ARGENTINA
Milei: por detrás do show, a crise económica
Milei não cabe em si por ter chegado esta quinta-feira à capa da Time. Numa sala de espetáculos cantou na apresentação do seu novo livro com vários plágios, enquanto continua a jurar que a sua política económica transformará o país na “nova Meca do Ocidente”. Mas a realidade da austeridade desmente tanta gabarolice.
Pão e circo. À consigna de manipulação das massas da Roma Antiga parece faltar um ingrediente essencial na Argentina dos dias de hoje. Com a pobreza a ter aumentado até aos 55%, de acordo com a Universidade Católica Argentina, é simbólico que nesta quinta-feira se tenha sabido do aumento do preço do pão em Buenos Aires de 1.500/2.000 o quilo para 2.400 pesos argentinos, depois de no mês passado o governo ter decidido acabar com o Fundo Estabilizador do Trigo, um dispositivo que tinha como finalidade garantir um valor de referência no mercado da panificação. Os industriais do setor queixam-se de uma quebra de vendas de 45% desde setembro até maio e de um aumento de fatores produtivos como a eletricidade, o gás e a água entre 300 a 500%.
Ao mesmo tempo, o presidente do país lançava o seu livro “Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica” com um espetáculo numa sala de concertos lotada com seis mil pessoas em Buenos Aires, o Luna Park. Cantou um tema rock, indiferente ao facto de o grupo se ter manifestado contra o uso da sua canção durante a campanha eleitoral. E gabou incessantemente as suas ideias, embora haja provas de que o novo escrito, tal como os anteriores, está pejado de plágios, como revelou o jornal Noticias. Repetiu os mantras liberais ao longo de hora e meia de discursos em que afirmou como um princípio religioso que “as falhas de mercado não existem. Se pensam que há uma falha de mercado, o primeiro que sugiro é que se verifique se não há intervenção do Estado. O problema não é o mercado, nem as pessoas, mas os políticos”.
Milei continuou também a alimentar todo o caso dos insultos ao primeiro-ministro espanhol e da disputa diplomática subsequente que têm criado uma cortina de fumo conveniente para não se discutirem outros problemas.
Entre a capa da Time e o delírio de grandeza
No início do mês, no Milken Institute, em Miami, face a uma plateia de grandes capitalistas, a quem chamou “vocês que são o progresso humano encarnado”, apresentava-se como um salvador do Ocidente das garras do socialismo e proclamava que se preparava para guiar a Argentina para ser “a nova Meca do Ocidente” ou a “nova Roma”.
A arrogância só cresceu esta quinta-feira quando chegou à capa da revista norte-americana Time, o que celebrou na sua conta do X com triunfalismo não só publicando uma reação mas republicando dezenas de publicações sobre o tema. Também pouco lhe importou que o tom do artigo fosse crítico e aí estivesse escrito que “é possível que Milei esteja a ficar sem tempo antes do seu apoio popular desmoronar” e que “apesar de ter prometido que a “casta política” seria a mais afetada as suas medidas de austeridade atingiram os argentinos comuns”.
O malabarismo com a inflação
No Mediapart, a semana passada, Romaric Godin fazia o raio-x do estado real da economia argentina que desmente a imagem de sucesso milagroso que ele, e os seus fieis seguidores mundiais, pretendem traçar.
Uma das principais armas do arsenal do auto-proclamado “libertário” é a descida da inflação. Em abril de 2024 esta situou-se nos 8,8% ao mês e o presidente argentino compara-a frequentemente com dezembro quando era de 25,5%. Só não diz que esta, um valor dos mais altos dos últimos trinta anos, corresponde a uma quase duplicação face ao mês anterior, reflete o seu primeiro mês no cargo e a sua decisão de desvalorizar em 50% o peso face ao dólar.
Para além disso, a inflação anual registada em abril era de 289,4%, quase duas vezes mais do que no final do mandato do anterior executivo e só no primeiro trimestre do ano ultrapassou os 50%. Assim, Milei tornou aquele número mensal próximo da média do ano anterior numa vitória quando na altura denunciava este tipo de valores como uma desgraça económica.
Godin lembra que ainda que a inflação venha a descer ou a estabilizar nestes valores, o que se passa na sociedade argentina é que, já que os salários não aumentaram ao nível da inflação, os efeitos das subidas de preços passados se acumularam. Segundo o instituto de estatística argentino, o Indec, os salários reais recuaram num ano 87,1% e 4,6% no primeiro trimestre. No setor informal, que emprega 20% dos trabalhadores, a descida de salário real foi de 158,7%. Nos primeiros quatro meses do ano, as reformas perderam 24% do seu poder de compra nas pensões mínimas e 37% no caso dos outros.
A recessão violenta
Milei também não diz outra coisa: “a taxa de inflação está a cair porque a procura está em colapso”, explica o especialista do Mediapart. No retalho, nos primeiros quatro meses do ano as vendas caíram 18,4%, e, num ano, a queda atingiu 7,6 %. Muito mais do que no período anterior.
Esta recessão é “alimentada” pelo primeiro excedente orçamental primário (excluindo o serviço da dívida) desde 2002. A que chegou através de métodos “de uma rara violência, nomeadamente com a desindexação das pensões, a supressão de 13.000 empregos públicos e o fim brutal de todos os trabalhos públicos financiados pelo Estado”. Isto resultou num recuo de 42,2% na atividade da construção, com o emprego neste setor a diminuir já 13,5%. A queda da produção industrial em março era de 14,8% ao ano, 21,2% no trimestre. No setor dos aparelhos elétricos e eletrónicos é ainda mais acentuada (37% ao ano), no caso dos móveis 33% e 27% na produção de máquinas. As vendas de soja e milho, dois dos principais produtos agrícolas de exportação do país, caíram no início do ano para os números mais baixos em dez anos.
Esta quarta-feira, conta o El Diário, o Instituto Nacional de Estadísticas y Censos atualizou as estimativas: a atividade económica recuou 8,4 % face ao ano passo, num ciclo de cinco meses consecutivos de queda.
O “dinheiro nos cofres” e a motosserra sem futuro
Milei tem ainda um discurso de auto-elogio à conta do aumento das reservas cambiais do banco central, escondendo que o montante continua negativo em termos líquidos e que o banco central teve de emitir títulos de dívida denominados em dólares mas pagáveis em pesos e com juros de 5% que representam assim “um risco constante para as reservas”, dado o reembolso em dólares.
Godin resume: “as reservas continuam inexistentes na prática e o valor do peso continua sobrevalorizado” com Buenos Aires à procura de “dólares novos”. E, apesar do FMI ter elogiado o seu desempenho, apenas manteve o acordo anterior e nada mais.
O problema é que “a margem de manobra da política de “motosserra” nas finanças públicas tem limites” e aplicação desta levaria “a Argentina a entrar numa espiral recessiva” sendo “a única maneira de evitar o colapso atrair capital estrangeiro”. Para isso, a porta está aberta ao grande capital que com o novo “Esquema de incentivos para grandes investidores” tem incentivos inéditos. E a guerra contra o socialismo também tem aí o seu limite. Sendo a China o principal parceiro comercial do país. Milei bate no peito mas negoceia com o Partido Comunista Chinês, metendo de lado toda a retórica inflamada.
Sobre o mesmo, Aram Aharonian, fundador da Telesur e dirigente do Centro Latinoamericano de Análisis Estratégico, escreve que “o excedente fiscal é fictício, construído com base em incumprimentos e em privações sociais e regionais insustentáveis. O nível e a estabilidade do dólar oficial são fictícios, sustentados com base na recessão, na postergação de pagamentos de importações e em fraudes especulativas transitórias de curto prazo. Portanto, o nível de reservas “acumuladas” apresentado pelo governo também é fictício. E também é fictícia a estabilização dos preços, que por enquanto é apenas uma redução da velocidade do seu aumento, forçada pela forte contração do mercado interno, pela queda da procura e pela artificialidade da âncora cambial”.
Lembra ainda que “a Cepal [Comissão Económica para a América Latina e o Caribe, comissão regional da ONU] informou que a queda do PIB argentino este ano será superior a três pontos, o mesmo valor do crescimento dos países vizinhos, como o Brasil. Pelo que o colapso económico transformou “o país que era o celeiro do mundo no único da região que cai continuamente enquanto os seus vizinhos crescem.”
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