Corra, Doha, corra...
Os representantes dos países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) tentam, ou fingem tentar, um acordo sobre comércio agrícola, serviços e redução de barreiras a produtos industriais. A assimetria de interesses e a crise sistêmica do capitalismo não deixam qualquer sombra de dúvida: aos países periféricos só resta resistir ou capitular. A análise é de Gilson Caroni Filho.
Gilson Caroni Filho
Uma mesma história contada três vezes, com desenlaces diferentes, pode ser uma obra de arte. É o caso de “Corra, Lola, Corra", filme alemão dirigido por Tom Tykwer, onde não faltam roteiro engenhoso e uma corajosa linguagem cinematográfica. Dependendo da combinação de possibilidades, o desfecho pode ser feliz ou não. Estamos diante de uma alegoria da vida.
Em Genebra, o enredo é distinto. Os representantes dos países-membros da OMC ( Organização Mundial do Comércio) tentam, ou fingem tentar, um acordo sobre comércio agrícola, serviços e redução de barreiras a produtos industriais. Ao contrário da obra-prima de Tykwer não existem possibilidades de final feliz. A assimetria de interesses e a crise sistêmica do capitalismo não deixam qualquer sombra de dúvida: aos países periféricos só resta resistir ou capitular.
No caso brasileiro, reduzir tarifas de importação, ainda mais com câmbio apreciado, só prejudicaria setores industriais com uso intensivo de mão de obra ou baixo coeficiente de importação na sua estrutura produtiva. Ao contrário do que apregoam os que rezam pelo credo liberal, uma redução tarifária em nada forçaria uma maior competitividade ou modernização da indústria nativa. Se somarmos a isso, as concessões pretendidas pelos Estados Unidos na área de serviços, o êxito de Doha seria uma recolonização impensável.
Podemos concordar ou não com Immanuel Wallerstein quando ele afirma que o capitalismo vive tensões estruturais com as quais já não consegue lidar, mas as evidências empíricas sugerem mais atenção às suas teses. Três aumentos indicam que o processo acumulativo vive uma crise sistêmica: o dos custos salariais em função da desruralização, a elevação dos preços de matérias-primas, como decorrência do esgotamento ecológico, e a inevitabilidade do crescimento da carga tributária em escala mundial.
Nesse contexto, as margens de manobra em Genebra são nulas. Pode-se usar o deslize do chanceler Celso Amorim como pretexto para o impasse. Estampar em manchetes que "menção ao nazismo atrapalha negociação crucial de comércio", mas o fato é que, defendidos interesses soberanos, esse é um encontro natimorto. O que é ótimo.
A rigor, o único prejudicado com o fracasso da Rodada de Doha é o agronegócio, setor que se notabiliza por concentrar renda e pelos danos ambientais impostos à população pobre do campo. Como destacou o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, "a ênfase no modelo agroexportador torna o Brasil vulnerável no mercado internacional, dependente de produtos de baixo valor agregado e cujos preços oscilam muito a cada ano". É esse o projeto "estruturante" que queremos?
Do ponto de vista da geração de empregos e da produção de alimentos para o mercado interno, a ausência de acordo em Genebra é irrelevante. Mas parece que o mais propício, no momento, é buscar crescimento do comércio exterior com outros países em desenvolvimento. Mais que nunca fortalecer o Mercosul e estreitar laços com África do Sul, Índia e China.
Ninguém discute a importância da OMC e o papel do multilateralismo em todas as esferas do mundo atual, mas aos que defendem uma minimização do papel do Estado como forma de ampliar o livre comércio entre empresas de todo o mundo, a advertência do economista John Gray deve ser repetida à exaustão.
"Tanto na teoria quanto na prática, o efeito da mobilidade total do capital é anular a doutrina ricardiana da vantagem comparativa". Não é hora de vender soja para comprar trator.
Fonte: Agência Carta Maior.
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