Pepe Mujica: Vale a pena ter uma causa para viver | Entrevista Margem Esquerda
Em conversa com Emir Sader para a revista Margem Esquerda, o velho tupamaro falou do tempo na guerrilha até sua rotina atual, após a renúncia à cadeira no Senado, além de comentar sobre suas leituras e da admiração por Rosa Luxemburgo, de seus desafios como presidente e da importância de fomentar novas lideranças e a esperança nos jovens.
Publicado em 03/05/2024 // 1 comentário
Confira abaixo a entrevista de Pepe Mujica à Margem Esquerda. O velho tupamaro falou do tempo na guerrilha até sua rotina atual, após a renúncia à cadeira no Senado, além de comentar sobre suas leituras e da admiração por Rosa Luxemburgo, de seus desafios como presidente e da importância de fomentar novas lideranças e a esperança nos jovens em conversa com Emir Sader para o n.36 da revista, publicado no 1º semestre de 2021.
Emir Sader entrevista Pepe Mujica
Apresentação
José Alberto Mujica Cordano, o Pepe Mujica, é uma das vozes mais importantes da esquerda latino-americana. Líder Tupamaro, preso durante catorze anos, foi ministro, senador e presidente do Uruguai de 2010 a 2015. Reeleito senador, em outubro de 2020, em meio à pandemia de covid-19, renuncia ao mandato aos 85 anos, mas ressalva ao jornal argentino La Nación: “Vou para casa, mas não saio da política”.
O chacareiro, como se autodefine, começa a se insurgir contra as injustiças da sociedade já na adolescência e dá seu primeiro voto, aos dezoito anos, para o Partido Socialista. Vivendo em um bairro de trabalhadores, em sua maioria da indústria de carne, foi inevitável a politização da vida. Inquieto e produto de uma geração que olhava o mundo, foi diretamente influenciado pelas revoluções que se desencadearam naquele período, como a argelina, a cubana, a guerra de libertação do Vietnã etc. Era o período do desdobramento dos golpes de Estado na América Latina, e Mujica, juntamente com outros camaradas, pensava em dar força consequente às muitas movimentações e greves operárias que se sucediam no Uruguai, visando fazê-las avançar para além das meras reivindicações econômicas e imediatas. Muito influenciado por Lênin, adere, em 1967, ao grupo guerrilheiro MLN-Tupamaros e participa de ações revolucionárias, como a Tomada de Pango, em 8 de outubro de 1969, para registrar um protesto militante pela morte de Che Guevara. Foi ferido por seis tiros e preso quatro vezes; em duas consegue fugir da prisão de modo cinematográfico, juntamente com outros camaradas, mas é novamente preso e permanece na cadeia por anos, resistindo a um isolamento desesperador.
Esse grande protagonista da história uruguaia e latino-americana, quando sai da cadeia, ajuda a reorganizar os velhos camaradas dispersos do MLN-Tupamaros e, juntamente com centenas de remanescentes de outras organizações guerrilheiras, funda o Movimento de Participação Popular (MPP), que adere à Frente Ampla, com foco nas ações cumulativas que pudessem criar as condições para a ruptura socialista. Para concorrer à presidência do Uruguai, Mujica se desfilia do MPP e assume o projeto da Frente Ampla de reformas sociais e aprofundamento de direitos cidadãos. Foi um presidente que manteve residência, com a companheira Lucía Topolansky, em sua chácara e continuou dirigindo um Fusca 1978.
Esta entrevista, concedida de sua casa, nas “aforas de Montevidéu”, ao sociólogo Emir Sader, revela facetas pouco conhecidas desse velho combatente uruguaio, militante de esquerda e político singular – no âmbito da tradição ritualística dos políticos contemporâneos, por seu despojamento e simplicidade pessoal –, a luta contra a ditadura, assim como suas influências intelectuais, seus pontos de vista sobre a esquerda latino-americana e a crença em um futuro mais justo.
Margem Esquerda – Como está a sua rotina após a saída do Senado?
José Mujica – Sempre fazendo alguma coisa, militando. Pertenço a um grupo que tem mais da metade dos legisladores da Frente. O Parlamento do Uruguai tem 99 representantes. Nós temos 24 no nosso bloco. A Frente tem 43 representantes e estou preocupado, porque tenho de ajudar a geração que está aí, o máximo possível. Porque os homens passam, as causas permanecem. A única solução é que haja uma nova geração que levante a bandeira e continue, e temos de ajudá-la. Essa é a minha preocupação e o meu trabalho hoje.
ME – Vamos voltar ao Uruguai adiante. Você falou do trabalho institucional. Queremos saber um pouco da sua trajetória. Como começou na militância política, onde e como?
JM – Faz muitos anos. Creio que eu tinha uns catorze anos e comecei a militar em um grupo estudantil de inclinação libertária e não parei mais. Meu primeiro voto, quando completei dezoito anos, foi no partido socialista do Uruguai. Naquela época havia dois partidos de esquerda: o Partido Socialista e o Partido Comunista, e os dois partidos tradicionais: o Blanco e o Colorado, que na realidade nunca foram partidos. Na verdade, eram frentes, com correntes um pouco mais populares e outras mais conservadoras. Esse é o segredo da política no Uruguai e, por isso, o que chamamos de Partido Nacional e Partido Colorado, na realidade, foram sempre frentes, por isso duraram tanto tempo e têm a idade do país. O que é uma coisa quase excepcional, pois se tivessem sido partidos rígidos, ao estilo europeu, talvez tivessem sucumbido.
Eu vivia num bairro onde também viviam muitos trabalhadores da indústria da carne, que era muito importante no Uruguai, e estava muito envolvido na luta dos sindicatos da federação da carne, que mais tarde viriam a confluir e fundar o que era a CNT, a central única de trabalhadores do Uruguai. E aí fui me politizando…
Quando mudaram as exportações, depois da década de 1950, o Uruguai sofreu uma crise como a da Argentina. Estava no governo o Partido Colorado, que ganhava eleições consecutivas havia mais de noventa anos e, pelos idos dos anos 1950, ganhou as eleições nacionais em todos os departamentos. Pintou o país de colorado. Quatro anos depois, perdeu o governo pela primeira vez depois de noventa e poucos anos, e perdeu todas as intendências, salvo uma, na fronteira com o Brasil. O que havia acontecido? O mundo estava se recuperando após a Segunda Guerra e, passada a Guerra da Coreia, as exportações caíram. Isso golpeou muito a região do rio da Prata. A mesma crise que tirou o Partido Colorado do governo aqui provocou a saída de Perón na Argentina. Uma queda vertical das exportações. Cada vez tinha de se pagar mais para comprar o mesmo. Diziam que éramos a “Suíça da América” e, a partir daí, viramos latino-americanos como todos… [Risos.] Resumindo essa história, o Uruguai era um país que, no princípio do século XX, tinha um governo que poderia ser classificado como social-democrata, que colocou em prática um conjunto de reformas que incrementaram o ensino público e pôs uma presença forte do Estado em alguns setores da economia.
Digo que, se o Uruguai fosse um país com 50 milhões de habitantes, a história política diria que a social-democracia foi fundada em 1910, porque naquele momento tivemos um governo que permitiu o voto feminino, o divórcio por vontade unilateral, reconheceu a jornada de trabalho de oito horas, reconheceu as organizações sindicais, implementou uma quantidade de reformas francamente progressistas para 1910-1914. Por isso, diziam que éramos a “Suíça da América”. Mas quando a bonança das exportações chegou ao fim, tudo isso acabou e os governos que vieram depois desse período começaram a ser cada vez mais conservadores e reacionários. Para ilustrar o que digo, quando cai o Partido Colorado, logo nos primeiros três meses do governo do Partido Nacional, o Uruguai assina o primeiro acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), e aí ficamos atrelados a eles até 2006, quanto a Frente Ampla chegou ao governo. Então, aprendi uma lição: quando uma sociedade está relativamente bem e cai de repente, sofre muito mais do que aqueles que estão acostumados a estar por baixo. Essa é a história da causa de fundo que vai determinar o que se passava na época. Mas o início da Revolução Argelina, a descolonização, a Revolução Cubana, tudo isso nos sacudiu no campo das ideias e, naturalmente, influenciou muito a nossa juventude e a nossa maneira de ver a realidade das condições do mundo. Isso foi naquela época dos golpes de Estado de matriz militar na América Latina, ou quase militar… E estávamos muito convencidos, e começamos a convencer os outros, inclusive a central de trabalhadores, de que o golpe de Estado deveria ser enfrentado com uma greve geral. Mas alguns de nós, de diferentes correntes de esquerda mais ou menos progressistas da época, vislumbrando a longa crise que viria por efeito dos golpes que ocorriam na América Latina, pensávamos que deveríamos transformar essa greve geral no Uruguai em uma verdadeira insurreição para superar o próprio sistema. Isso pode ser tido como uma gênese do que precedeu a fundação do Movimento de Libertação Nacional. Os Tupamaros eram uma organização armada que não tentava imitar outros modelos que havia na América Latina, mas queria criar uma organização que, quando chegasse o momento, pudesse transformar uma greve em uma resposta insurrecional. Mas aprendemos que, quando trabalhamos com fogo, sempre corremos o perigo de nos queimar. E o que devia permanecer conspirativamente em silêncio, em atos preparatórios, explodiu por acidente e começou uma dialética de ações e reações que ocupa boa parte da nossa história.
Se tem algo que devo criticar é que, quando chegou o golpe de Estado, estávamos destroçados. Porque uma greve geral não pode derrotar um exército, mas um povo organizado às vezes pode. Era um cenário que se passava em toda a América Latina, que era uma panela de pressão.
ME – O que foi a Tomada de Pando nesse cenário?
JM – Foi a tomada de uma cidade. Em homenagem ao aniversário de morte de Che Guevara. Não foi uma tentativa de insurreição, mas uma resposta armada em um momento preciso… Havia muitas greves no Uruguai, e o governo colocou em prática muitas medidas de segurança, o Parlamento estava amordaçado… Tínhamos um governo constitucional que agia à margem da Constituição. O golpe de Estado no Uruguai não aconteceu da noite para o dia, foi um processo que contou com a participação de forças civis importantes. Mas no fundo o que havia era uma profunda crise social.
O Uruguai tinha um Estado e uma legislação que, desde a década de 1940, previa a existência de um “Conselho de Salário”, quer dizer, cada grupo discutia com seus patrões, a cada dois anos, a condição salarial, e o governo atuava como mediador. E isso era uma questão quase religiosa. Sempre é importante recordar que o primeiro elemento de distribuição que existe em uma sociedade, não o único, mas o primeiro, é o salário; mas é preciso que os trabalhadores estejam organizados e respeitem a organização para poder negociar com os setores patronais. Isso incomodava muito. Esse, e uma quantidade de outros direitos que os trabalhadores haviam conquistado com muita luta, as condições econômicas não permitiam mais cumprir.
Vou dar outro exemplo. A indústria da carne era importante no Uruguai. O trabalhador da carne tinha conquistado o direito de ter dois quilos de carne por dezessete centavos. Mas a inflação acabou com isso, com o direito dos trabalhadores de ter assegurado o seu alimento. Isso custou uma luta infernal e foi tirado deles. Estou dando apenas um exemplo. Coisas parecidas aconteceram no sistema bancário. O Uruguai tinha um sistema bancário desproporcional para as nossas dimensões, porque havia uma ilusão burguesa de prosperidade com dinheiro obscuro vindo do Brasil, da Argentina, que passava por aqui e seguia para outro lado… Éramos uma espécie de praça financeira… Isso, em resumo, é um pouco da história das ações e reações de epicentros importantes, como um sindicato de cortadores de cana no Norte, do qual trabalhou comigo um companheiro hoje desaparecido. Foi o primeiro clandestino que tivemos etc. E, bom, assim foi a história…
ME – Você estudou, fez algum curso, qual a sua trajetória?
JM – Sim, fiz liceu e comecei o preparatório, depois abandonei. Mas, de alguma forma, segui estudando e pude contar com professores inesquecíveis. Don José Bergamín, que foi o último ministro da Cultura da Espanha e esteve exilado no Uruguai; don Paco Espínola e outras pessoas que influenciaram bastante a minha juventude.
Havia uma faculdade de humanidades que oferecia um curso de sociologia e outras disciplinas… Eu era pobre, mas naqueles anos… eu tinha dezoito ou dezenove anos, disciplinadamente passava de seis a sete horas por dia em uma biblioteca pública lendo, lendo e lendo. O que eu não sabia era que isso seria muito útil para mim mais tarde, quando não poderia ler.
ME – Que leituras mais influenciaram você nessa época?
JM – Veja, estudei e li um pouco de tudo. Sempre gostei de história, porque me interessava por política. Participei de um concurso quando estava no liceu, havia participantes de toda Montevidéu, e ganhei o prêmio, que foi um livro de história nacional cujo autor era um historiador chamado Jesualdo Sosa, que foi importante… As reformas artiguistas incluíram uma redistribuição importante de terra nos anos da guerra. As pessoas pobres tinham um regulamento da terra e isso, no Uruguai, ficou perdido sepultado na história. Isso foi redescoberto em uma biblioteca em Madri, porque as oligarquias tinham sepultado o assunto. Uma verdadeira reforma agrária realizada no meio de uma guerra, dando prioridade às pessoas pobres, em plena guerra, merece ser conhecida. Também em filosofia, conheci os filósofos do mundo clássico, mas, no momento, estou lendo Boécio, talvez o primeiro escolástico e o último romano [risos].
ME – Na formação marxista, quem mais influenciou você?
JM – Quem mais me influenciou foi Lênin. Descobri muito mais tarde Rosa Luxemburgo, cuja leitura me legou coisas maravilhosas. Não sei se essa senhora era bruxa, mas é incrível o que ela escrevia em 1917 e 1918; realmente foram presságios históricos.
ME – Quando houve o golpe no Uruguai, você já estava preso?
JM – Sim, efetivamente. O golpe foi chegando com governos mais conservadores e mais de direita. O golpe no Uruguai foi cívico-militar. Atribuem a responsabilidade aos militares, mas personagens civis de direita participaram do golpe. O nome mais importante do Partido Nacional naquele momento dirigia o Conselho de Governo que criou a ditadura, o do dr. Etchegoyen.
ME – Você se recorda como foi preso?
JM – Fui preso várias vezes. Escapei duas, e uma delas foi escavando um túnel com um companheiro, o que deu muito trabalho… Uma obra de arte.
ME – Em qual presídio?
JM – Foi em Punta Carretas, que agora foi transformado em um shopping. O capitalismo é notável, é capaz de transformar um cárcere num shopping.
ME – Você já foi ao shopping? Conseguiu lembrar onde era a sua cela?
JM – Tenho uma ideia, sim, mas ele agora está muito mudado.
ME – Saberia identificar qual loja ocupa o lugar de sua cela? Não tinha o nome de “Libertad”?
JM – Esse foi outro presídio. Libertad era um presídio que estava abandonado desde os anos 1930, inacabado. A ditadura terminou a construção muitos anos depois. Ficamos presos depois em vários outros quartéis no interior do país, e isso tinha uma função de ameaça, pois, se houvesse luta, seríamos executados.
ME – Você escapou duas vezes de Punta Carretas?
JM – Sim.
ME – Depois ficou quatorze anos preso em várias prisões?
JM – Sim. Estive dois anos em Libertad, depois estive preso em diferentes quartéis militares.
ME – Quanto tempo você ficou sem contato nenhum com pessoas ou sem poder ler?
JM – Fiquei seis, sete anos sem poder ler nada. Tinha uma visita da minha mãe a cada três ou quatro meses e ponto. Não tinha a ideia do que estava acontecendo no mundo.
ME – Um filme sobre sua vida retratou você e seus companheiros jogando xadrez por código Morse, dando pancadas na parede. Como conseguiram construir isso?
JM – Com paciência. Porque como os presos tinham de ir ao banheiro, acabávamos sempre encontrando um meio de nos comunicar, e começamos com golpes nas paredes e criando uma linguagem. Era difícil, mas o que mais tínhamos era tempo para isso.
ME – Você disse que se comunicava também com as formigas?
JM – Sim. Asseguro que, se você pegar uma formiga e colocá-la perto do ouvido, vai ouvi-la gritar. Isso eu aprendi no calabouço. Quando estive preso em Paso de Los Toros, guardava umas migalhas de pão porque havia uma ratazana que aparecia sempre lá por volta de uma ou duas horas da manhã e já estava acostumada a buscar alimento… Chegava a ter seis reunidas… Como o lugar era muito úmido, eu deixava vasilha de água para que pudessem tomar banho. Tudo que é vida em semelhante solidão ajuda e comove.
ME – Como você conseguiu sobreviver a tanto tempo isolado sem perder o equilíbrio psicológico?
JM – Fiquei mal. Aí me levaram a uma psiquiatra que me recomendou uma quantidade enorme de comprimidos, porque eu me queixava de uma dor, uma pressão no ouvido… mas era fruto da minha imaginação. Essa senhora que me atendeu me deu uma sensação de que estava pior do que eu. Foi então que consegui que me autorizassem a ler e a escrever… ler livros de ciências, física, química, e me dei ao trabalho de transcrevê-los, o que me ajudou, porque o meu pensamento estava excessivamente disperso. Quando voltei a escrever, voltei a dominá-lo e pude suportar a crise. Isso aconteceu uns quatro anos antes de eu sair.
ME – Você disse certa vez que, se não tivesse passado por isso, não seria quem você é hoje…
JM – Fiz perguntas a mim mesmo… Nós lutamos para mudar a sociedade, portanto trabalhamos com humanos; o que é ser humano? O que são os humanos do ponto de vista do que já temos registrado, do ponto de vista do que é inato? O que ocorre por obra da biologia e o que é adquirido? Questões como essa eu não podia responder no calabouço.
Então cheguei a uma conclusão que talvez quem possa iluminar isso seja a antropologia, porque nossas teorias políticas, nossa missão com o socialismo, me parecia que isso não podia ocorrer de forma abrupta, como o que é da nossa natureza. Quando fui libertado, me aproximei de alguns amigos antropólogos. Um deles morreu há pouco, com 97 anos, Daniel Vidar; e outro, que tinha dividido a cela comigo, Rezo Pi. Então comecei a ler tudo o que pude de antropologia. No entanto, ainda não tenho uma resposta clara para as coisas, mas muitas perguntas… A melhor coisa é a ciência do ser humano. Ciência do humano daquilo que somos. Somos instrumento do que nosso desenvolvimento nacionalista não possuía. Nem poderia tê-lo. O ser humano não é só programático, é outras coisas. E o capitalismo descobriu e trabalha sobre nossas emoções. Deixo uma mensagem para você. Há uma questão sobre a qual devemos nos debruçar: o homem não é só a razão. Claro que a razão importa, mas temos de entender outras questões que são muito mais complexas. Vamos em frente.
ME – Você disse que vive de maneira muito simples, porque o valor do trabalho é o tempo de vida que se entrega. Então, quando se ganha, quando se gasta, está se gastando tempo de vida. E se necessitamos de menos coisas somos mais livres… Não sei se estou sendo fiel às suas palavras…
JM – Sim. Eu defino que, do ponto de vista individual, a liberdade não é ruim ao livre-arbítrio. A liberdade é o tempo da nossa vida que gastamos nas coisas que nos fazem bem do ponto de vista emocional, das coisas que nos gratificam… que podem ser muito variadas, porque as inclinações humanas são diversas. Mas, se deixo que as necessidades materiais se multipliquem, coisas que hoje são um luxo, amanhã elas se tornam necessidades inadiáveis. E aí passamos toda a vida trabalhando para fazer frente às necessidades materiais, e então não sobra tempo para cultivar a minha liberdade, que é gastar o tempo da minha vida com as coisas que me motivam e de que eu gosto. Por isso, posso gastar meu tempo lendo Boécio. O mundo não vai mudar com isso, mas eu gosto.
ME – Como é o seu dia normal na chácara, agora que está com tempo livre?
JM – Sempre trabalho um pouco cultivando verduras para comer, cebolas… Plantar um pouco, enfim, isso tudo me entretém e eu me movimento um pouco. Não faço ginástica com 85 anos, mas faço algo com o meu corpo… A terra me encanta. Falo com a terra, falo com as plantas… Para mim tem magia e é parte da minha liberdade, porque gosto. Não me imponho nem tenho necessidades, busco a simplicidade por comodidade.
ME – No mundo contemporâneo há muitas coisas ruins, mas o que gostaria de saber é o que você aprecia atualmente?
JM – Creio que como tanta coisa do progresso humano existe uma face promissora e uma face de horror. A velocidade de comunicação e a possibilidade de informação é algo formidável. Um garoto andando na rua pode acessar uma universidade. Em contrapartida, existem empresas que sabem de nós mais do que nós mesmos. Nunca a liberdade interior das pessoas esteve tão em perigo. Agora estão em condição de usar e abusar da inteligência artificial, ter noção de cada uma das personalidades. E o mais impressionante é que não é que exista uma mente maléfica, isso quem faz é a inteligência artificial e põe a serviço da mente que a queira usar. Então aparece uma empresa como a Amazon… A partir de um histórico de compras de uma senhora no supermercado, a inteligência artificial conclui que ela está grávida, mas ela talvez nem saiba. Isso é um terror, serve para manipular eleições etc. E a liberdade começa a estar mais comprometida do que nunca. É um pesadelo.
ME – Em nosso continente, após uma primeira década de governos progressistas, vivemos uma retomada conservadora. Agora disputamos o que será a terceira década. A Argentina retomou, Bolívia também, Equador tenta fazê-lo, o Chile talvez se junte a eles. No Brasil estamos trabalhando para que um governo progressista retorne, com Lula ou alguém que ele indique. No Uruguai podemos pensar no retorno da Frente Ampla ao governo?
JM – Sim. Lutamos para isso. Mas temos de aprender uma lição. Creio que com muita dificuldade pudemos ajudar a melhorar o ingresso de muita gente que estava à margem do impacto material das nossas sociedades. Conseguimos melhorar a sorte de muitos consumidores, mas não necessariamente contribuímos para a formação de cidadãos e os fizemos entender que a melhora da sua vida é consequência de reformas e de lutas. Isso por um lado. Por outro, creio que há uma doença no mundo atual que é filha desta etapa de hipercapitalismo, que criou essa fé consumista, essa cultura consumista, que se impõe e que trata de fazer com que todo cidadão seja um voraz consumidor sempre inconformado, perseguindo uma felicidade hipotética comprando coisas novas que, em pouco tempo, não têm mais importância. Isso é um fenômeno. Também criaram uma cultura de descontentamento maciça. Como explicar que, na França, os velhos partidos praticamente desapareceram e aparece um dia a figura de um Macron, com um apoio formidável, e que se elege bem, mesmo com os amarelos nas ruas. Também não posso deixar de pensar que o México se transformou na esquerda do golpe. Estou entendendo que o povo está tendendo a votar contra os que estão no poder. Quer dizer, há uma dívida pendente com nós mesmos. Temos de criar uma consciência popular de que as reformas que ajudam a melhorar a vida das pessoas não caem do céu, mas que dependem do compromisso político que se tem com elas. Espero que os progressistas que vierem a seguir consigam e aprendam com as nossas falhas.
ME – Você foi presidente do Uruguai. Quais foram as experiências mais importantes que você teve como presidente do país?
JM – Primeiro, governar não é mandar. Governar é eleger soluções que favorecem uns e, inevitavelmente, prejudicam outros. Quer dizer, não se pode estar ao mesmo tempo com Deus e com o diabo. Isso gera conflito. Segundo, há limitações objetivas no mundo em que vivemos. A humanidade está vivendo uma crescente transnacionalização do grande ramo da economia e está passando por cima dos Estados. Aquilo que chamamos de burguesia nacional está sendo acordado e busca o rentismo, ou consegue associar-se, e acompanha o mundo transnacional. Estou convencido de que, se o Estado não participa como sócio, respaldando projetos nacionais e empresas nacionais, e, além disso, em vez de ser um Estado de recursos fiscais, começa a ser um Estado que cobra dividendos, ele não vai poder fazer frente a essa brutal tendência de crescimento da desigualdade no mundo contemporâneo. Presto muita atenção ao que acontece na China e no Vietnã. E ando me encontrando com essa realidade. São Estados muito fortes economicamente, porque são sócios do capital privado. Isso lhes dá garantia ao capital privado e à estabilidade, mas dá poucos recursos ao Estado para mitigar uma quantidade de problemas que o mercado é chamado a regular. Então, o problema que temos de discutir é… porque não creio que se possa criar o socialismo em sociedades pobres. Não que a sociedade rica venha a ser socialista, mas creio que a criação do socialismo supõe a massificação da formação universitária, da capacidade de sermos dirigentes de nós mesmos, de forma maciça. É um problema cultural que tem importância estratégica; e não podemos colocar a “carroça na frente dos bois”, mas o capitalismo terá de cumprir seus ciclos. Sigo pensando assim.
ME – Por último, dom Pepe, uma mensagem aos jovens que chegam à militância política, como você chegou tanto tempo atrás. Que mensagem dirigiria a eles?
JM – Veja, querido, o único milagre na terra para cada um de nós é termos nascido. Porque havia 30 milhões ou 40 milhões de possibilidades de termos nascido outra pessoa. Isso é um milagre. Após ter nascido, como a formiga e os girassóis, a grande pergunta é: qual é o sentido da vida? Se vivemos porque nascemos, nossa vida é estarmos condenados a sermos pagadores de contas, perseguindo uma felicidade hipotética? Ou a vida tem uma causa? E como a vida é um bem finito, vale a pena ter uma causa para viver, dar sentido a nossa própria vida. Os povos antigos se refugiavam numa religião. O homem é um animal utópico, necessita crer em algo. E a crença é que podemos ajudar a construir um mundo um pouco melhor do que aquele em que nascemos e que vale a pena gastar uma parte importante do tempo da nossa existência nessa luta. É o que tenho para dizer. Mas devemos recordar que nenhum cordeiro se salvou balindo. Nenhum triunfo é definitivo. Eu disse outro dia que triunfo na vida é voltar a se levantar e começar a se levantar cada vez que se cai. Porque isso dá sentido ao milagre de ter nascido.
Emir Sader é sociólogo e professor do Programa de Pós -Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde o Laboratório de Políticas Públicas. Autor, entre outros, de Estado e política em Marx (Boitempo, 2014).
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