência, argumentos e uso da violência. Foi um longo processo de disputa em torno do tempo, onde os trabalhadores continuavam a buscar uma liberdade de uso do seu tempo, e o capital foi demonstrando que, já que os operários não detinham os meios de produção, eles também não tinham mais liberdade sobre o seu próprio tempo. Podemos observar no livro de Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, que não adiantava pagar pouco aos trabalhadores para obrigá-los a trabalharem todos os dias. Na realidade, era necessário refazer o processo de educação dos trabalhadores para que o trabalho passasse a ser visto como uma ética: a ética do trabalho. Então, passou-se a pagar muito pouco para que eles fossem à fábrica todos os dias e, assim, iniciou um processo de ressocialização.
Thompson mostra, em seus textos, qual foi o papel da escola nesse processo de construção do novo tempo de trabalho. A escola serviu como um espaço onde as crianças aprendiam a questão da disciplina, do horário, da importância do trabalho. Ao mesmo tempo, a Igreja desvalorizava o ócio, o não trabalho. Então, esse foi um processo muito complexo que envolveu e ainda envolve várias instituições: a Igreja, a fábrica, a escola e a própria família. Assim, o trabalho acaba se transformando num valor aceito por todos. Paul Lafargue, em O Direito à Preguiça, fala que os trabalhadores já incutiram e aceitaram a ética do trabalho. Portanto, eles podem até brigar para reduzir a jornada, mas não colocam mais em discussão a existência do tempo que deve ser dedicado ao trabalho. É evidente que há uma construção social e histórica da institucionalização desse tempo de trabalho e não trabalho, mas em cada país ocorreu um processo específico e diferenciado. IHU On-Line - Como ocorreu a institucionalização do tempo de trabalho no Brasil? Ana Cláudia Moreira Cardoso – No Brasil, tivemos um processo de socialização do tempo de trabalho que também envolveu a ação governamental, a ação dos capitalistas, o espaço da escola e inclusive a questão cultural. Por incrível que pareça, as marchinhas de carnaval de uma determinada época valorizavam o trabalho e desvalorizavam a vagabundagem, o ócio, e tentavam colocar à margem da sociedade todos aqueles que não aceitavam trabalhar todos os dias e cumprir uma jornada. Se pensarmos no caso das vilas operárias, que eram muito comuns no nordeste, na região sul e sudeste, esse controle do tempo se dava não apenas dentro da fábrica, mas também fora dela. Além da jornada fixa, os trabalhadores podiam ser chamados a realizar hora extra a qualquer momento do dia. A pressão era muito mais forte, porque o trabalhador sabia que se não realizasse hora extra, podia não só perder o emprego, mas a moradia. Então, a pressão para que o trabalhador cumprisse uma jornada foi muito forte em todos os espaços que podemos imaginar, desde o ponto de vista político, com a criação de uma legislação na época de Getúlio Vargas. Quando se criou a legislação sobre o descanso semanal remunerado, ela estava vinculada ao fato de o operário ter trabalhado durante toda a semana. Então, foi feito de tudo para que ele se convencesse dessa necessidade de trabalhar todos os dias.
IHU On-Line - Que fatos indicam que o Brasil apresenta condições para implementar a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais? Ana Cláudia Moreira Cardoso – Sempre falamos que o Brasil tem condições e necessidade para implementar a redução da jornada de trabalho. A necessidade é porque o país tem uma das maiores jornadas de trabalho do mundo. Se pensarmos do ponto de vista financeiro – porque a proposta é redução da jornada de trabalho sem redução de salário –, o Brasil também é um dos países que apresenta uma das piores distribuições de renda. A redução da jornada sem a redução de salários serve como um instrumento de distribuição de renda, ou seja, mais um fator que mostra que temos a necessidade de diminuir a carga horária sem redução de salário. Outra questão que explicita ainda a necessidade é justamente porque o peso dos salários no custo total de produção do Brasil é muito baixo: algo em torno de 22%, de acordo com os dados da Confederação Nacional da Indústria – CNI. Isso significa que de 100% que o empregador gasta na produção de uma mercadoria, apenas 22% se refere a salário. Se temos uma redução da jornada de trabalho de 9,9%, ou seja, de 44 para 40 horas, e se jogarmos esses 9,9% nos 22%, teremos um aumento de custo de apenas 1,99%. Isso mostra que o Brasil tem condições e necessidade para ter a redução da jornada de trabalho. E significa também que as empresas terão um aumento de custo de apenas 1,99%. Ao mesmo tempo, quando dizemos que o Brasil tem condições é porque estamos considerando também os dados de produtividade. Então, segundo o IBGE, se observarmos o período de 1988 – quando ocorreu a última redução da jornada de trabalho - até 2008, percebemos que houve um ganho de produtividade de 84%, ou seja, um ganho que não foi distribuído para os salários. Isso demonstra que temos uma “gordura” de produtividade que pode ser tranquilamente utilizada neste momento para reduzir a jornada de trabalho. O setor empresarial alega que o custo dos salários do Brasil é muito alto, mas se compararmos com o de outros países, ele é muito baixo. Segundo informações do Departamento de Trabalho Americano, publicadas em 2007, percebemos que o custo horário da mão-de-obra do Brasil é de 5,96 dólares. Em países como os EUA, esse número passa para 24,59; Japão, 19,75; Singapura, 8,35; Portugal, 8,27. Esse argumento do setor patronal não se justifica, porque tivemos ganhos de produtividade e temos um custo baixo de salário no país.
Jornada de trabalho Quando pensamos a jornada de trabalho, temos que considerar a jornada normal de trabalho e a hora extra. É comum fazer comparações entre o tempo de trabalho do Brasil e o de outros países. Mas como eles comparam? Pegam a jornada total dos outros países, ou seja, o tempo normal mais a hora extra e comparam só com a nossa carga horária normal, que é de 44h. Depois, dizem que no Brasil temos uma jornada menor, mas essa é uma comparação errônea. No país, de fato, existe uma das maiores jornadas do mundo, porque ela é longa e não temos uma limitação da hora extra semanal, mensal ou anual. A única coisa que existe é uma limitação diária da jornada de trabalho, que são duas horas por dia. Mas se os trabalhadores fizerem essas duas horas a mais de trabalho por dia, podemos chegar ao final do ano com 2880 horas/ano só de hora extra. Esse é outro problema. Por isso, a campanha atual pela redução da jornada de trabalho inclui não só a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas, mas também a limitação da hora extra. Em vários países como Argentina, Uruguai, Alemanha e França, há uma limitação de hora extra anual. No Brasil, perdeu-se a noção de hora extra, porque ela virou uma hora cotidiana. Segundo os dados do Dieese, 40% dos trabalhadores assalariados realizam hora extra; no setor do comércio, esse número avança para 60%. Do ponto de vista quantitativo, trabalha-se muito. Além disso, temos uma cultura do trabalho. De uma forma geral, as pessoas acham bonito dizer que trabalham demais, elas gostam e têm prazer em dizer que não dispõem de tempo para descansar, tirar férias. Então, há uma combinação desse valor do trabalho e, ao mesmo tempo, o medo do trabalhador de perder o emprego. IHU On-Line - Quais são as implicações sociológicas e culturais da redução da jornada de trabalho? Ana Cláudia Moreira Cardoso – No meu livro Tempos de trabalho e tempos de não trabalho, faço a combinação dessas duas perspectivas, porque o problema é que, às vezes, estudamos apenas o tempo de trabalho sem pensar nas implicações para o tempo de não trabalho. Por isso, tento fazer essa vinculação, porque, afinal de contas, nós, trabalhadores, vivemos as nossas 24 horas do dia sem separação. Uma das implicações pode ser vista do ponto de vista macroeconômico, e diz respeito à geração de emprego. Então, se há uma redução da jornada de trabalho, sem redução de salário, cria-se um potencial de geração de emprego muito alto. Novos empregos geram mais dinheiro circulando na economia, o que significa consumo e uma produção maior. Do ponto de vista estritamente econômico, se criaria o que podemos chamar de um ciclo virtuoso da economia. Além disso, existe uma discussão de que as pessoas têm dedicado muito tempo ao trabalho. Com isso, o restante do tempo de suas vidas fica de lado. A própria possibilidade de se dedicar ao estudo, à família, à vida política é limitada. Então, a redução da jornada de trabalho possibilita que as pessoas, pelo menos, tenham governabilidade de uma parte de seu tempo. Isso começa a criar também outro valor: sim, de fato, é importante dedicar um tempo ao trabalho, mas também é muito importante dedicar um tempo a outras atividades. As pessoas não podem ter vergonha se, em um determinado dia, não forem trabalhar porque decidiram estudar, porque precisam levar o filho no médico, ou porque querem ir ao cinema.
Lembro que, na época das negociações da abertura do comércio aos domingos, o setor patronal argumentou que as pessoas não tinham mais tempo de fazer compras durante a semana, que precisavam comprar nos finais de semana. Do ponto de vista social, isso é uma loucura: as pessoas trabalham muito durante a semana. Não sei se todos estão percebendo, mas o sábado está perdendo um pouco o significado de final de semana. Essa é uma mudança lenta, que não percebemos e, por fim, achamos natural. Como é normal trabalhar aos sábados, sobra apenas o domingo para fazer compras. Por incrível que pareça, algumas pessoas já estão fazendo exames de saúde aos domingos. A redução da jornada faz com que as pessoas revejam seus valores. Não estou dizendo que esta medida tem unicamente o poder de transformar a realidade atual, mas ela possibilita a implementação de um processo de redução gradativa da jornada de trabalho para 40, 35, 30 horas. Ela nos ajuda a construir uma nova relação com o tempo de trabalho e tempo de não trabalho. No caso das mulheres, a redução da jornada de trabalho tem um impacto muito positivo no que se refere a buscar uma distribuição equitativa do tempo dedicado ao trabalho doméstico e ao cuidado dos filhos. Esse foi um debate muito forte na França, no período de discussão da redução da jornada. De qualquer modo, não podemos nos iludir de que a redução da jornada de trabalho vai possibilitar, por si só, que os homens dediquem mais tempo ao trabalho doméstico ou ao cuidado dos filhos. Na realidade, deveríamos fazer uma ação conjunta, reduzir a jornada e, ao mesmo tempo, mostrar a necessidade dessa distribuição equitativa das tarefas domésticas. Ana Cláudia Moreira Cardoso – Agora vamos olhar para os jovens. A dificuldade que os jovens estão encontrando para entrar no mercado de trabalho formal os está obrigando a desenvolver uma nova mentalidade em relação ao trabalho, porque se eles valorizam demais a atividade formal e não conseguem ingressar nesse campo, entrarão numa frustração monstruosa. Então, até como uma defesa, os jovens vão dando um novo significado para o trabalho. Eles continuam valorizando-o, mas também estão podendo significar os outros tempos da sua vida. Penso que temos muito a aprender com essa nova geração. Claro que estou falando da classe média, porque as pessoas que precisam de dinheiro todo mês para sobreviver tentam qualquer outra atividade que garanta uma remuneração. Penso que essa é uma redução gradativa da jornada, por isso, ela tem de vir combinada com a não-redução do salário, porque as pessoas não devem buscar mais salário. Esse será um processo de longo prazo e, aos poucos, as pessoas terão a oportunidade de aproveitar o tempo livre.
Entrevistei vários aposentados da Volkswagen e, de fato, quando eles se aposentavam, não sabiam o que fazer com o tempo livre. Esses eram casos radicais, porque eles saíam de um tempo de trabalho que ocupava praticamente 10 horas de suas vidas e, de repente, estavam num outro extremo que era não ter nenhum tempo dedicado ao trabalho. É evidente que isso causou e causa muito problema aos aposentados, porque é uma mudança radical. Essa redução da jornada de trabalho que estamos vivendo hoje vai possibilitando que, com o tempo, as pessoas possam olhar para o lado. Os médicos já estão conseguindo entender a saúde a partir de outra perspectiva, reconhecendo que o excesso de trabalho tem implicado em muitos males para o trabalhador. Lentamente, estamos construindo essa possibilidade de usar e valorizar outro tempo para além do tempo de trabalho. IHU On-Line - Recentemente professores reivindicaram recebimento de hora extra por trabalhar de casa, postando notas em redes sociais como Twitter, atualizando blogs, respondendo e-mails de alunos. Como conciliar redução de jornada de trabalho, considerando o avanço da Internet? Ana Cláudia Moreira Cardoso – Essa foi uma discussão que fiz no meu livro, ou seja, o cuidado para não substituir o tempo. Durante o período em que estive na França, vários autores estavam mostrando que, se no processo de Revolução Industrial se teve uma “separação” entre o tempo/espaço de trabalho (na fábrica), e tempo/espaço de não trabalho (na residência), hoje acontece um processo de aproximação. De fato, as pessoas passam a não ter uma linha divisória tão marcante. Pelo contrário, esses tempos e espaços se misturam. As pessoas estão em casa com o notebook e acesso à Internet. O empregador envia um e-mail e o empregado deve responder em seguida. Estamos perdendo a noção do que é um tempo/espaço de não trabalho, ou seja, a casa está se transformando num espaço de trabalho, mas não como na época dos artesãos, antes da Revolução Industrial. Naquele momento, eles tinham governabilidade sobre o seu tempo. Agora, nesse trabalho que engole a casa, o trabalhador não tem o menor controle sobre ele. Então, sem dúvida, esse é um debate que a academia poderia fomentar, escrevendo mais sobre o assunto. Quando as pessoas estão vivendo uma situação, raras vezes elas refletem sobre as suas vivências. A universidade tem o papel de mostrar os riscos, estudar quanto tempo os professores dedicam fora do local de trabalho, fazer estudos sobre várias categorias profissionais para explicitar o que está acontecendo, mostrando que, de fato, o tempo dedicado ao trabalho é muito maior do que a jornada de trabalho.
IHU On-Line - Quais são os principais entraves para se chegar a um acordo sobre a redução da jornada de trabalho? E quais são hoje as questões mais delicadas entre empregadores e empregados? Ana Cláudia Moreira Cardoso – Essa é uma questão histórica. Em nenhum momento, o setor empresarial capitalista propôs para os trabalhadores uma redução da jornada de trabalho. Em todos os momentos, ocorreram lutas acirradas, porque o objetivo do capitalismo é ter lucros, portanto, ele vai sempre se colocar contrário ao aumento de salários e à redução da jornada de trabalho. No caso do Brasil sempre foi assim. No ano retrasado, quando houve o aumento do salário mínimo, o argumento patronal era de que ele levaria as empresas à falência e com isso elas demitiriam mais. Tivemos o aumento e nenhuma empresa fechou. Além do mais, o aumento do salário mínimo foi um dos fatores que ajudou o Brasil a sair da crise. Então, no que se refere à redução da jornada, o setor argumenta que as empresas irão falir. Sabemos que isso não é verdade. Em 1988, quando tivemos a redução da jornada sem redução de salário, nenhuma empresa quebrou por esse motivo e tampouco vai quebrar agora. Essa não é uma discussão que leva em conta argumentos, e sim quem tem mais poder, além de qual será a posição do governo. Foi assim que ocorreu na França. O movimento sindical conquistou a redução da jornada de trabalho porque era uma proposta de campanha do governo. A relação entre trabalho e capital é desigual. Estamos num momento de correlação de forças. Se o movimento sindical não tiver muita força e organização, não conseguirá conquistar a redução defendida. |
Carlos Augusto de Araujo Dória, 82 anos, economista, nacionalista, socialista, lulista, budista, gaitista, blogueiro, espírita, membro da Igreja Messiânica, tricolor, anistiado político, ex-empregado da Petrobras. Um defensor da justiça social, da preservação do meio ambiente, da Petrobras e das causas nacionalistas.
sábado, 20 de fevereiro de 2010
TRABALHO - entrevista com supervisora do Dieese.
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