Fidel Castro: As duas Coréias (parte II)
Havana, 25 jul (Prensa Latina) O líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, previu que passo a passo, sem pressa mas sem trégua, como corresponde a sua cultura e a sua história, continuarão sendo tecidos os laços que unirão às duas Coréias.
"Aos países do Terceiro Mundo interessa-lhes a amizade e cooperação entre a China e ambas as partes da Coréia, cuja união não tem que ser necessariamente uma a custa da outra, como ocorreu na Alemanha, hoje aliada dos Estados Unidos na OTAN", destacou Fidel Castro em suas mais recentes reflexões, publicadas hoje pelo jornal Granma.
Num artigo titulado "As duas Coréias (parte II)", especial para a publicação digital Cubadebate, o líder cubano afirmou que "com a do Sul desenvolvemos progressivamente nossos vínculos; com a do Norte existiram sempre e os continuaremos fortalecendo".
A Prensa Latina transmite a seguir o texto na íntegra:
Reflexões do companheiro Fidel
As duas Coréias (parte II)
Tomado de Cubadebate
Em 19 de outubro de 1950 mais de 400 mil combatentes voluntários chineses, cumprindo as instruções de Mao Tsé-Tung, cruzaram o Yalu e foram ao encontro das tropas dos Estados Unidos que avançavam para a fronteira chinesa. As unidades norte-americanas, surpreendidas pela enérgica ação do país ao que tinham subestimado, viram-se obrigadas a retroceder até as proximidades da costa sul, devido ao empurre das forças combinadas de chineses e coreanos do Norte. Stalin, que era sumamente cauteloso, prestou uma cooperação muito menor que a esperada por Mao, ainda que valiosa, mediante o envio de aviões MiG-15 com pilotos soviéticos, numa frente limitada de 98 quilômetros, que na etapa inicial protegeram às forças de terra em seu intrépido avanço. Pyongyang foi de novo recuperada e Seul ocupada outra vez, desafiando o incessante ataque da força aérea dos Estados Unidos, a mais poderosa que já existiu.
MacArthur estava ansioso para atacar a China com o emprego das armas atômicas. Demandou seu uso depois da humilhante derrota sofrida. O presidente Truman viu-se obrigado a substituí-lo do comando e nomear ao general Matthews Ridgway como chefe das forças de ar, mar e terra dos Estados Unidos no cenário de operações. Na aventura imperialista da Coréia participaram, junto aos Estados Unidos, o Reino Unido, França, Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Grécia, Canadá, Turquia, Etiópia, África do Sul, Filipinas, Austrália, Nova Zelândia, Tailândia e Colômbia. Este país foi o único participante pela América Latina, sob o governo unitário do conservador Laureano Gómez, responsável por matanças em massa de camponeses. Com ela, como se viu, participaram a Etiópia de Haile Selassie, onde ainda existia a escravidão, e a África do Sul governada pelos racistas brancos.
Fazia apenas cinco anos que a matança mundial iniciada em setembro de 1939 havia terminado, em agosto de 1945. Após sangrentos combates no território coreano, o Paralelo 38 voltou a ser o limite entre o Norte e o Sul. Calcula-se que morreram nessa guerra cerca de dois milhões de coreanos do Norte, entre meio milhão ou um milhão de chineses e mais de um milhão de soldados aliados. Por parte dos Estados Unidos perderam a vida ao redor de 44 mil soldados; não poucos deles eram nascidos em Porto Rico ou outros países latino-americanos, recrutados para participar em uma guerra à que os levou a condição de imigrantes pobres.
O Japão obteve grandes vantagens dessa contenda; em um ano, a manufatura cresceu 50%, e em dois recuperou a produção que tinha antes da guerra. Não mudou, no entanto, a percepção dos genocídios cometidos pelas tropas imperiais na China e Coréia. Os governos do Japão renderam culto aos atos genocidas de seus soldados, que na China tinham violentado a dezenas de milhares de mulheres e assassinado brutalmente a centenas de milhares de pessoas, como já se explicou numa reflexão. Sumamente trabalhadores e tenazes, os japoneses transformaram seu país, desprovido de petróleo e outras matérias primas importantes, na segunda potência econômica do mundo.
O PIB do Japão, medido em termos capitalistas —ainda que os dados variam segundo as fontes ocidentais—, ascende hoje a mais de 4,5 trilhões de dólares, e suas reservas em divisas atingem mais de um trilhão. É ainda o dobro do PIB da China, 2,2 trilhões, ainda que esta possua 50% a mais de reservas em moeda convertível que esse país. O PIB dos Estados Unidos, 12,4 trilhões, com 34,6 vezes mais território e 2,3 vezes mais população, é apenas três vezes maior que o do Japão. Seu governo é hoje um dos principais aliados do imperialismo, quando este se encontra ameaçado pela recessão econômica e as armas sofisticadas da superpotência se esgrimem contra a segurança da espécie humana.
São lições inapagáveis da história.
A guerra, por sua vez, afetou consideravelmente a China. Truman deu ordens à VI Frota de impedir o desembarque das forças revolucionárias chinesas que culminariam a libertação total do país com a recuperação de 0,3 por cento de seu território, que havia sido ocupado pelo resto das forças pró ianques de Chiang Kai-shek que para ali fugiram.
As relações chinesas-soviéticas se deterioraram depois, depois da morte de Stalin, em março de 1953. O movimento revolucionário dividiu-se em quase todos os lugares. O apelo dramático de Ho Chi Minh deixou registro do estrago ocasionado, e o imperialismo, com seu enorme aparelho midiático, atiçou o fogo do extremismo dos falsos teóricos revolucionários, um tema no qual os órgãos de inteligência dos Estados Unidos se transformaram em especialistas.
À Coréia do Norte lhe correspondeu, na arbitrária divisão, a parte mais acidentada do país. Cada grama de alimento tinha que ser obtida a custa de suor e sacrifício. De Pyongyang, a capital, não restou pedra sobre pedra. Um número elevado de feridos e mutilados de guerra tinha que ser atendido. Estavam bloqueados e sem recursos. A URSS e os demais Estados do campo socialista se reconstruíam.
Quando cheguei em 7 de março de 1986 à República Popular Democrática da Coréia, quase 33 anos após a destruição deixada pela guerra, era difícil acreditar o que ali havia acontecido. Aquele povo heróico tinha construído uma infinidade de obras: grandes e pequenas represas e canais para acumular água, produzir eletricidade, abastecer cidades e regar os campos; termoelétricas, importantes indústrias mecânicas e de outros ramos, muitas delas debaixo da terra, encravadas nas profundidades das rochas a base de trabalho duro e metódico. Por falta de cobre e alumínio, viram-se obrigados a utilizar inclusive ferro em linhas de transmissão devoradoras de energia elétrica, que em parte procedia da hulha. A capital e outras cidades arrasadas foram construídas metro a metro. Calculei milhões de moradias novas em áreas urbanas e rurais e dezenas de milhares de instalações de serviços de todo o tipo. Infinitas horas de trabalho estavam transformadas em pedra, cimento, aço, madeira, produtos sintéticos e equipamentos. As plantações que pude observar, onde quer que tenha ido, pareciam jardins. Um povo bem vestido, organizado e entusiasmado estava em todos os lugares, recebendo ao visitante. Merecia a cooperação e a paz.
Não houve tema que não fosse discutido com meu ilustre anfitrião Kim Il Sung. Não o esquecerei.
A Coréia ficou dividida em duas partes por uma linha imaginária. O Sul viveu uma experiência diferente. Era a parte mais povoada e sofreu menos destruição naquela guerra. A presença de uma enorme força militar estrangeira requeria o fornecimento de produtos locais manufaturados e outros, que iam desde o artesanato até as frutas e vegetais frescos, além dos serviços. Os gastos militares dos aliados eram enormes. O mesmo ocorreu quando os Estados Unidos decidiu manter indefinidamente uma grande força militar. As multinacionais do Ocidente e do Japão investiram nos anos da Guerra Fria quantias consideráveis, extraindo riquezas sem limites do suor dos sul-coreanos, um povo igualmente trabalhador e abnegado como seus irmãos do Norte. Os grandes mercados do mundo estiveram abertos aos seus produtos. Não estavam bloqueados. Hoje o país atinge elevados níveis de tecnologia e produtividade. Sofreu as crises econômicas do Ocidente, que permitiram a aquisição de muitas empresas sul-coreanas pelas transnacionais. O caráter austero de seu povo permitiu ao Estado a acumulação de importantes reservas em divisas. Hoje suporta a depressão econômica dos Estados Unidos, em especial os elevados preços de combustíveis e alimentos, e as pressões inflacionárias derivadas de ambos.
O PIB da Coréia do Sul, 787 bilhões 600 milhões de dólares, assim como o do Brasil (796 bilhões) e México (768 bilhões), ambos com abundantes recursos de hidrocarbonetos e populações incomparavelmente maiores. O imperialismo impôs às mencionadas nações seu sistema. Dois ficaram para trás; a outra avançou bem mais.
Da Coréia do Sul mal emigram ao Ocidente; do México, o fazem em massa para o atual território dos Estados Unidos; do Brasil, América do Sul e América Central, a todos os lugares, atraídos pela necessidade de emprego e pela propaganda consumista. Agora são retribuídos com normas rigorosas e depreciativas.
A posição de princípios sobre as armas nucleares subscrita por Cuba no Movimento de Países Não Alinhados, ratificada na Conferência Cúpula de Havana em agosto de 2006, é conhecida.
Saudei pela primeira vez ao atual líder da República Popular Democrática da Coréia, Kim Jong Il, quando cheguei ao aeroporto de Pyongyang e ele estava discretamente situado a um lado do tapete vermelho próximo ao seu pai. Cuba mantém com seu governo excelentes relações.
Ao desaparecer a URSS e o campo socialista, a República Popular Democrática da Coréia perdeu importantes mercados e fontes de fornecimentos de petróleo, matérias primas e equipamentos. Assim como para nós, as conseqüências foram muito duras. O progresso atingido com grandes sacrifícios viu-se ameaçado. Apesar disso, mostraram a capacidade de produzir a arma nuclear.
Quando se aconteceu ao redor de um ano o ensaio pertinente, transmitimos ao Governo da Coréia do Norte nossos pontos de vista sobre o estrago que isso poderia ocasionar aos países pobres do Terceiro Mundo que travavam uma luta desigual e difícil contra os planos do imperialismo em uma hora decisiva para o mundo. Talvez não fosse necessário fazê-lo. Kim Jong Il, já chegado a esse ponto, havia decidido de antemão o que devia fazer, tomando em conta os fatores geográficos e estratégicos da região.
Satisfaz-nos a declaração da Coréia do Norte sobre a disposição de suspender seu programa de armas nucleares. Isto não tem nada que ver com os crimes e chantagens de Bush, que agora se gaba da declaração coreana como sucesso de sua política de genocídio. O gesto da Coréia do Norte não era para o governo dos Estados Unidos, ante o qual não cedeu jamais, senão para a China, país vizinho e amigo, cuja segurança e desenvolvimento é vital para os dois Estados.
Aos países do Terceiro Mundo interessa-lhes a amizade e cooperação entre a China e ambas as partes da Coréia, cuja união não tem que ser necessariamente uma a custa da outra, como ocorreu na Alemanha, hoje aliada dos Estados Unidos na OTAN. Passo a passo, sem pressa, mas sem trégua, como corresponde a sua cultura e a sua história, continuarão sendo tecidos os laços que unirão às duas Coréias. Com a do Sul desenvolvemos progressivamente nossos vínculos; com a do Norte existiram sempre e os continuaremos fortalecendo.
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