GEOPOLÍTICA
Uma guerra fria com outro nome
Tem havido muitos debates sobre a definição do termo “guerra fria”. Mas uma coisa é certa: estamos a viver uma agora.
GILBERT ACHCAR
A invasão falhada da Ucrânia pela Rússia, lançada em 24 de fevereiro do ano passado, e a guerra que desde então se desenrola no leste da Ucrânia tiveram consequências não só materiais, mas também semânticas: a utilização da expressão “Nova Guerra Fria” para descrever o estado atual das relações internacionais atingiu um novo máximo.
Já na década de 1980, a expressão “Segunda Guerra Fria” era utilizada para designar o recrudescimento das tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética que resultou da invasão soviética do Afeganistão no final de 1979, seguida, um ano mais tarde, pela eleição de Ronald Reagan como presidente dos EUA. O seu primeiro mandato foi marcado por um discurso inflamado contra o “império do mal” e por um forte aumento das despesas militares.
O termo Segunda Guerra Fria caiu em desuso porque nunca se tinha justificado de facto. O desanuviamento da década de 1970 não pôs fim à primeira guerra fria; não foi mais do que uma pausa temporária numa sucessão de fases mais quentes e mais frias das tensões globais desde 1945. Hoje em dia, os historiadores referem-se à guerra fria tal como a conhecemos como um período único que começou após o fim da segunda guerra mundial e terminou com o colapso do bloco soviético, culminando com a unificação da Alemanha em novembro de 1990 e a dissolução da URSS em dezembro de 1991.
O termo Nova Guerra Fria, no entanto, refere-se a uma nova fase de tensões globais num mundo que já não se caracteriza pela oposição ideológica entre um bloco de Estados baseado no liberalismo e na livre iniciativa e outro baseado no domínio “comunista” e na propriedade estatal da economia. O segundo bloco foi substituído, nesta nova fase, por uma aliança de conveniência entre um Estado chinês que continua a ser governado por um partido “comunista”, embora num país profundamente integrado no mercado capitalista mundial, com o sector privado a contribuir com 60% do seu PIB, e um Estado russo cujo governante é considerado um farol pela extrema-direita mundial e onde as fronteiras entre os sectores privado e estatal são tão porosas como noutros Estados rentistas nepotistas.
Definir a própria “guerra fria”
Esta diferença entre a velha e a nova significa que a própria noção de guerra fria precisa de ser clarificada. Ao contrário do que muitos pensam, não se trata de uma referência ao confronto ideológico e sistémico específico entre os dois impérios globais que emergiram da II Guerra Mundial. De facto, a primeira utilização registada do termo “guerra fria” na sua aceção contemporânea foi feita antes da I Guerra Mundial pelo líder socialista alemão Eduard Bernstein (1850-1932). No entanto, esta cunhagem do conceito raramente é reconhecida: aparece duas vezes com o nome de Bernstein em registos impressos, primeiro no final do século XIX e depois em 1914, nas vésperas da guerra (1).
Em ambos os casos, Bernstein estava a referir-se ao investimento maciço do Reich alemão em armamento – uma situação que ele descreveu em 1914 como sendo de “não-guerra” em vez de “verdadeira paz” – durante a qual o Estado alemão se envolveu numa corrida ao armamento com os seus vizinhos. Esta é uma excelente definição daquilo a que hoje chamamos uma guerra fria, em que o fator decisivo é que ambos os lados mantêm uma prontidão para a guerra e reforçam-na constantemente através do aumento das suas forças militares.
Enquanto os Estados Unidos optaram, no início da década de 1990, por manter um nível de prontidão militar adaptado a uma confrontação simultânea com a Rússia e a China, a Rússia voltou a aumentar as suas despesas militares a partir da viragem do século, quando, graças ao novo aumento dos preços dos hidrocarbonetos que coincidiu com a subida ao poder de Vladimir Putin, a Rússia começou a recuperar do baixo nível económico que tinha atingido na década de 1990. A China, por seu lado, optou por dar prioridade ao seu desenvolvimento económico, ao mesmo tempo que se empenhava num constante reforço militar, embora a um nível muito inferior ao da sua economia, quer em relação aos EUA quer à Rússia. Perante a intimidação de Washington, a Rússia e a China aumentaram a sua colaboração. As vendas de armamento avançado por Moscovo a Pequim, a partir da década de 1990, foram rapidamente complementadas por exercícios militares conjuntos.
George Kennan, um dos principais arquitetos da guerra fria em 1946-47, foi a primeira pessoa a inventar o termo “Nova Guerra Fria” para descrever o novo estado do mundo. Thomas Friedman, do New York Times, relatou em 1998 que Kennan lhe disse que a decisão da administração Clinton de alargar a NATO à Europa Oriental, oficialmente sancionada em 1997, marcou “o início de uma nova guerra fria” (2)
A decisão fatídica de Clinton
Tanto quanto sei, fui a segunda pessoa a fazer este diagnóstico, num ensaio sobre a guerra do Kosovo publicado numa coletânea em inglês em 1999 e em francês num livro com o mesmo título (3). O meu diagnóstico baseava-se na minha análise anterior das orientações orçamentais do Pentágono no pós-guerra fria e do comportamento da administração Clinton durante a década de 1990, tanto em relação à Rússia como à China, que correspondia a essas orientações (4). Do meu ponto de vista, a decisão fatídica de Bill Clinton de alargar a NATO de modo a incluir os países da Europa de Leste anteriormente sob domínio soviético, juntamente com a intervenção militar dos EUA em 1996 para contrariar a postura militar da China contra os movimentos de independência de Taiwan, tinha lançado as bases para uma nova guerra fria.
O ponto de viragem que despoletou esta nova Guerra Fria foi a guerra do Kosovo, em 1999. Esta primeira guerra travada pela NATO enquanto tal, foi lançada perante a oposição de Moscovo e Pequim, contornando o Conselho de Segurança da ONU, do qual ambos os países são membros permanentes com direito de veto. A guerra do Kosovo destruiu assim a promessa feita por George HW Bush em 1990 – alguns meses antes da guerra do Golfo, liderada pelos EUA e aprovada pela ONU, para forçar o Iraque a sair do Kuwait – de que tinha nascido uma “nova ordem mundial” em que prevaleceria o primado do direito internacional.
Esta nova ordem mundial não sobreviveu à década. Desde então, tem havido dois lados distintos: os EUA, por um lado – juntamente com os seus aliados ocidentais (no sentido político de Ocidente, que inclui países da Ásia-Pacífico como o Japão, a Austrália e a Coreia do Sul), cuja lealdade se esforçou por manter depois de 1990 – e a Rússia e a China, por outro. As duas partes considerar-se-iam potências rivais a nível mundial e atuariam em conformidade, independentemente dos altos e baixos das suas relações triangulares durante o último quarto de século.
Foram necessários mais alguns anos para que se reconhecesse a existência de uma Nova Guerra Fria. Dois livros com o termo no título foram publicados em 2007 e 2008 (5). E, no entanto, em 2008, apenas alguns meses antes da primeira contra-movimentação militar da Rússia em resposta ao contínuo alargamento da NATO – a sua intervenção na Geórgia em apoio aos separatistas da Abcásia e da Ossétia do Sul, seguindo um padrão que viria a ser replicado em Donetsk e Luhansk, na Ucrânia, em 2014 – a então secretária de Estado norte-americana Condoleezza Rice continuava a afirmar que “a recente conversa sobre uma nova Guerra Fria é um disparate hiperbólico” (6).
Seria necessária a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e a intervenção na Ucrânia para inclinar decisivamente a balança no sentido de um reconhecimento cada vez maior da realidade de uma Nova Guerra Fria. Na sequência da viragem fortemente hostil nas relações entre os EUA e a China, inaugurada por Donald Trump e continuada por Joe Biden, a invasão da Ucrânia por Vladimir Putin em fevereiro de 2022 – ao levar a tensão entre a Rússia e o Ocidente a um pico, talvez mesmo a um milímetro da utilização de armas nucleares e do início de uma nova guerra mundial – tornou a Nova Guerra Fria visível para todos, exceto para aqueles que se recusam a vê-la.
Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
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