Pensar após Gaza
Em um momento no qual ficam cada vez mais claras as relações orgânicas entre últimos anteparos da civilização ocidental e extermínio, últimos anteparos da democracia e catástrofe, vale a pena lembrar como os verdadeiros gestos revolucionários são esses que decidem puxar o freio de emergência.
Por Vladimir Safatle
Quando recebi o honroso convite de proferir a aula magna de nosso Departamento, eu inicialmente apresentei outro tópico de discussão. Minha ideia inicial era falar da tradição de pensamento crítico a qual me vinculei desde a época que era estudante de filosofia, ocupando o mesmo lugar que vocês ocupam agora. Refiro-me a essa tradição que mobilizou a dialética para compreender os impasses do processo de formação e desenvolvimento nacional, com suas defasagens entre ideia e efetividade.
Essa mesma que se dedicou de maneira rigorosa a repensar as potencialidades de orientação do pensamento crítico através da recuperação da lógica dialética exatamente no momento histórico em que essa mesma dialética era recusada nos países centrais do capitalismo global. Eu gostaria de falar das razões dessa interessante defasagem de uma tradição crítica que se constitui em um país periférico no exato momento em que a dialética era recusada como modelo crítico no outro lado do Atlântico.
Falar dessa defasagem para melhor pensar nosso lugar de pensamento, assim como as crises do presente e suas potencialidades de transformação. Essa era ainda minha forma de prestar homenagem ao trabalho superlativo desenvolvido em nosso Departamento por nomes como Paulo Arantes, Ruy Fausto, José Arthur Giannotti, além de Michel Löwy e, de uma forma mais distante, mas nem por isso menos importante na configuração desse debate, por Rubens Rodrigues Torres Filho e, principalmente, Bento Prado Júnior, a quem devo muito mais do que conseguiria expressar aqui. Nomes que espero que todos vocês possam conhecer e aprender a admirar.
No entanto, dias depois eu pedi ao Departamento para mudar o título de minha saudação a quem ingressa neste curso. Pode parecer inicialmente que tal mudança seria fruto do impacto relativo às questões mais prementes do noticiário, como se fosse uma capitulação da filosofia à leitura dos jornais. No entanto, ela diz respeito a algo de fundamental sobre o que afinal devemos compreender por “filosofia”. Essa mudança já é, a sua maneira, uma forma que encontrei de procurar realizar o que se espera de uma aula inaugural, a saber, certa reflexão sobre a natureza da atividade filosófica e a maneira singular com que cada um de nós a ela se vincula.
Michel Foucault um dia alertou contra aqueles que acabavam por compreender a filosofia como uma: “perpétua reduplicação de si mesma, um comentário infinito de seus próprios textos e sem relação a exterioridade alguma”.1 Como se fosse possível descrever o sistema de motivações de um texto filosófico simplesmente a partir das negociações com problemas herdados de outros textos filosóficos, em uma espécie de cadeia fechada de textualidades que atravessam o tempo como um bloco intocável. Como se fosse desejável ler textos filosóficos como quem procura explicitar suas ordens internas de razões, sem levar em conta sua responsividade a contextos sócio-históricos e acontecimentos.
Gostaria de começar sugerindo outra compreensão da atividade filosófica. Essa compreensão eu a aprendi de outro professor que muito me influenciou, a quem gostaria aqui também de prestar homenagem: Alain Badiou. Ela vê na filosofia certo tipo de escuta de acontecimentos capazes de produzir o desabamento do tempo presente. Essa formulação insiste, inicialmente, que a filosofia seria uma escuta voltada a seus exteriores, como se fosse o caso de afirmar que ela seria: “uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha”.2
Esta frase é de Georges Canguilhem. Creio que é a melhor frase para aqueles que começam um curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa resposta ao problema do objeto próprio à filosofia. Pois haveria um conjunto de objetos que poderíamos chamar de “objetos filosóficos”, assim como falamos que existem objetos e fenômenos próprios à economia, à teoria literária e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um filósofo falar de um texto literário, fazer considerações sobre um problema econômico ou discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao fazer isto, ele deixaria de ser filósofo?
Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for estranha é para lembrar que há uma especificidade do discurso filosófico: ele não tem objetos que lhe sejam próprios. De certa forma, a filosofia é um discurso vazio pois não há objetos propriamente filosóficos, o que talvez nos explique porque não pode haver, por exemplo, teoria do conhecimento sem reflexões aprofundadas sobre o funcionamento de, ao menos, uma ciência empírica, não há estética sem crítica de arte, filosofia política sem a escuta de fatos políticos, mesmo ontologia sem lógica. Em todos estes casos a filosofia toma de empréstimo objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo desenvolvimento não lhe compete diretamente.
Mas não haver objetos propriamente filosóficos não significa afirmar inexistir questões propriamente filosóficas. Que a filosofia seja um discurso vazio não significa que ela é irrelevante. Antes, essa é sua força real. Pois há um modo de construir questões que é próprio da filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer objeto. A caraterística maior de uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um fenômeno ou um objeto se torna um acontecimento. Ou seja, não se trata simplesmente de descrever funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões de existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser.
Na verdade, a filosofia tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo possível. Pois um acontecimento não é apenas uma mera ocorrência. Ele é o que problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma de agir, de desejar e de julgar. Ele é sempre uma ruptura que reconfigura o campo dos possíveis, levando-nos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, a habitar um mundo totalmente diferente.
No fundo, é desses acontecimentos, e apenas deles, que a filosofia trata. Por isto, não seria incorreto dizer que toda experiência filosófica é necessariamente vinculada a um acontecimento histórico, ela é a ressonância filosófica de um acontecimento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária do impacto filosófico da física moderna. Ela é a elaboração, até as últimas consequências, da dissolução do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço homogêneo e a-qualitativa.
A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como fruto das aspirações emancipadoras da Revolução Francesa, suas tensões e desafios. Ou seja, cada experiência filosófica original nasce da elaboração das crises do tempo, seja essa crise trazida por acontecimentos políticos, por abalos em nosso paradigma científico, por experiências estéticas portadoras de força de ruptura da linguagem ou por novas ordens dos desejos. O ponto central aqui é: tais crises são produzidas por acontecimentos portadores da força de instaurar o que até agora foi subtraído à representação. Instauração impulsionada pelo que é capaz de colocar em questão nossa forma de organizar os nomes e os pertencimentos.
No entanto, eu gostaria aqui de falar da fidelidade a outra forma de acontecimento. E aqui eu sigo um caminho que não é de Alain Badiou. Pois é possível que uma época seja marcada por acontecimentos que não são portadores potenciais de novas formas de relação, mas que são a expressão da dimensão do intolerável. A esses normalmente damos o nome de “catástrofe”. E quem gostaria de pensar a partir de acontecimentos deve ser capaz também de fazer o pensamento parar diante de catástrofes.
Parar não como quem se coloca diante do cultivo do incomunicável e da paralisia, mas como quem entende que se trata de enunciar o signo final de uma época que não pode mais de forma alguma permanecer. O termo, vindo do grego, não deixa de ter uma etimologia significativa. Kata “para baixo”, strophein “virar”, inicialmente usado na tragédia para indicar o momento no qual os acontecimentos se voltam contra o personagem principal. Ou seja, o momento em que a história se vê obrigada a mudar brutalmente de direção.
Onde fica Gaza?
Falo isso porque nosso presente se vê diante de uma catástrofe dessa natureza e, a meu ver, seria obsceno usar essa aula magna para falar de outra coisa, como se essa catástrofe não estivesse entre nós, a corroer nossos dias, a gritar diante de nosso sono dogmático. Se eu falasse de outra coisa, eu estaria dizendo a vocês que a filosofia pode ignorar a dor, pode ser indiferente ao despedaçamento dos corpos e ao genocídio de populações, o que seria a meu ver uma péssima forma de começar um curso de filosofia. Eu estaria ensinando a indiferença e dando a impressão de podermos continuar a fazer nosso trabalho como se nada estivesse a ocorrer. Decididamente, não é silenciando a dor que se começa a pensar filosoficamente, mas é a escutando, é fazendo o pensamento passar através dela.
A catástrofe da qual estou falando está associada a um lugar. Ele se chama Gaza. Gostaria de começar por lembrar que há vários sentidos do sintagma, tão usado atualmente, “todo pensamento é pensamento a partir de um lugar”. Afinal, devemos necessariamente particularizar lugares ou devemos mostrar como certos lugares específicos nos permitem apreender a totalidade funcional do sistema social do qual fazemos parte? Um pensamento a partir de lugares tem sua força normativa restrita ao lugar de onde emerge?
Pois alguns acreditam que devemos assumir uma limitação do pensamento a condição de ponto de vista. Como se eu estivesse necessariamente vinculado ao lugar que ocupo e que definiria meu ponto de vista, um lugar que outro não poderia ocupar, ou um lugar que limita minhas pretensões de falar para todos e quaisquer. A isso, alguns chamam de “pensamento situado”. Mas eu entenderia de outra forma a ideia de que “todo pensamento é pensamento a partir de um lugar”.
Pois cabe a todo pensamento pensar a partir da capacidade de se deixar afetar por certos lugares que funcionam como sintomas da totalidade social. Há lugares que são como sintomas, isto no sentido de lugares onde uma contradição global se explicita, uma verdade expulsa retorna, fazendo o corpo inteiro claudicar. Um sintoma é o que nos faz não conseguir mais desviar, pois faz emergir algo que só poderá ser ignorado à condição de criar um dispositivo de “não querer saber”, um sistema de silenciamento e apagamento que sempre fracassa e quanto mais fracassa mais violento se torna.
Se assim for “todo pensamento é pensamento a partir de um lugar” não é necessariamente uma proposição que determina que só quem está em certo lugar (geográfico, social) pode pensar certas situações. Antes, ele nos lembra que há lugares que todo e qualquer pensamento que aspire um conteúdo de verdade não pode ignorar, não pode se desviar. Há aquilo que poderíamos chamar de uma “universalidade de combate” e que consiste em se associar a um lugar do qual não viemos, habitados por pessoas que não têm nossas identidades sociais nem partilham necessariamente nossas formas de vida. No entanto, sabemos que a possibilidade de uma humanidade por vir, e creio que essa ideia faz cada vez mais sentido, depende de nós associarmos a elas e pensarmos a partir de seus lugares. Para a nossa época, esse lugar é Gaza.
Alguém poderia começar questionando o significado dessa excepcionalidade dada a Gaza, mesmo que estejamos diante do maior massacre de civis em todo o século XXI: 32.700 pessoas até agora. Enquanto todas as guerras combinadas entre 2019 e 2022 mataram 12.193 crianças, 12.300 crianças foram mortas apenas nos quatro primeiros meses da guerra em Gaza. Nesse exato momento, 50% da população de Gaza, ou seja, 1,1 milhões de pessoas, está em condição de “fome catastrófica”, o mais elevado grau de fome segundo Sistema de Segurança Alimentar Integrado (IPC). “Este é o maior número de pessoas já registrado de vítimas de fome catastrófica em qualquer lugar em qualquer tempo”, segundo palavras do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.
Mas não é essa magnitude que faz de Gaza o ponto de partida de todo pensamento que queira pensar a catástrofe que marca nosso tempo. Afinal, poderíamos entrar naquele exercício macabro e desprovido de sentido de comparar extermínios e genocídios. A esse respeito, eu só poderia aqui fazer minhas as palavras do antropólogo Luis Eduardo Soares que, diante da contraposição entre genocídios que visa apenas limitar nossa capacidade de sentir o intolerável quando ele está diante de nossos olhos, afirmou em um texto memorável: “as dores não são comparáveis, elas são a mesma”.3 Sim, é verdade. Não há porque comparar a dor porque, até segunda ordem, não há em supermercados balanças de intensidades de dor, medidores de gritos, termostatos de explosões de edifícios. Não se compara o que é o mesmo.
Na verdade, o que faz de Gaza esse ponto de partida do pensamento de nossa época é a conjunção entre quatro processos: repetição, dessensibilização, desistorização e vazio legal. Eu queria então falar de cada um deles por entender que eles não são apenas reações ao que vem de Gaza, mas dispositivos globais de governo a serem aplicados, em escala indefinida, contra populações colocadas em extrema vulnerabilidade. Ou seja, Gaza diz respeito a todos nós porque estamos diante de uma espécie de Laboratório Global para novas formas de governo. Como já vimos em outros momentos da história, práticas e dispositivos de violência estatal e sujeição desenvolvidas em locais específicos são paulatinamente generalizados em situações de crise. Quando pensadoras como Berenice Bento afirmam existir uma “palestinização do mundo”4 há de se tomar essas palavras a sério.
Permitam-me sugerir uma rápida análise macro-histórica para contextualizar o que tenho em mente. Estamos diante de uma conjunção inédita de crises que não tem como passar dentro do sistema capitalista que a gerou: crise ecológica, demográfica, social, econômica, política, psíquica e epistêmica. Crises que tendem, em larga medida, a se estabilizar, tornando-se o regime normal de governo, como a longa crise política das instituições da democracia liberal nos últimos vinte anos ou a longa crise econômica, presente no horizonte de justificação das políticas econômicas de nossos países e instituições desde 2008.
Essas crises não impediram a preservação dos fundamentos da gestão econômica neoliberal, nem o aprofundamento de sua lógica de concentração e de silenciamento de lutas sociais. Antes, podemos mesmo dizer que elas forneceram o solo ideal para a realização de tais processos. Essa dinâmica de normalização das crises aponta para uma mutação de nossas formas de governabilidade, pois estas podem cada vez mais normalizar o uso de medidas excepcionais, violentas e autoritárias no interior de processos de gestão social, já que estamos em situação de medo contínuo.
Diante de uma situação dessa natureza algumas possibilidades se colocam diante de nós. Uma delas é a transformação estrutural das condições que geraram tal sistema de crises conexas, outra é a generalização do paradigma da guerra como forma de estabilização da crise. Essa segunda opção, a que nos parece atualmente a mais natural, exige a generalização da lógica da guerra infinita como paradigma de governo. Pois a guerra infinita permite uma espécie de corrida para a frente que nunca termina na qual a desordem contínua é a única condição para a preservação de uma ordem que não tem mais como garantir horizontes normativos estáveis.
Diante da decomposição social, a guerra permite alguma forma de coesão, enquanto naturaliza, repete e generaliza níveis de violência e indiferença inaceitáveis em outra situação. Isso ajuda a entender porque, nesse momento histórico, não há mais sequer órgãos de mediação multilateral, como a ONU. Gaza marcou o fim de fato das Nações Unidas como instância vinculante, já que mesmo uma exigência de cessar-fogo de seu Conselho de Segurança é recebida pelo Estado de Israel com uma indiferença soberana.
Mas além da generalização da possibilidade de guerras de conquista entre Estados com seus redesenhos de cartografias, o fato fundamental que gostaria de chamar a atenção a respeito do paradigma da guerra infinita é a reorganização da sociedade civil a partir da lógica da guerra. Isso significa uma forma de gestão social baseada na militarização das subjetividades, que passarão a naturalizar a execução e o extermínio, que se organizarão como milicias, que se identificarão com a virilidade vazia dos fracos armados, que transformarão a indiferença e o medo em afetos sociais centrais.
Isso exige também a construção de inimigos que não podem nem devem ser vencidos, inimigos eternos que devem periodicamente nos lembrar de sua existência, através de um ataque terrorista, de uma explosão espetacular ou de um problema policial elevado à condição de risco de Estado. Por fim, militarizar as subjetividades significa também implodir todos os vínculos possíveis de solidariedade em nome de uma defesa de minha comunidade ameaçada, minha identidade colocada em risco que, por estar em risco, pode produzir as piores violências, como se tivesse o direito soberano de vida e morte contra um inimigo que se confunde com o outro.
O que gostaria de defender com vocês é que esse processo tem como seu ponto de inflexão essa operação macabra que vemos agora todos os dias e que consiste em fazer as pessoas não sentirem Gaza. Esse é o verdadeiro experimento social: dessensibilizar sujeitos a catástrofes, levar pessoas a não mais se indignarem nem agirem para impedi-la. Se isso for possível, então Gaza será apenas o primeiro capítulo de uma implosão social generalizada.
Dessensibilização
O que efetivamente me levou a trocar o tema de minha aula magna foi uma cena que gostaria de lembrar a vocês. Ela é a cena do massacre da rua Al Rachid no qual mais de 100 palestinos foram mortos pelo exército israelense quando procuravam por comida. Como disse Benjamin Netanyahu, a respeito desse massacre: “acontece”. Ou seja, algo que deve ser visto como um fato qualquer que não merece nos determos muito nele.
No entanto, esse massacre ocorreu duas vezes. A primeira, através da eliminação física de uma população reduzida a condição de massa faminta, lutando pela sobrevivência física. A segunda através dessas imagens. O documento visual que atravessou o mundo foi a redução dessa população a pontos em movimento, marcados como se marca um alvo em um jogo de videogame. A perspectiva não é a perspectiva humana dos corpos que caem. Ela é a perspectiva fria do drone que faz dos corpos entidades indiscerníveis, pontos em movimentos, manchas em uma tela.
O que valeu como documento era uma imagem cirúrgica, dessensibilizada, da perspectiva do drone, mas da perspectiva do drone essas pessoas já estavam mortas. Elas eram pontos e nada mais. Esse foi o segundo massacre, o massacre simbólico, talvez ainda mais intolerável que o primeiro pois é a expressão da redução do humano a um limiar entre o nada e o alguma coisa, redução a um ponto.
Essa imagem monstruosa, no entanto, mostrou a verdade de um processo de dessensibilização que é uma dimensão insuperável de nossos discursos sobre justiça, é seu ponto cego constitutivo. Nossos princípios normativos de justiça e reparação comportam necessariamente pontos cegos, espaços de dessensibilização e desumanização. Nesses lugares, nada se vê, existe uma exigência fundamental de impedir o trabalho de dolo coletivo, de luto público, de indignação.
Por isso, lugares como Gaza são constituintes de nossa ordem política, eles sempre existiram e, em intensidade diferente, continuam a existir. O que Gaza faz é, de certa forma, ampliar essa lógica, expo-la de forma crua em toda sua brutalidade. Até hoje, não houve ideal de justiça sem cegueira, defesa da integridade física de sujeitos sem o direito de apagamento de outros. Isso não poderia ser diferente em um mundo sujeito à extensão ilimitada de um sistema de produção no qual a possibilidade igualdade radical é estruturalmente negada.
É interessante perceber essa dessensibilização não apenas nos discursos políticos globais, mas em filósofos aparentemente comprometidos com os mais altos designíos emancipatórios do pensamento crítico. No dia 13 de novembro de 2023, nomes fundamentais da Teoria Crítica contemporânea, essa mesma teoria crítica a qual me sinto vinculado, como Jürgen Habermas, Rainer Forst, Nicole Deitelhof e Klaus Günther entenderam por bem publicar um texto, a respeito do conflito palestino e suas consequências, intitulado “Princípios de solidariedade”.
Começando por atribuir toda a responsabilidade dessa situação aos ataques do Hamas, como se tudo tivesse começado em 7 de outubro de 2023, defendendo o “direito de retaliação” do governo israelense e fazendo considerações protocolares sobre o pretenso caráter controverso da dita “proporcionalidade” de sua ação militar, o texto termina por afirmar que seria absurdo pressupor “intenções genocidárias” ao governo de extrema-direita de Israel, conclamando todos ao mais profundo cuidado contra “sentimentos e convicções antissemitas por trás de toda forma de pretextos”. Bem, o que posso dizer em 3 de abril de 2024 é que até agora ninguém pediu desculpas por esse artigo macabro.
O que me interessa aqui é como tal artigo demonstra que princípios universalistas de justiça podem muito bem ser usados estrategicamente para expiar fantasmas locais de responsabilidade perante catástrofes passadas, criando uma bizarra dessensibilização com argumentos morais. Ele mostra como a fidelidade a um trauma histórico, o sentimento de responsabilidade diante do passado, pode nos levar a uma profunda dessensibilização do presente. Principalmente, isto mostra como a exigência de memória pela qual passou o povo alemão não foi um trabalho de elaboração e reflexão. Na verdade, ela foi uma operação de adestramento. Pois reflexão ocorre quando entendemos, por exemplo, que: “A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção. E como as vítimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos, judeus, protestantes, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino, na mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta poderosa enquanto tal”.5
Essa é uma passagem da Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Ela nos lembra que não devemos olhar para os atores das opressões sociais, pois eles podem mudar de lugar. A experiência de opressão não basta para a produção de práticas de emancipação e justiça. Antes, ela muitas vezes pode levar apenas à justificação de práticas de autopreservação comunitária diante da lembrança, constantemente reiterada, de uma violência anteriormente sofrida. Fomos violentados e temos o direito a tudo para que sequer a sombra dessa violência paire novamente. E poderíamos lembrar de vários momentos nos quais a opressão anterior acabou por justificar práticas de imunização.
Ela irá, então, convocar todos os recursos e forças para imunizar grupos, reforçar a segurança, constituir fronteiras. Não por acaso, o apartheid foi criado por um povo, os afrikaners, que havia sido anteriormente vítimas do primeiro uso sistemático de campos de concentração com práticas de extermínio. Quando não conseguimos refletir sobre processos, nos adestramos a um imaginário estanque. Ao invés de compreender estruturalmente as dinâmicas da violência e do extermínio com sua mobilidade possível de ocupantes, nos fixamos em imagens e representações fixas, mesmo que antigos oprimidos estejam a massacrar novos oprimidos.
Contra esses, devemos lembrar que “genocídio” ocorre todas as vezes em que o vínculo orgânico de populações ao “genos”, ao que nos é comum, é negada. Quando o comandante das forças armadas israelense diz que do outro lado há “animais humanos”, ele expressa, de forma pedagógica, intenções genocidárias. Quando o presidente de Israel diz não haver diferença entre civis e combatentes e depois submete toda a população palestina a punições coletivas, quando ministros do governo de Israel afirmam ser plausível o uso de bombas nucleares contra Gaza e não têm outra punição que o simples afastamento de reuniões ministeriais futuras, quando descobrimos planos de deslocamento em massa dos palestinos para o Egito, quando a ministra da Igualdade Social e Empoderamento Feminino afirma ter “orgulho das ruínas de Gaza” e que daqui há 80 anos todos os bebês possam contar a seus netos sobre o que os judeus fizeram lá, estamos não apenas diante de intenções genocidárias, mas de uma das declarações mais sórdidas e intoleráveis de culto a violência que se possa imaginar. Isso é sim uma expressão clara e imperdoável de prática genocidária. Nada disso provocou sequer a pressão de tirar esses indivíduos do governo.
Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, não há um número que começa a valer por genocídio. Ele diz respeito a uma forma específica de ação de Estado no apagamento dos corpos, na desumanização da dor de populações, na profanação de sua memória, no silenciamento do luto público que retiram tais populações de seu pertencimento ao genos.
E de nada adianta utilizar a teoria espúria do escudo humano nesse contexto, um clássico do colonialismo contra a violência dos colonizados. Mesmo aceitando, para efeitos de argumentação, que um grupo de luta armada tomasse uma população como refém e a usasse como escudo, isso não dá a ninguém o direito de ignorar essa mesma população e tratá-la objetivamente como cúmplice ou como alguém cuja morte é um mero efeito colateral. Até segunda ordem, ainda não inventaram o direito de massacre.
Permitam-me ainda salientar um ponto nesse debate. O que a história do Estado de Israel nos mostra é que um estado-nação não pode ser construído como o guardião da memória de um trauma coletivo sem posteriormente se degradar. Sabemos como todo processo de criação de Israel, um processo único e singular, foi feito a partir de lembrança do trauma da catástrofe do Holocausto e da consciência global de que nada semelhante deveria se repetir. Sabemos também como traumas podem construir vínculos sociais. A partilha da violência a que se foi submetido, a lembrança do dolo e da perda são elementos fortes na criação de laços de toda sorte.
A identificação com o trauma coletivo consolida identidades e retira sujeitos da vulnerabilidade, pois a comunidade que se cria pela partilha do trauma tem a força de produzir a partilha de memorias coletivas e fornecer a base para lutas. Mas há dois momentos do vínculo social ao trauma coletivo e esse é apenas o primeiro. Pois há um segundo momento nos vínculos sociais produzidos a partir da partilha do trauma e há de se saber evitá-lo. Pois quando gerido pelo estado-nação, o dever de memória do trauma acaba necessariamente por abrir espaço a uma autorização de violência contra tudo o que se associar ao trauma, dentro e fora da nação. Não é o estado-nação que pode ser guardião do trauma social, mas a comunidade.
Cabe a comunidade, na verdade, impedir o Estado de se apossar do trauma a fim de evitar que a experiência do trauma perca sua força social de criação de vínculos ainda inexistentes, de comunidades sem limites e sem fronteiras. Força vinda da certeza de que nunca mais o trauma deve se repetir, em nenhum lugar, muito menos em territórios que ocupei ilegalmente.
Desistoricização e vazio legal
Mas há ainda algo a mais que impressiona no texto assinado por Habermas e cia. Trata-se de sua desistoricização e de sua indiferença ao vazio legal a que os palestinos estão submetidos. Alguns gostariam de começar toda essa discussão a partir dos terríveis ataques de 7 de outubro feitos pelo Hamas. Minhas críticas ao Hamas foram repetidas várias vezes nos últimos anos e minha recusa absoluta contra ações indiscriminadas visando civis é incondicional.6 Mas faz parte das práticas de dessensibilização privar populações da história de suas lutas.
Palestinas e palestinos lutam há décadas contra massacres periódicos e indiscriminados, contra uma situação social de povo apátrida, sem Estado nem território, constantemente submetido à vida precária, a uma morte sem dolo. A característica fundamental da vida em Gaza é a repetição bruta do massacre. Operação Chuvas de Verão, em 2006; Operação Nuvens de Outono, em 2006, Operação Chumbo Fundido, em 2008; Operação Coluna de Nuvem, em 2012, Operação Margem Protetora, em 2014, Conflito armado, em 2021. Esses são apenas os últimos atos de violência contra palestinos vivendo em Gaza, repetidos de maneira constante, sendo objeto da mesma indiferença.
Pode-se falar que todas essas operações foram exercício do direito de defesa do Estado de Israel contra um grupo que quer eliminá-lo. No entanto, essa forma de se defender não é defesa alguma. Façamos um exercício elementar de projeção. O que acontecerá depois das ditas “ações militares” israelense em Gaza? O Hamas será destruído? Mas o que significa exatamente “destruição” aqui? Ao contrário, não foi exatamente assim que o Hamas cresceu, a saber, depois das ações inaceitáveis de punição coletiva e de indiferença internacional? E mesmo se os líderes do Hamas forem mortos, não aparecerão outros grupos alimentados pela espiral cada vez mais brutal de violência? Seria importante partir do dado histórico de que todas as tentativas de aniquilar militarmente o Hamas só aumentaram sua força, pois tais ações militares criaram o quadro narrativo ideal para que ele aparecesse, aos olhos de grande parte dos palestinos, como representante legítimo da resistência à ocupação.
Como se não bastasse, não posso alegar direito defesa quando lido com reações vindas de um território que ocupei ilegalmente. Contrariamente ao que acreditam alguns, há lei internacional e ela diz claramente o que deve ser feito. O direito internacional reconhece à Palestina o estatuto jurídico de “território ocupado”, ocupação considerada totalmente ilegal pelas resoluções 242 e 338 da ONU há mais de cinquenta anos. Ou seja, a melhor defesa é respeitar a lei internacional e devolver os territórios ocupados. No entanto, em Gaza, a lei deixa de ter força de lei.
Na verdade, deixar um povo sem lei, sem Estado, sem cidadania é uma prática de construção de vazios jurídicos que nos remete ao núcleo de colonialismo insuperável de nossas sociedades modernas. Nossas sociedades continuam coloniais. A questão central é “contra quem?”. Pode-se falar da permanência do colonialismo porque estamos diante de um poder soberano que decide quando a lei vige e quando a lei é suspensa, em que território ela se aplica e em que território ela é impotente. A isso, alguns chamam de “democracia”. No entanto, isso é apenas a partilha de uma geografia da lei típica das relações coloniais.
Por isso, eu terminaria deplorando com todo o vigor acadêmicos e acadêmicas, que se dizem guardiães do pensamento pós-colonial e que se calaram vergonhosamente diante de uma típica catástrofe colonial, que fizeram declarações protocolares, que parecem mais indignados diante de problemas pronominais do que diante de corpos enterrados sob escombros de bombas. Quem quiser pensar criticamente deve estar disposto a não colocar seus interesses pessoais diante dos engajamentos necessários.
Eu realmente desconfio que o pós-colonialismo de alguns termina nos limites do Comitê de Diversidade do Magazine Luiza. E queria aqui aproveitar e reconhecer a coerência profunda e a honestidade intelectual desses acadêmicos e acadêmicas, como Judith Butler, Nancy Fraser e Angela Davies, que sofreram as piores retaliações e estigmatizações por demonstrar solidariedade ao drama palestino em um momento no qual a solidariedade se tornou uma das armas mais raras.
A meu ver, creio que algumas dessas pessoas entenderam que nessas horas a filosofia deve funcionar como um freio de emergência. Vocês devem conhecer esse fragmento de Walter Benjamin: “Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história universal. Mas talvez as coisas se passem de maneira diferente. Talvez as revoluções sejam o gesto de acionar o freio de emergência por parte do gênero humano que viaja nesse vagão”.7 Em um momento no qual fica cada vez mais clara as relações orgânicas entre últimos anteparos da civilização ocidental e extermínio, últimos anteparos da democracia e catástrofe, vale a pena lembrar como os verdadeiros gestos revolucionários são esses que decidem puxar o freio de emergência.
Por isso, eu gostaria de terminar essa aula inaugural apelando a essa língua falada pelos habitantes de Gaza. A língua que foi a língua de meus antepassados, mas que nunca foi falada em nossas casas, a língua que nunca ouvi porque seu silêncio representava a crença de que haveria uma integração perfeita ao ocidente.
Em um momento de desintegração, eu queria então terminar com essa língua silenciada pela crença em uma integração que nunca ocorreu da forma como foi prometida, como se fosse o caso de resgatar das ruínas aquilo que foi excluído de nossa voz para que essa língua silenciada possa trazer a dor das promessas não realizadas e da continuidade das lutas. Com a língua dos habitantes de Gaza eu gostaria de lembrar que não há liberdade sem terra e que não há vida possível sem liberdade: لا حياة بدون حرية.
Palestra proferida como aula inaugural do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 03 de abril de 2024. Artigo publicado no blog A terra é redonda.
Notas
1 FOUCAULT, Dits et écrits, Paris: Quarto, p. 1152.
2 CANGUILHEM, Georges ; O normal e o patológico, Rio de Janeiro : Forense editora, 2000,p. 12.
3 SOARES, Luis Eduardo ; “As palavras apodrecem“, site A Terra é Redonda.
4 BENTO, Berenice ; “Defensores de Israel usam antisemitismo como instrumento de chantagem”, Folha de São Paulo, 18/01/2024.
5 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max ; Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro : Jorge Zahar, p. 160.
6 Ver, por exemplo, SAFATLE, Vladimir; “O suicídio de uma nação e o extermínio de um povo”, Revista Cult, outubro 2023.
7 BENJAMIN, Walter; O anjo da história, Belo Horizonte: Autêntica, p. 230
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Vladimir Safatle é professor titular dos departamentos de filosofia e de psicologia da USP. Professor visitante da Universidade da Califórnia em Berkeley. Autor de, entre outros, Só mais um esforço e Em um com o impulso (ambos pela Autêntica); Cinismo e falência da crítica e O que resta da ditadura: a exceção brasileira, esse último organizado com Edson Teles (ambos pela Boitempo)
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