Plano Condor nasceu no Brasil
Gustavo Veiga
Página 12
Jair Kirschke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, é um dos mais veteranos entre os ativistas de direitos humanos no Brasil. Defende que o ponto de vista dos militares de seu país impulsionaram no Brasil o Plano Condor e lembra operativos realizados na Argentina no início dos anos 70.
Por que defende que o Plano Condor nasceu no Brasil?
Apoio-me em fatos claros e conhecidos. E é importante destacar que o aparato repressivo brasileiro trabalhou sempre muito vinculado com o aparato repressivo argentino. Inclusive, quando na Argentina havia democracia, antes do golpe de 1976. Meu país inaugurou a doutrina da Segurança Nacional em 1964, com a ditadura. Algo que nossas nações nem conheciam. E o Brasil, nesse ano, começou a organizar seus serviços de inteligência. Até então, não existiam serviços bem elaborados, tão bem pensados para o mal. Houve uma figura importantíssima, o general Golbery do Couto e Silva, que se encarregou de fazer isso.
- Você falou de fatos conhecidos. Quais são?
- Primeiro é uma operação que o Brasil realiza em Buenos Aires. Uma clássica operação no ano de 1970. Na Argentina estava refugiado um coronel do exército brasileiro, Jefferson Cardin de Alencar Osório junto com seu filho e um sobrinho. Prenderam-no e o levaram ao Rio de Janeiro onde cumpriu uma pena de sete anos.
Por que o prenderam?
- Por razões políticas. Era um tipo muito interessante o coronel, que havia liderado um grupo guerrilheiro depois do golpe. Havia se exilado em Montevidéu onde se organizou para ingressar no Brasil. Tomou rádios, assaltou quartéis e havia saído em táxi da capital uruguaia em um fato bastante louco.
Houve algum outro episódio na Argentina em que as forças armadas brasileiras tenham tido participação?
- Sim. Em 1972 um major do exército brasileiro, Joaquim Pires Cerveira havia se exilado em Buenos Aires junto cm um jovem estudante, João Batista Rita Pereda e foram presos. Também os levaram para o Rio de Janeiro onde várias pessoas viram como eram brutalmente torturados. Os dois estão desaparecidos. E como no Brasil estes fatos não são publicados, a notícia saiu em The Guardian, um jornal britânico que escreveu até o nome da rua onde haviam sido torturados.
Até agora você citou dois casos que atingiram basicamente militares. Houve também mais vítimas civis?
- Não tenho a data precisa, mas um militante nosso, Félix Luis Camargo, um negro enorme, forte e que era guerrilheiro, vivia no Chile e viajava a Montevidéu quando em uma escala em Ezeiza o tiraram do avião. Sobre o caso eu falei no Uruguai. Um país onde esteve um diplomata brasileiro importantíssimo, Tim Correa, de quem recentemente se conseguiu provas para vincula-lo com a criação de um serviço secreto no Itamaraty, no seio da diplomacia brasileira. Este senhor ia também a Buenos Aires onde pedia a prisão de alguém, depois ia um avião da força aérea brasileira a Ezeiza, o detido era entregue e este embaixador assinava um recibo para os repressores.
É verdade que outra peça chave do Plano Condor foi o embaixador brasileiro em Santiago do Chile quando ocorreu o golpe contra o governo de Salvador Allende?
- Sim, era chamado de quinto integrante da junta com o exército, a marinha, aeronáutica e carabineiros. Isso diziam os militares chilenos. Trata-se de Antonio Câmara Canto, que além disso estava acompanhado por uma quantidade importante de agentes brasileiro, do serviço nacional de informações e da polícia federal do nosso país. Sua tarefa era seguir os cinco mil exilados brasileiros que havia no Chile. Observe quem vivia lá. Fernando Henrique Cardoso, José Serra, que hoje é o governador de São Paulo e nosso grande pedagogo, Paulo Freire. Todos gente muito qualificada que tinha saído a partir do golpe de 1964. Inclusive, antes que Allende chegasse ao poder no Chile.
De que modo se envolveu Câmara Canto no Plano Condor?
- No livro de um ex-embaixador norte-americano se conta o que fazia e outro diplomata que formulou declarações perante o senado dos Estados Unidos disse que Câmara Canto convidou vários embaixadores a apoiar o golpe. Na noite de 11 de setembro de 1973, no magnífico prédio da embaixada brasileira em Santiago, o tipo gritava: ganhamos, ganhamos... Este embaixador continuou no Chile até setembro de 1975. Por que até essa data? Porque nos últimos dias de novembro e nos primeiros de dezembro houve uma famosa reunião em Santiago do Chile na qual formalmente se decidiu fazer a Operação Condor. E os preparativos se deram com a participação de Câmara Canto.
E havia militares brasileiro também?
- Recentemente se soube o nome de um coronel brasileiro que participou da reunião. Mas os militares brasileiros tiveram cautela para não deixar impressões digitais no que faziam. Sabemos quem eram os de outros paises, mas do Brasil só se tomou conhecimento há pouco tempo. No quadro da doutrina de Segurança Nacional em que as fronteiras geográficas não eram levadas em conta e sim as ideologias, o Brasil, para nossos militares, devia ser a nação hegemônica da região. E eles não permitiriam que em seus limites houvesse governos de esquerda ou, pelo menos, progressistas. Isto era intolerável. Aí tem a Operação 30 Horas, algo impressionante...
O que se havia planejado para invadir o Uruguai se o general Líber Seregni ganhasse nas eleições presidenciais?
- Sim, chamaram-no assim porque o Brasil ocuparia em 30 horas o Uruguai. Foi pelo ano 1971. Se Seregni ganhasse os militares tomariam o país. Hoje, além de documentos, temos declarações. Eram tão preocupantes as eleições no Uruguai que houve reuniões entre nosso presidente, o general Garrastazu Médici, Ruchard Nixon, Henry Kissinger e Vernon Walters para tratar desse tema. Um militar brasileiro disse em janeiro de 2007 em um programa de TV que se chama História, que os uruguaios haviam pedido a invasão durante o governo de Pacheco Areco. O jornalista que o entrevistava, que sabe muito do Plano Condor, se surpreendeu quando o ouviu dizer isso.
É conhecido o número aproximado de quantos argentinos se refugiaram no Brasil nos anos 70?
- Nós recebemos mais de duas mil pessoas. Mas não sei quantos argentinos, quantos uruguaios, quantos chilenos. E o fizemos sempre em colaboração com a Acnur.
Qual foi o papel que desempenhou a Igreja de seu país na defesa dos direitos humanos? Houve esforços isolados como os de Helder Câmara ou Evaristo Arns ou os apoiou institucionalmente?
- Tratou-se de bispos isolados. Com o golpe de 64 a Igreja colocou em marcha aquilo da marcha com Deus e pela Liberdade. Tradição, Família e Propriedade. Justamente havia passado pelo Brasil o padre norte-americano que juntava multidões nas praças de São Paulo, Rio e Porto Alegre, falando um pouco em português e um pouco em espanhol.
?Irmãos...!?, dizia (imitando-o). Falava com uma pregação contra os comunistas. Aparecia na televisão com o rosário, com uma imagem de Nossa Senhora. Isso foi em tempos do pré-golpe. E bispos importantes estavam metidos nisso. Até que depois, outros, começaram a aparecer publicamente contra a ditadura.
- Você nos disse que os militares brasileiros não deixaram pegadas. Em que se baseia para afirmar isso?
- Tiveram tanta cautela que, hoje em dia, na Argentina há uma grande quantidade de militares detidos, no Uruguai há dois ex-presidentes condenados e no Chile acabam de condenar o general Contreras pelo crime do general Prats. Mas no Brasil ao há nem um condenado. Mesmo agora, depois de haver trabalhado com o promotor italiano Giancarlo Capalbo o tema do Tribunal Penal de Roma desde 7 de dezembro de 1999, temos os casos de dois ítalo-argentinos desaparecidos no Brasil. E a justiça italiana, em 24 de dezembro de 2007, determinou o pedido de captura de 146 repressores do Peru, Bolívia, Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina e Brasil. Até aí, os militares brasileiros nunca havia sido incomodados para nada.
Quantos integrantes das forças armadas de seu país estão envolvidos nesse grupo?
- Treze.
Em que período foram cometidos os delitos de que são acusados?
- Em 1980, em meu primeiro caso, investigamos a operação realizada no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, em 12 de março desse ano. É a causa do seqüestro de Horacio Campiglia e Mônica Pinus de Binstock. Também há outro de 26 de junho em Uruguaiana, onde desapareceu Lorenzo Ismael Viñas, que é filho de David Viñas. Ele vinha em ônibus para o Brasil. Isto é muito interessante do ponto de vista jurídico porque no ano de 1979 houve uma anistia. E quando a imprensa procurou o atual ministro da Justiça brasileiro, Tarso Genro, um homem de esquerda, para lhe perguntar sobre estes casos, respondeu que a anistia havia apagado tudo. Seus colegas jornalistas, insistentes, disseram-lhe que estava equivocado porque os delitos eram de 1980 e a lei os cobria até agosto de 79. Mas Genro, que era meu amigo, embora não posso dizer que agora seja, voltou a responder que como eram homicídios, os homicídios de 1980 haviam prescrito. Embora tenha esquecido que como é seqüestro com desaparecimento, o crime continua vigente. Com a publicação destas informações os militares enlouqueceram. E um deles, que está aposentado, me processou. Até um sargento me processou. E se eu lhe mostrasse a querela, dedica duas páginas a dizer: ?fui do aparato repressivo do exército com muitíssimo orgulho porque nós combatemos o comunismo?.
Qual é sua visão dos julgamentos que se seguem na Argentina contra os repressores da última ditadura?
- Eu diria que a Argentina é o que está mais adiantado entre todos os países da região. Houve uma luta de seu povo através das organizações de direitos humanos e também uma maior consciência do que havia acontecido. Trinta mil desaparecidos! Por favor! É algo tão grande que não há na Argentina nenhuma Pessoa que não tenha uma familiar, um amigo ou um conhecido desaparecido. Isso fez o povo argentino reagir de uma maneira muito justa. E ainda que não se tenha avançado em um primeiro momento, a Corte Suprema decidiu pela inconstitucionalidade das leis de obediência devida e ponto final para que na verdade começassem a andar as coisas. Além disso, vocês têm na figura de algum membro da Corte uma posição extraordinária baseada nos conceitos do direito internacional que, no Brasil, não temos.
Isto induz a pensar que em seu país será muito difícil avançar nas causas contra militares. As forças armadas continuam tendo muita influência sobre o poder político?
Eu digo que sim. E é porque fizeram um pacto com os governos, inclusive o de Lula, para manter o status quo. É incompreensível que até o dia de hoje continuem intocáveis. Não foram abertos os arquivos da repressão. A ONU solicitou formalmente ao Brasil que os abra. E nada. Existe uma sentença de outubro passado da Justiça Federal que determina a abertura dos arquivos. E nada... Há um pacto para que não se toque em certas coisas. Lula tem um general no gabinete vizinho, Jorge Félix, que durante uma entrevista disse que não convinha que fossem abertos os arquivos porque ali iam aparecer coisas terríveis. As declarações foram publicadas pela Folha de São Paulo. Parece-me que o presidente teria que ter dito a esse general, adeus, saia. Não se pode dizer essas barbaridades. É o responsável pela Segurança Institucional. E permanece desde o primeiro mandato de Lula.
Ocorrem situações deste tipo porque o presidente permite que haja impunidade?
- Na transição de FHC para Lula, o boletim oficial publicou um decreto com a assinatura de Fernando Henrique aumentando os prazos para a abertura dos arquivos. Ele não teria assinado uma coisa assim justamente no última dia de seu governo se não houvesse um acordo. E mais, pode parecer um disparate, mas Collor de Melo propôs uma lei no Congresso brasileiro que cuida da classificação e desclassificação de documentos e diz quem pode desclassificar e que não pode. Somente o presidente da República pode fazer isso com os documentos ultra-secretos. Outro dado: Lula criou um comitê interministerial para examinar os documentos e reclassificá-los, o que jamais se reuniu. E o fez em seu primeiro mandato.
É evidente que não esta nada de acordo com as decisões que Lula toma.
- E mais, tem que cumprir uma decisão judicial que chegou até o Supremo Tribunal e não o faz. É sobre a questão do Araguaia. Faz quase trinta anos um grupo de familiares de guerrilheiros desaparecidos levaram uma denúncia à Justiça Federal para saber onde se encontravam os corpos. E conseguiram por meio de um advogado, Luis Eduardo Greenhalg, uma decisão favorável: que se abrissem os arquivos para o tema do Araguaia. Mas o presidente depois o mandou ao advogado geral da União para entrar com um recurso contra a decisão. O Tribunal ratificou a abertura em outubro, passaram nove meses até hoje e a criança já pode nascer (sorri), embora a sentença não seja cumprida. E esses arquivos estão nas mãos do exército. Um exército cujo poder chega inclusive a fazer com que o presidente da República não cumpra uma sentença judicial. Impressionante, mas é assim.
Consequentemente, Lula tem para você uma dívida muito grande em matéria de direitos humanos?
- Lula e o PT, que nasceu como uma grande esperança para o povo, especialmente para os mais pobres, os mais humildes e agora nos encontramos diante de uma situação que não é assim. Na verdade, o tema dos direitos humanos recebe um mal tratamento do governo. Em determinado momento tinha, em nível de ministério, uma equipe de trabalho e quem estava à frente era um militante do PT de toda a vida, um ex-preso político e jornalista a quem sempre lhe negaram um espaço de importância: Nilmário Miranda. Agora, temos os direitos humanos no nível de uma secretaria nacional, vinculada ao gabinete do Presidente.
Quais são as principais violações aos direitos humanos do presente em um país como o Brasil?
- As violações aos direitos humanos não são somente da polícia que tortura e que mata. Eu sempre digo que, nós, no Brasil, temos o grande violador dos direitos humanos que é o Estado nacional, também os governos estaduais e as prefeituras. Porque negam atenção à infância, uma boa educação, não cuidam da saúde pública, não cuidam dos velhos e essas são violações dos direitos humanos. No Brasil acontecem coisas incríveis e o povo não percebe que a qualidade de vida vai diminuindo. Enquanto tratamos do passado, que é importante, falamos de um país onde se mata gente todos os dias. E especialmente a Polícia Militar.
Que é dependente das forças armadas ou é autônoma?
- É quase autônoma. Trata-se de uma invenção da ditadura a partir de 1968. Mas no Rio Grande do Sul existe há quase 170 anos. Em São Paulo há quase cem anos, como em Minas Gerais e Pernambuco, embora antes eram o exército do governador do estado. Não tinham atribuições de polícia. Em 1968, como lhe dizia, quando os militares dão o golpe dentro do golpe, em dezembro desse ano é publicado o ato institucional número 5 que termina com o hábeas corpus, estabelece a censura na imprensa, no teatro, na TV e também são criados por decreto as polícias militares e lhes dão atribuições. As forças armadas fizeram a constituição, que não foi referendada por ninguém, e em 1988, apesar de que tenhamos conseguido a nova constituição no Brasil, que a chamamos a constituição civil cidadã, por pressão dos militares, continua vigente uma disposição de que a polícia militar é reserva das forças armadas.
Para você é completamente absurdo?
- Eu sempre explico uma coisa para que se entenda bem como é o tema da polícia militar no Brasil, algo aberrante. Polícia vem do grego, polis, que significa cidade. E militar vem do latim, milis, de milícias. Então, os militares são treinados para que? Para enfrentar o inimigo, vence-lo e submete-lo a sua vontade. Isso é ser militar. Mas a polícia tem a ver com o cidadão que tem direito a proteção. Até o cidadão que comete um crime tem direito a proteção. Aqui temos polícia militar e continuamos sofrendo a mesma impunidade.
Enquanto isso, qual é a política para os milhões de pobres que tem seu país?
- Agora a repressão está direcionada contra eles. Isto me faz lembrar o encontro da Igreja Católica em Puebla, que se realizou sob a opção pelos pobres. E por isso, eu sempre digo aqui, no Brasil, a polícia já havia feito antes a opção pelos pobres, os três P: pobres, pretos (negros) e putas, que são as vítimas do sistema.
Quando a gente percebe que no Brasil a banca obtém lucros espetaculares, algo está funcionando mal.
Fonte:Centro da Mídia Independente.
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