Leocadia Prestes, Mãe Coragem
Por ocasião do 150° aniversário do nascimento de Leocadia Felizardo Prestes, torna-se oportuno e importante resgatar a memória dessa mulher brasileira que, como tantas outras suas conterrâneas, revelou, com sua conduta, que “viver é tomar partido”, contribuindo para a luta por um futuro de justiça social e liberdade para nosso povo.
Publicado em 11/05/2024 // 1 comentário
Por Anita Leocadia Prestes
Leocadia Felizardo Prestes nasceu em 11 de maio de 1874, em Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul.
Leocadia foi uma mulher corajosa e determinada que, em 1936, com mais de 60 anos, com a saúde alquebrada, encontrou forças para pela primeira vez na vida separar-se das três filhas mais velhas e, acompanhada por Lygia, a caçula, que então contava 22 anos de idade, empreender uma longa jornada por toda Europa à frente da Campanha Prestes, pela libertação dos presos políticos no Brasil, entre os quais o mais destacado era seu filho Luiz Carlos Prestes, então conhecido como o “Cavaleiro da Esperança”. Tratava-se de uma atividade da qual antes jamais participara, embora sempre acompanhasse e desse apoio à atuação revolucionária do filho e dos seus camaradas.
Ao saber da extradição para a Alemanha nazista de Olga Benario Prestes, sua nora e esposa de Prestes, e do nascimento de sua neta Anita Leocadia na prisão nazista, Leocadia, sempre acompanhada por Lygia, não poupou esforços para ajudar Olga e tentar livrar a nora e a neta das garras do nazismo. Dirigiu-se diretamente a autoridades do Brasil e da Alemanha, exigindo justiça e medidas concretas visando a salvar a vida de Olga e da neta. Foi à Alemanha e viajou à Suíça em busca da intermediação da Cruz Vermelha Internacional, denunciou na imprensa internacional as arbitrariedades cometidas tanto no Brasil quanto na Alemanha e contatou as mais variadas personalidades mundiais à procura de apoio à sua luta.
Desde muito jovem, Leocadia foi uma mulher avançada que, ainda no século XIX, numa cidade provinciana como Porto Alegre (RS) à época, escandalizou a família ao revelar o desejo de ser professora e trabalhar fora, o que naqueles tempos era impensável para uma moça de seu elevado nível social. Desde cedo, Leocadia manifestou pendor pelas artes, pela literatura e pela política, interesses que, mais tarde, transmitiu aos filhos. Em 1896, casou-se com o jovem tenente Antônio Pereira Prestes. Juntos enfrentaram as vicissitudes da vida modesta de um oficial do Exército, no início da República, primeiro em Porto Alegre, onde Antônio P. Prestes foi professor na Escola Militar do Rio Pardo, depois no Rio de Janeiro, em seguida no interior do Rio Grande do Sul, em Ijuí e Alegrete, e, então, mais uma vez em Porto Alegre.
Em 1904, Leocadia mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, capital da República, em busca de tratamento médico para o marido, afetado por grave enfermidade. Foram anos difíceis, nos quais, apesar da grande dedicação de Leocadia, Antônio P. Prestes veio a falecer, em janeiro de 1908. Luiz Carlos, o primogênito, completara 10 anos de idade. Ao ficar viúva com filhos pequenos para criar, contando apenas com a pensão de capitão do Exército, insuficiente para o sustento da família, Leocadia não hesitou em buscar trabalho. Começou a dar aulas de idiomas e de música, trabalhou como modista, foi balconista e costurou para o Arsenal de Marinha. Finalmente, em 1915, foi nomeada professora de escola pública, como coadjuvante do ensino primário, cargo que exerceu até 1930, quando viajou para o exterior. Trabalhou à noite dando aula nos subúrbios, em cursos noturnos frequentados por comerciárias, operárias e domésticas.
Leocadia enviuvou muito jovem, aos 33 anos de idade. Foi uma mulher à frente do seu tempo: teve a coragem de enfrentar os preconceitos da época e, apaixonada por um homem casado, assumiu uma relação da qual nasceram suas duas filhas mais moças, Lúcia e Lygia, criadas por ela e pelos irmãos mais velhos em iguais condições, sem nenhum tipo de discriminação, cercadas de todo o carinho da família. Quando ficou sabendo que o pai de suas duas filhas, diferentemente do que lhe havia prometido, continuava casado com a esposa grávida, Leocadia não teve dúvidas de romper aquele relacionamento e arcar sozinha com as consequências.
Coragem e dignidade foram traços marcantes da personalidade de Leocadia na luta cotidiana pela sobrevivência e pela educação dos cinco filhos. A influência da mãe foi decisiva na formação do caráter de Luiz Carlos Prestes, assim como das suas irmãs, o que sempre foi reconhecido por toda a família. Apesar das grandes dificuldades, Leocadia não descuidava da educação dos filhos; orientava-os nas leituras, ensinava-lhes música e idiomas estrangeiros, discutia com eles os acontecimentos políticos em curso no Brasil e no mundo. Em sua casa nunca faltaram jornais e revistas, lidos e comentados por todos. Procurava participar da vida política nacional – assim, na “campanha civilista” às eleições de 1910, acompanhada pelo filho Luiz Carlos, compareceu ao comício do candidato Rui Barbosa. Sob a influência da mãe, Prestes e suas irmãs adquiriram o hábito de tomar partido nos embates políticos – fosse no âmbito nacional, fosse no cenário mundial –, de jamais permanecer indiferentes.
Diferentemente de outras mães dos jovens militares rebelados durante a década de 1920, que desejavam afastar os filhos da luta, Leocadia considerava a causa justa e apoiava a decisão do filho de participar dos levantes tenentistas, assim como da Marcha da Coluna. Entretanto, seu sofrimento foi grande, pois quase não se recebiam notícias fidedignas dos rebeldes, enquanto o Governo procurava criar uma expectativa de iminente derrota do movimento e de liquidação física das suas lideranças. Leocadia manteve-se firme procurando encorajar as demais mães dos revolucionários, embora também enfrentasse severas dificuldades, pois cessara a ajuda financeira que o filho sempre lhe proporcionara desde que se tornara oficial do Exército.
Alguns anos depois, vivendo na Argentina, Prestes convidou a mãe e as irmãs a compartilharem com ele o exílio. Leocadia, acompanhada das filhas, não vacilou em liquidar a casa em que moravam no Rio de Janeiro e abandonar o emprego de professora, viajando para Buenos Aires em setembro de 1930. A família teve logo que enfrentar novas dificuldades, pois Prestes perdera o emprego de engenheiro, uma vez que seu patrão era um brasileiro ligado a Getúlio Vargas e Prestes recusara apoiar o movimento de 1930. Ao mesmo tempo, foi obrigado a mudar-se para Montevidéu, expulso da Argentina devido a um golpe militar de direita ocorrido nesse país. Em plena crise do capitalismo mundial, a mãe e as irmãs ficaram desamparadas, tentando encontrar meios de sobreviver, mas era quase impossível conseguir um emprego.
Desde o exílio da Coluna Prestes na Bolívia, Luiz Carlos Prestes entrara em contato com alguns textos dos clássicos do marxismo. Com a mudança para a Argentina, em abril de 1928, dera prosseguimento às leituras marxistas, chegando à conclusão de que a teoria marxista e a luta pela revolução socialista eram o único caminho para solucionar os graves problemas do nosso povo, que tanto o haviam impressionado durante a Marcha da Coluna. Estabelecera também contato com o movimento comunista latino-americano e o bureau da Internacional Comunista com sede em Buenos Aires. Dessa forma, em maio de 1930, lançou o Manifesto apoiando o programa da “revolução agraria e anti-imperialista” então proposto pelo PCB.
Em 1931, convidado para trabalhar como engenheiro na União Soviética, Prestes consultou a mãe, assim como as irmãs, se aceitavam acompanhá-lo. Leocadia tinha total confiança no filho e, mesmo desaconselhada por amigos a viajar à Rússia soviética com filhas jovens e solteiras, concordou com a ideia, ainda mais que as filhas estavam entusiasmadas com as possibilidades que se abriam para elas de poder trabalhar e estudar.
Os primeiros tempos em Moscou, dados os problemas então enfrentados na construção do socialismo na União Soviética, não foram fáceis para a família, principalmente para Leocadia, que no início tinha dificuldade de entender a gravidade da situação econômica do país. Entretanto, em pouco tempo, ficaria impressionada com o entusiasmo do povo soviético, disposto aos maiores sacrifícios na construção da nova sociedade livre de explorados e de exploradores. Isso era observado por ela até mesmo na obra vizinha do edifício em que moravam em Moscou: os jovens operários trabalhavam cantando, alimentados apenas com um pedaço de pão preto e um copo de chá devido ao racionamento existente, e após a jornada de oito horas iam estudar nos cursos noturnos criados para os trabalhadores vindos do campo.
Foi nessa época que, buscando uma forma de participar da luta, Leocadia tornou-se comunista e resolveu aprender datilografia a fim de ajudar na cópia e na tradução de documentos. Da mesma forma, suas filhas aderiram aos ideais socialistas e, durante o ataque da Alemanha nazista à União Soviética, Clotilde, Eloiza e Lúcia, que haviam permanecido em Moscou, colaboraram com a defesa antiaérea da capital soviética, assim como na resistência organizada na retaguarda, nos montes Urais, para onde foram transferidos os estrangeiros residentes na capital.
Malgrado todos os esforços desenvolvidos por Leocadia à frente da Campanha Prestes, não foi possível salvar Olga Benario Prestes. Obteve-se, contudo, a libertação da pequena Anita Leocadia, em janeiro de 1938, e a vaga promessa da Gestapo de que Olga seria libertada um pouco mais adiante. Ao contrário disso, Olga foi enviada para diferentes campos de concentração, tendo permanecido no campo de Ravensbrück até abril de 1942, quando foi assassinada numa câmara de gás.
Para propiciar novo alento à campanha pela libertação de Prestes e dos presos políticos no Brasil, seria importante a ida de Leocadia aos Estados Unidos, pois o que lá se desenvolvia repercutia em nosso país. Leocadia tentara, ainda em 1936, empreender essa viagem, sem conseguir, no entanto, que o governo estadunidense lhe concedesse o visto de entrada. Após o resgate da neta, nova tentativa foi empreendida, ocasião em que o embaixador dos Estados Unidos em Paris disse a Leocadia: agora, “com essa criança”, tal solicitação se tornara impossível de ser atendida.
Em setembro de 1938, com a assinatura do Pacto de Munique, ficou evidente que se estava às vésperas de uma nova guerra. Dada essa ameaça, havia algum tempo Leocadia e Lygia eram instadas pelos dirigentes da Internacional Comunista a deixar a Europa. Mas, para ambas, estava claro que o afastamento para outro continente tornaria muito mais difícil dar prosseguimento à luta pela libertação de Olga. Pretendiam deslocar-se para a Suíça ou a Suécia, países cuja neutralidade numa possível guerra estaria garantida. Entretanto, pressionadas por camaradas e amigos, contra sua própria vontade, acabaram concordando em viajar para o México, cujo governo presidido pelo general Lázaro Cárdenas concedia asilo aos perseguidos políticos do mundo todo – comunistas, anarquistas, antifascistas e democratas.
Companheiros e amigos mobilizados pelo Partido Comunista do México e pelos militantes da Campanha Prestes nesse país estavam à espera de Leocadia e Lygia, e da pequena Anita Leocadia, na cidade portuária mexicana, de onde as conduziram à capital do país. As três foram cercadas de muito carinho e simpatia e, dessa forma, passaram a morar na hospitaleira Cidade do México. Receberam atenção especial do general Lázaro Cárdenas.
No México, a Campanha Prestes prosseguiu, já então limitada às Américas, pois o resto do mundo estava convulsionado pela guerra. Com a guerra, Leocadia perde o contato com Olga e com as filhas que haviam ficado em Moscou. Além da sorte do filho, na prisão, preocupava-se agora com a situação dos seus outros entes queridos, ameaçados pelas bombas nazistas. Contudo, a coragem e a fé na vitória final não a abandonaram jamais. Quando as hordas nazistas avançavam pela União Soviética, ela costumava dizer aos amigos assustados: “Vocês não conhecem aquele povo! Quem passou tantas privações e sofrimentos para construir o socialismo em seu país, não vai fraquejar agora. Eles são invencíveis!”
Leocadia não teve a alegria de assistir a vitória final dos povos sobre o nazismo nem a libertação dos presos políticos no Brasil, em 1945. Após longa e penosa enfermidade, ela veio a falecer no México, no dia 14 de junho de 1943.
Sua morte comoveu o povo mexicano, que a admirava muito. Ao velório, no salão nobre do Sindicato dos Empregados em Hotéis, no centro da capital do México, compareceram milhares de pessoas, inclusive numerosos estrangeiros, fugidos do nazismo e asilados no México. Todos os ministros de Estado estiveram presentes com seus auxiliares, a começar pelo general Cárdenas, na época Ministro da Defesa no Governo de Ávila Camacho. O general Cárdenas tomou a iniciativa de dirigir-se pessoalmente a Getúlio Vargas, pedindo-lhe que permitisse a Prestes vir ao México despedir-se de sua mãe. Propunha enviar um avião militar mexicano para trazer o prisioneiro e oferecia-se, inclusive, como refém, como garantia de que Prestes voltaria à prisão. Getúlio sequer respondeu. Quatro dias e quatro noites o povo aguardou a resposta, em respeitosa vigília.
No dia 18 de junho de 1943, realizou-se o enterro, que se transformou em uma gigantesca manifestação popular de solidariedade a seu filho e de luta pela sua libertação, assim como de todos os prisioneiros políticos no Brasil, numa expressiva manifestação da continuidade da Campanha Prestes. O cortejo atravessou toda a cidade a pé, até as colinas de Tacubaya, onde ficava o cemitério. O caixão, coberto pela bandeira brasileira, foi levado em ombros e cercado por uma guarda de honra que levava as bandeiras de todas as Nações Unidas que, naquele momento, travavam a luta contra o nazismo. À beira da sepultura, vários oradores se fizeram ouvir, inclusive representantes de outros países latino-americanos, como Cuba, Uruguai, Chile e, também, de países europeus, principalmente alemães e espanhóis. O grande poeta chileno Pablo Neruda leu o poema de sua autoria Dura Elegia, escrito especialmente para aquele momento, no qual definia a importância da vida de Leocadia Prestes com o verso: “Señora, hiciste grande, más grande a nuestra América…”. Esse belo poema valeu a Neruda o posto de cônsul-geral do Chile no México.
Por ocasião do 150° aniversário do nascimento de Leocadia Felizardo Prestes, torna-se oportuno e importante resgatar a memória dessa mulher brasileira que, como tantas outras suas conterrâneas, revelou, com sua conduta, que “viver é tomar partido”, contribuindo para a luta por um futuro de justiça social e liberdade para nosso povo.
Referências bibliográficas
PRESTES, Anita Leocadia. Viver é tomar partido. Memórias. São Paulo, Boitempo. 2019.
PRESTES, Lygia. Leocadia Prestes; mãe coragem. Petrópolis, 2006.
Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes
A vida do revolucionário brasileiro cuja saga no movimento tenentista e na resistência antifascista contra Getúlio Vargas marcaram época. A autora, filha de Prestes e historiadora, oferece uma biografia política envolvente, embasada em metodologia marxista e documentação extensa.
Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo, de Anita Leocadia Prestes
A resistência e coragem da revolucionária Olga Benario Prestes nesta narrativa biográfica. Baseada em documentos inéditos da Gestapo, conta a jornada da jovem comunista desde sua luta política até sua execução nos campos nazistas. Amor, resistência e silêncio frente à brutalidade do Terceiro Reich.
Viver é tomar partido, de Anita Leocadia Prestes
Memórias marcantes entrelaçadas à história do comunismo no Brasil e no mundo. Um relato pessoal de lutas e perseguições, destacando o papel fundamental de mulheres na política radical. Leitura sensível e essencial para compreender a resistência contra a lógica capitalista.
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Anita Leocadia Benario Prestes é doutora em História Social pela UFF, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada (UFRJ) e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) e de Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.
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