Mauro Santayana
Nas guerras do passado, os exércitos se organizavam frente a frente, em lugares adequados para o confronto. Com todo o apelo que se fazia à honra nos combates, usavam-se estratagemas sórdidos para iludir os inimigos e armas cruéis, embora não fossem regras gerais. Na famosa batalha de Crécy, uma das primeiras e mais sangrentas da Guerra dos Cem Anos, em agosto de 1346, Eduardo III venceu Filipe IV da França. Nela, entre outros, morreram o conhecido guerreiro João de Luxemburgo, Rei da Boêmia – famoso por ser cego e buscar guerras em que lutar – Luis II, Conde de Flandres e Charles de Alençon, irmão do rei francês, e mais 1.500 nobres dos dois lados. No início da contenda, com os arqueiros preparados frente a frente, segundo os cronistas do tempo, os franceses convidaram os britânicos a iniciar o combate: tirez-vous, messieurs! – ao que os ingleses contestaram: aprés-vous, messieurs! Provavelmente atiraram ao mesmo tempo.
O Rio de Janeiro se tornou campo de batalha. Em cada ano, há mais baixas nas cidades brasileiras do que nas pradarias de Crècy, naquele agosto de há mais de seis séculos. A guerra, aqui, não tem o romantismo de João da Boêmia, que amarrara o seu cavalo aos de seus quatro escudeiros, avançando, lança em riste, sobre os ingleses, na mais absoluta cegueira, para morrer como herói.
A guerra, entre nós, não tem frentes. É um jogo no qual a vítima está sempre vendada pelas circunstâncias. Ora são jovens delinqüentes que matam o menino João Hélio, de seis anos, atado pelo cinto de segurança e arrastado pelo carro; ora é a polícia que assassina o menino João Roberto, de 3 anos, ao lado de sua mãe, em veículo estacionado. A polícia mata pobre camelô que protege a filha; no outro dia, jovem seqüestrado é abatido pelos policiais que o deviam salvar. É fácil dizer que são os bandidos do tráfico de drogas que movem guerra contra os cidadãos honrados e suas famílias. Esta é uma verdade, mas as verdades menores quase sempre nascem de verdades maiores. Um dos grandes sociólogos da atualidade, o americano Alejandro Portes, nascido em Cuba, que estudou a situação das favelas no Chile, no México e no Brasil, diz em seu ensaio Rationality in the Slum (citado por Moses I. Finley em Democracy ancient and modern: "O erro mais grave das teorias sobre os subúrbios miseráveis é o de transformar as condições sociológicas em traços psicológicos, e atribuir às vítimas as características deformadas de seus algozes. Na prática, a suposição de irracionalidade dos moradores dos aglomerados miseráveis levou a incitações incessantes (contra eles), conduzindo ao cumprimento das piores previsões".
Moses Finley acrescenta ser equivocada a lógica que nega a grandes grupos da população a participação efetiva no processo democrático de decisões, sob o pretexto de que suas exigências são extremadas. É assim que pode ser vista, entre nós, a repressão a movimentos como os dos sem terra e os dos sem teto.
Sabemos que o surgimento das favelas no Rio de Janeiro, há mais de um século, foi conseqüência da Guerra de Canudos, movida contra uma comunidade de retirantes sertanejos, tangidos pela miséria e que a ninguém ameaçava. Os veteranos das tropas repressoras vieram em busca dos empregos prometidos pelos chefes militares. Acamparam exatamente onde se encontra hoje o Morro da Providência – e lhe deram o nome de Favela, evocando o lugar da última e decisiva batalha do conflito no sertão. Se a República houvesse distribuído terras – naquele tempo fartas e baratas – a todos eles, outro teria sido o destino dos morros cariocas.
A criminalidade cresceu com o tráfico de drogas, mas não se encontram nos morros do Rio e das outras cidades brasileiras as plantações de maconha e coca, as sofisticadas usinas de refino, nem o grande mercado consumidor. Os jovens do morro são facilmente recrutados, como recrutados foram os combatentes de Canudos, nos contingentes dos desempregados, sem escolaridade e sem lares sólidos. Se houver boa pesquisa genealógica no Morro da Providência, ali serão encontrados bisnetos e tetranetos dos sobreviventes de Canudos. Provavelmente muitos deles tenham tombado na guerra dos morros, como ocorreu aos rapazes que um acovardado tenente do Exército entregou aos algozes do Morro da Mineira. Enfim, de um ou do outro lado, as vítimas são as de sempre.
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