terça-feira, 22 de julho de 2008

ANOS DE CHUMBO XXXI - Sem sangue.

Sem sangue


Emiliano José
...Nunca tive oportunidade de me perguntar. Vocês entraram em casa, o senhor atirou nele, depois Salinas atirou nele, e no fim El Gurre enfiou o cano da metralhadora na garganta dele e com uma rajada curta e seca fez sua cabeça explodir...

Era meio da tarde. Comecinho de setembro. Do já longínquo 1971. Penitenciária Lemos Brito. Cidade de Bahia. Salvador. Galeria F. Corpo IV. Não me lembro se chovia ou fazia sol.

O guarda avisou. Não sei se foi Bezerra, se foi Cretiotônio, se foi Major. O guarda de plantão. Um frio percorreu a espinha. Era assim quando o guarda chamava e nos avisava: prepare-se para viajar. Um mergulho no desconhecido, sempre. Podia ser tudo, inclusive voltar à tortura.

Estava preso desde novembro de 1970. Quando estávamos numa penitenciária, ultrapassado o momento dos quartéis, pensávamos que a fase da tortura já passara. Nem sempre, no entanto. Eu me preparei. Para o pior.

Arrumei as coisas – que coisas? Não tinha quase nada na cela, roupa nenhuma ou quase nenhuma. Usávamos as fardas da prisão. Mas, arrumei o que tinha, duas ou três cuecas, uma camisa, sei lá. Um sapato, que tinha ganhado de dona Clarice. Sem saber o meu destino.

Destino de 25 anos, minha idade então.

Aqueles dias eram nervosos para todos nós. A ditadura caçava Lamarca no sertão. Na cadeia, tudo se sabe, que ninguém se engane. A notícia chega antes, insinua-se pelas galerias, intromete-se entre as grades, não há quem evite. Lamarca podia ser morto. Tristes, estávamos assim.

Nós sofríamos. E nada podíamos fazer. Eu fui surpreendido pela notícia de que ia viajar nesse clima. E a quem está preso resta embarcar. Sem destino. Não há resistência possível. O coração aos pulos, emoções à flor da pele.

Medo, mesmo sob controle. Medo. Ninguém está imune ao medo. Resta saber como convive com ele.
E a gente embarca num camburão. Ao menos eu embarquei num. E algemado, tentava olhar pelas frestas, e não adivinhava para onde me levavam. A paisagem surge aos pulos entre as frestas, recortada, sem distinção, sem possibilidade de aferição.

O coração ia se acostumando, menos acelerado. Não posso dizer que relaxara. Ou que estava menos tenso. Parecia uma eternidade o trajeto. Uma eternidade indesejada. Monótona e tensa simultaneamente.

...Como sei? Ele contou. Gostava de contar. Era um animal. Todos vocês eram animais. Vocês, homens, sempre são animais na guerra, como Deus vai fazer para perdoá-los?

Quando desembarquei, já mais para o final da tarde, quem sabe 17 horas e alguma coisa, achei que devia estar na Base Aérea de Salvador. É, pelo menos quanto ao espaço, o prisioneiro perde um pouco o sentido, ao menos do espaço externo.

Fui levado para um avião. E aí o meu coração disparou novamente, agora meio descompassado. Tudo o que eu temia, paulista preso na Bahia, era ser levado para a OBAN. Subir num avião parecia isso. O destino era a OBAN.

O avião era militar. Uma algazarra quando entrei. Algazarra de armas. Tiras à mão cheia. Eu podia sentir o cheiro. O clima fétido. Vi o terror. Fleury no avião. Confirmava-se o meu temor.

Eram os tiras que vieram para a caçada de Lamarca. Aproveitaram a viagem e iriam me levar para São Paulo. Tudo que eu não queria. Havia resistido à tortura na Bahia. Não queria passar por experiência semelhante ou pior em São Paulo. Na OBAN.

Passaram sete dias no sertão caçando Lamarca. Não conseguiram nada. Lamarca só será morto numa segunda investida, sem Fleury. Quem quiser saber mais detalhes pode ler o livro que eu e Oldack Miranda escrevemos sobre o Capitão. Lamarca, o Capitão da Guerrilha. Aquele avião levava de volta os policiais do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo, que vieram para a caçada. Malsucedida até ali.

Olhando assim, o senhor parece um homem normal, que veste o seu sobretudo surrado e, quando tira os óculos, guarda-os cuidadosamente no estojo cinza. Limpa a boca antes de beber, os vidros de seu quiosque brilham, quando atravessa a rua, olha bem à direita e à esquerda, o senhor é um homem normal...

Algemado. Continuava algemado. O avião decolou. Antes, no entanto, que decolasse ouvi algum tira gritar : Jesus Cristo!

Olhei. Era alto, magro, barba, rala. Cabelos compridos, rabo de cavalo. Nós, presos políticos, já sabíamos da existência dele. O que se sabia era de um jovem. Muito cruel, sádico. E ele era brincalhão, bem humorado na sua juventude.

Claro, pode até haver confusão. E o Jesus Cristo pode ser outro. Mas, quando vi a foto atual, e a capa e a matéria de CartaCapital sobre um torturador à solta, não tive muita dúvida. Dirceu Gravina também participou da caçada a Lamarca. Quem sabe ele próprio possa responder, não é verdade?

Responder na Justiça, com todas as garantias constitucionais, que nós não tivemos. Responder como foi a caçada a Lamarca, as andanças pelo sertão, as ordens de Fleury, as dificuldades, o retorno sem glória.

É, porque Fleury e seus asseclas buscavam a glória de matar o Capitão. Jesus Cristo podia responder a tudo isso, sem quaisquer constrangimentos, sob garantias legais. Inclusive onde comprara os chapéus de palha, o berimbau. É, no avião havia muito chapéu de palha e berimbau.

Recuerdos de uma caçada. Pode, quem sabe, mais tarde, ter mostrado aquelas lembranças a filhos e netos. Claro que a filhos e netos não se contam as crueldades feitas, a perversidade das torturas, a alegria com que causava dor nas pessoas. No máximo, se ouvir alguma admoestação dos filhos netos dirá que cumpria ordens. Só não dirá que o fazia com imensa satisfação.

E podia dizer à Justiça por que ele e seus companheiros tinham tanto medo do Capitão. No avião, naquela eternidade, eles conversavam. É. Falavam de medo. Tinham medo do Capitão, muito medo, apesar de ele estar acuado. Foi morto covardemente mais tarde, como se sabe, e como contamos, eu e Oldack, no nosso livro.

O avião fez uma escala no Rio, onde desceram alguns dos tiras. Estava com uma vontade enorme de urinar. Pedi. Desci. Um dos policiais, metralhadora à mão, me acompanhou. Fui para um mato ralo, ao lado da pista. Desci o zíper. A metralhadora olhava. Apontava pra mim o tempo todo. Tentei. Não urinei. Não teve jeito.

...E, no entanto, viu meu irmão morrer sem razão, apenas um menino segurando um fuzil, uma rajada e acabou-se, o senhor estava ali, e não fez nada, tinha vinte anos, santo Deus, não era um velho decrépito, era um rapaz de vinte anos e, no entanto, não fez nada, quer me fazer um favor?

Subi novamente no avião. A vontade de urinar persistia. E não havia jeito a dar. Jesus Cristo seguiu viagem para São Paulo. Fleury também. Eu, certo de que iria parar na OBAN. A tortura novamente. A certeza de que deveria negar tudo outra vez, sem saber quais os suplícios que iria enfrentar, além do pau-de-arara, do afogamento, do espancamento, do choque elétrico pelos quais havia passado no Quartel do Barbalho, em Salvador. E será que conseguiria negar tudo de novo?

Desembarquei e quando me dei conta estava de fato na OBAN. Terror. Logo depois fui levado para o Quartel do Ibirapuera. Para meu sossego, fui descobrir que a OBAN, no meu caso, era apenas um ponto de passagem. Fora levado para São Paulo para responder a dois processos. E, mais tarde, no final do ano, fui recambiado de volta à Bahia, para a mesma Penitenciária Lemos Brito, onde cumpri pena até o final de 1974. Na pequena cela do quartel, urinei, demoradamente. Nunca mais vi Jesus Cristo.

...quer me fazer um favor?, me explique como tudo isso é possível, tem como me explicar que uma coisa dessas pôde de fato acontecer, que não é o pesadelo de um doente, que foi uma coisa que aconteceu, me diga como é possível? (as citações são do livro Sem sangue, de Alessandro Baricco, da Companhia das Letras)

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