o destruição do capitalismo da dívida (I)
por Henry C. K. Liu [*]
Cartoon de Rui Pedro Fonseca. Clique para ampliar. Num período de menos de um ano, aquilo que fora descrito pelas autoridades estado-unidenses como um problema financeiro temporário relacionado com o estouro da bolha habitacional redundou numa crise completamente madura no próprio núcleo do capitalismo de livre mercado.
Durante anos um punhado de analistas estivera a advertir que a desregulamentação maciça dos mercados financeiros e o erro da privatização do sector público durante as últimas duas décadas ameaçaria a viabilidade do capitalismo de livre mercado. Mas a fixação ideológica neoliberal permanece firmemente arraigada nos círculos dirigentes dos EUA, fertilizada pelas irresistíveis contribuições de campanha dos especuladores da Wall Street, expurgando metodicamente as agências reguladoras de tudo o que tentasse manter um senso de realidade financeira.
Esta ideologia de "o mercado sabe melhor" permitiu que o país deslizasse numa insustentável condução errática quanto à sua dívida maciça – assumida vertiginosamente por todos os participantes do mercado, que vão desde os bancos supostamente conservadores, bancos de investimento e outras instituições financeiras não bancárias, até corporações industriais, empresas patrocinadas pelo governo (government sponsored enterprises, GSEs) e indivíduos.
A outrora dinâmica economia dos EUA transformou-se num sistema em que é difícil encontrar alguma instituição, companhia ou indivíduo que não tenha a sua cabeça na dívida especulativa. O capitalismo subcapitalizado, também conhecido como capitalismo da dívida, foi o motor do crescimento da bolha da dívida estado-unidense nas últimas duas décadas. Este capitalismo canceroso é causado por um fracasso da banca central.
Face a um vasto colapso sistémico do capitalismo da dívida, onde o capital tornou-se perigosamente inadequado e novo capital arriscado e proibitivamente escasso, tendo sido esmagado pela dívida maciça colaterizada por excessivos activos de valor declinante e com uma crise de crédito que claramente exige reestruturação dinâmica e cuidados intensivos abrangentes, aqueles nos EUA que são responsáveis pelo bem estar financeiro do país parecem ter estado a reagir tacticamente de crise em crise com um roteiro de firme negação dos factos óbvios, dos sintomas e das tendências, sem sinais de qualquer grande estratégia ou plano coerente para salvar o sistema canceroso da auto-destruição estrutural.
Esta abordagem improvisada de curto prazo para artificialmente estimular preços de acções no mercado em colapso e para manter instituições financeiras insolventes com salva-vidas técnicos conduzirá apenas ao desastre a longo prazo de toda a economia.
Mas esta abordagem é preferido por aqueles que detêm autoridade, presos no auto engano de o capitalismo do mercado não regulamentado ainda ser fundamentalmente saudável. Eles tentam acalmar os mercados asseverando que a confusão actual é meramente um pequeno gargalo de liquidez que pode ser manuseado pela entrega por parte do banco central de mais liquidez contra o pleno valor facial de colaterais de valor em declínio.
A mensagem é que, se o dinheiro fácil na forma de dívida for tornado infindavelmente disponível, de certo modo a economia recuperará deste esmagamento do crédito, não obstante o facto de a dívida excessiva ter sido a causa do problema; ou de maus empréstimos poderem ser tornados bons pelo Congresso se der ao Tesouro dos EUA autoridade para comprar maus empréstimos com quantias ilimitadas de dinheiro dos contribuintes.
Mas estas medidas incrementais adoptadas até agora pelo Tesouro e pelo Federal Reserve dão a estas duas unidades do governo responsabilidade directas sobre a saúde financeira a longo prazo do país parecerem como correctores vigaristas (rogue traders) em pânico a comerciarem para as contas nacionais na esperança desesperada de marcarem uma vitória no próximo trimestre pela elevação da aposta, para conter alegadamente isolados pontos quentes de crise. O efeito agregado soma-se a uma vasta nacionalização invisível do insolvente sector financeiro. A sua receita para estabilizar um mercado de dívida desestabilizado é mais dívida pública para suportar socialismo corporativo.
Durante anos, qualquer um a advertir que as empresas patrocinadas pelo governo (GSEs), nomeadamente a Fannie Mae e o Freddie Mac, deveriam ser incluídas nas exigências normais de capitalização era ridicularizado pelas poderosas máquinas de lobby que estas GSEs empregavam como sendo um fomentador do medo. O capital é considerado como supérfluo no novo jogo do capitalismo da dívida erguido pelo complexo hedging circular. Em resultado, as GSEs tornaram-se a cauda monstruosa que sacode o cão das finanças habitacionais.
A conversa actual acerca da necessidade de conter a especulação nas commodities e nos mercados financeiros para estabilizar preços é despropositada, especialmente para os crentes do capitalismo de mercado. Todas as transacções de mercado são especulativas por natureza. A especulação tanto pode estabilizar preços como desestabilizá-los, mas apenas no curto prazo. Níveis de preços a longo prazo (inflação ou deflação), como Milton Friedman apropriadamente observou, são sempre fenómenos monetários. A actual tempestade no sistema financeiro, a implosão das hipotecas subprime, a crise de crédito da convulsão no mercado de papeis comerciais apoiados por activos, a subcapitalização dos bancos comerciais e de investimento, a disfunção das agências de classificação, a insolvência de seguradoras (de títulos) monoline, as perdas financeiras maciças das GSEs e a multidão de outros problemas financeiros que permeiam abaixo do radar dos media, são o resultado, e não a causa, desta turbulência do mercado. (Ver Perils of the debt-propelled economy , Asia Times Online, September 14, 2002.)
A Fanny Mae e o Freddy Mac, GSEs que desde 1938 proporcionavam fundos hipotecários para o mercado habitacional, foram criados como parte do New Deal para ajudar famílias de baixo rendimento. Eles foram privatizadas em 1958 em termos que alterariam o seu mandato social e inevitavelmente iria levá-los à perturbação financeira em grande escala. Finalmente, mas subitamente, estas GSEs encontraram-se em perigo de incumprimento das suas dívidas maciças, superiores a US$5 milhões de milhões (trillion), no decorrer uma única semana.
Está profundmente enraizada na cultura política dos EUA a visão de que o crédito é um serviço público financeiro, tal como o ar e a água, e deveria ser igualmente acessível a todos, não apenas aos ricos. A democracia económica tem sido o núcleo forte da democracia política estado-unidense. Mas de tempos em tempos, este princípio de democracia económica é ensombrado pelo extremismo do livre mercado que empurra a economia do país para dentro de extensas depressões.
O US National Housing Act foi promulgdo em 27 de Junho de 1934, como uma das várias medidas de recuperação económica do New Deal a fim de retirar o país da Grande Depressão. Ela lei permitiu o estabelecimento de uma Administração Federal da Habitação (Federal Housing Administration, FHA). O Título II do Housing Act dispunha acerca dos seguros dos empréstimos hipotecários feitos por prestamistas privados, removendo o risco desagregado no empréstimo dos mutuários de baixo rendimento para longe dos mutuantes privados e administrando o risco a uma escala nacional por meio de uma agência governamental a fim de aproveitar a lei dos grandes números, um teorema em probabilidades que descreve a estabilidade a longo prazo de uma variável aleatória. Estas associações eram para ser corporações independentes regulamentadas pelo administrador, e a sua finalidade principal era comprar e vender as hipotecas seguradas pelo FHA sob o Título II.
Apenas uma associação chegou a ser formada sob esta autoridade. Em 10 de Fevereiro de 1938, esta associação, a National Mortgage Association of Washington, tornou-se subsidiária da Reconstruction Finance Corp, uma corporação governamental. O seu nome foi alterado naquele mesmo ano para Federal National Mortgage Association (Fannie Mae). Com a emendas efectuadas em 1948, o Título II do US National Housing Act tornou-se a carta estatutária para a Fannie Mae.
A barreira do pagamento final
Antes da Grande Depressão, a compra de uma casa era difícil para a maior parte das pessoas nos EUA. Naquele tempo, um futuro comprador tinha de fazer um pagamento inicial de 40% e pagar a liquidar a hipoteca em três a cinco anos. Até o último pagamento, os mutuários pagavam apenas os juros do empréstimo. Todo o principal era pago numa quantia fixa como pagamento final (balloon payment). Os prestamistas podiam exigem o pleno pagamento do empréstimo pendente a qualquer momento que escolhessem, muitas vezes num momento menos vantajoso para os seus tomadores. Isto permitia aos mutuantes utilizarem arrestos como meios para tomarem posse das propriedades que desejavam.
Durante o período do boom da década de 1930 passou a existir um rudimentar mercado secundário de hipotecas. O crash do mercado de acções de 1929 terminou com o boom imobiliário e levou à insolvência muitas companhias privadas de garantias quando os preços entraram em colapso. Quando as condições económicas pioraram, cada vez mais tomadores de empréstimos deixaram de cumprir hipotecas porque não podiam conseguir o dinheiro para o pagamento final ou "rolar" (roll over) sua hipoteca devido ao baixo valor de mercado das suas casas.
A fim de retirar o país da Grande Depressão, o Congresso criou o FHA através do National Housing Act de 1934. O programa de seguros do FHA protegia os prestamistas do risco de incumprimento a longo prazo, nas hipotecas de taxa fixa. Como este tipo de hipoteca era impopular junto aos prestamistas e investidores privados, em 1938 o Congresso criou a Fannie Mae para refinanciar as hipotecas seguradas pelo FHA.
Quando os soldados da II Guerra Mundial voltaram para casa, o Congresso aprovou o Serviceman's Readjustment Act de 1944, o qual deu autoridade ao Department of Veterans Affairs (VA) para garantir empréstimos aos veteranos sem pagamento inicial ou exigências de prémios de seguros. Muitas instituições financeiras consideraram esta disposição um investimento mais atraente do que títulos de guerra.
Com a revisão do Título III, em 1954, a Fannie Mae foi convertida numa corporação de propriedade mista, ficando as suas acções preferenciais na posse do governo e as ordinárias na dos privados. Foi nesta altura a aprovação da Secção 312, que deu ao Título o título resumido de Federal National Mortgage Association Charter Act.
Com as emendas efectuadas em 1968, a Federal National Mortgage Association foi dividida em duas entidades separadas, uma que ficou conhecida como Government National Mortgage Association (Ginnie Mae) e a outra mantendo o nome de Federal National Mortgage Association (Fannie Mae). A Ginnie Mae permaneceu no governo e a Fannie Mae passou a ser possuída por acções reservadas ao governo. A Ginnie Mae tem operado como uma associação totalmente governamental desde as emendas de 1968. A Fannie Mae, como companhia privada a operar com capital numa base auto-sustentável, expandiu-se a comprar hipotecas para além dos tradicionais limites de empréstimo do governo, estendendo-se a um mais vasto conjunto de rendimentos.
No princípio da década de 70, a inflação e as taxas de juro subiram drasticamente. Muitos investidores afastaram-se para longe das hipotecas. A Ginnie Mae facilitou a tensão económica ao emitir em 1970 a sua primeira garantia com título apoiado por hipoteca (mortgage-backed security, MBS). Os investidores consideraram esta MBSs garantidas altamente atractivas. Também em 1970, sob o Emergency Home Finance Act, o Congresso permitiu à Federal Home Loan Mortgage Corp (Freddie Mac) que comprasse hipotecas convencionais de instituições financeiras seguradas a nível federal. A legislação também autorizou a Fannie Mae a comprar hipotecas convencionais. O Freddie Mac introduziu o seu próprio programa MBS em 1971.
As autorizações da Fannie e do Freddie dão a estas GSEs isenções de impostos estaduais e locais, permitindo-lhes exigências de capital relativamente magras, e proporcionando-lhe a capacidade para contrair empréstimos às mais baixas taxas possíveis a fim de conceder empréstimos a taxas próximas das do mercado. Ao longo dos anos, esta vantagem serviu não para reduzir os preços das casas e dos pagamentos de hipotecas a fim de ajudar compradores de baixo de rendimento e sim para enriquecer seguradoras de dívidas e correctores.
Vencimento da linha de crédito
Cada agência tem agora uma linha de crédito de US$2,25 mil de milhões junto ao Tesouro, estabelecida a aproximadamente 40 anos atrás pelo Congresso num tempo em que a Fannie tinha apenas cerca de US$15 mil milhões de dívidas abertas. Ela agora tem uma dívida total da ordem dos US$800 mil milhões, ao passo que o Freddie tem cerca de US$740 mil milhões. Hoje as duas companhias também possuem ou garantem empréstimos com valor facial de mais de US$5 milhões de milhões, cerca da metade das hipotecas do país. Analistas de mercado estimam que o valor de mercado deste passivo possa ser de menos de 50%, a menos que o mercado habitacional se recupere. Por outras palavras, as GSEs enfrentam uma exposição ao incumprimento de US$3,5 milhões de milhões se não puderem levantar novos fundos no mercado de crédito.
No princípio da década de 1980, a economia estado-unidense rodopiou para uma recessão profunda. As taxas de juros eram altas ao passo que os preços das casas estavam a cair, permanecendo para além do alcance de muitos compradores de rendimento baixo e médio porque o crescimento do rendimento permanecia estagnado. A economia dos EUA enfrentava um problema dual de deficiência de rendimento e desvalorização monetária. Neste fraco ambiente do mercado imobiliário, a Ginnie Mae, a Fannie Mae e o Freddie Mac criaram programas para manusear hipotecas de taxa ajustável. A garantia da Ginnie Mae é apoiado na fé absoluta e no crédito dos Estados Unidos. Hoje, os títulos MBS garantidos pela Ginnie Mae são um dos mais amplamente possuídos e comerciados no mundo. A Ginnie Mae garantiu mais de US$1,7 milhões de milhões em MBSs. Historicamente, 95% de todas as hipotecas FHA e VA foram titularizadas através da Ginnie Mae. A Ginnie Mae é uma fiadora, uma segurança. A Ginnie Mae não emite, vende ou compra MBSs, nem compra empréstimos hipotecários. A Ginnie Mae não está em aflição financeira.
A Fannie Mae é outra história. Muitas das opções inovativas em hipotecas introduzidas durante o princípio da década de 1980 para ressuscitar o fraco mercado habitacional em recessão foram exploradas para alimentar uma bolha habitacional com liquidez excessiva proporcionada pelo Federal Reserve, ajudando compradores de rendimento baixo e médio a comprarem casas que o seu rendimento estagnado não podia permitir. A Fannie continua a operar sob uma autorização do Congresso que a direcciona a canalizar os seus esforços para o aumento da disponibilidade e acessibilidade da propriedade de casas para americanos de rendimento baixo, moderado e médio. Mas as Fannie Mae não recebe financiamento ou apoio do governo, e é um dos maiores contribuintes do país bem como, até agora, uma das corporações mais sistematicamente lucrativas.
A companhia evoluiu e passou a ser possuída por accionistas, uma corporação de administração privada que apoia o mercado secundário para empréstimos convencionais. O seu mandato do Congresso de manter casas acessíveis foi em grande medida esquecido em favor de um boom sem precedentes no mercado habitacional. Mas ela continua a operar sob uma autorização do Congresso que lhe proporciona fundos de baixo custo apenas com uma supervisão superficial do US Department of Housing, do Urban Development e do Tesouro.
A Fannie Mae tem duas linhas primárias de negócio: Investimento em carteira, pelo qual a companhia compra hipotecas e MBSs como investimentos, financiando tais compras com dívida; e garantia de crédito, a qual envolve garantir mediante uma remuneração (fee) o desempenho do crédito de famílias únicas e de empréstimos multi familiares.
Possuidores de dívida além mar
Durante a bolha habitacional, a qual foi criada essencialmente com a ajuda do dinheiro fácil do Fed, a Fannie era altamente lucrativa, com altos retornos para os seus felizes accionistas e compensação lucrativa para os seus executivos. Acima de tudo, ela proporcionava um contínuo fluxo de rendimento e lucro para a Wall Street e bancos centrais de todo o mundo enquanto os proprietários de casas eram afundados num caminho traiçoeiro de eventual arresto. Segundo dados do Council of Foreign Relations, bancos centrais possuem US$925 mil milhões de dívida nas duas GSEs. A China encabeça a lista com US$420 mil milhões na dívida do Freddie e da Fannie; a Rússia e o Japão vêm em segundo lugar com uma dívida conjunta nestas GSEs de US$407 milhões. Outros países que possuem a dívida incluem Singapura, Formosa e vários países ricos em cash no Golfo Pérsico.
O negócio da carteira de investimento da Fannie inclui empréstimos hipotecários comprados através dos EUA de instituições de empréstimos hipotecários aprovadas. Ela também compra MBSs, produtos de hipoteca estruturada e outros activos no mercado aberto. O rendimento da corporação deriva da diferença entre o que rendem estes investimentos e os baixos custos subsidiados para financiar a compra dos mesmos, habitualmente da emissão de dívida nos mercados interno e internacional. A Fannie Mae tem hoje US$3,46 milhões de milhões em MBS pendentes, detidos por uma rede dispersa de investidores, incluindo bancos centrais estrangeiros, encabeçados pelo da China.
Os GSEs agora apenas oralmente cumprem a sua missão de proporcionar produtos e serviços que aumentem a disponibilidade e acessibilidade da habitação para compradores de rendimento baixo, moderado e médio através da operação no mercado secundário, ao invés do mercado primário de hipotecas.
A Fannie Mae compra empréstimos hipotecários a mutuantes hipotecários, instituições de poupança, uniões de crédito e bancos comerciais, dessa forma tornando a encher a oferta de fundos hipotecários daquelas instituições. Ela tanto empacota estes empréstimos em MBSs, as quais ela garantia em pleno e atempadamente o pagamento do principal e dos juros, ou compra estes empréstimos a dinheiro e retém as hipotecas na sua própria carteira. Mas o papel da Fannie em anos recentes tem sido abastecer a bolha habitacional com o excesso de liquidez libertado por um caprichoso banco central, comprando com um lucro economicamente não saudável hipotecas que dependia de uma contínua ascensão nos preços das casas para além da projecção razoável do crescimento do rendimento dos compradores das casas. Isto transformou os EUA de um país de proprietários de casas num país de casas arrestadas.
A Fannie Mae é agora um dos maiores emissores do mundo de títulos de dívida, o líder no mercado hipotecário estado-unidense de US$14 milhões de milhões. As obrigações de dívida da Fannie Mae são tratadas como títulos de agência estado-unidense no mercado, a qual está apenas abaixo dos US Treasuries e acima da dívida corporativa AAA. Este estatuto da agência deve-se em parte à criação e existência da corporação decorrer de uma lei federal, da missão pública que ela alegadamente cumpre e da continuidade dos laços que ligam a corporação ao governo dos EUA através de uma fraca supervisão. Ela beneficia da aparência, embora não a essência, de ser apoiada pelo crédito soberano que limita a fraude clara e é protegida pela doutrina do demasiado grande para cair.
As obrigações de dívida da Fannie Mae recebem tratamento favorável numa perspectiva regulamentar. Os títulos Fannie Mae são "títulos isentos" sob as leis administradas pela US Securities and Exchange Commission, na mesma medida das obrigações do governo dos EUA. Além disso, a dívida da Fannie Mae qualifica-se para tratamento mais liberal do que a dívida corporativa sob os estatutos e regulamentos federais dos EUA e, numa medida limitada, estatutos e regulamentos estrangeiros. Administradores de fundos que compram dívida GSE estão protegidos de desafios fiduciários.
Alguns destes estatutos e regulamentos tornam possível a instituições receptoras de depósitos investirem na dívida da Fannie Mae mais liberalmente do que em dívida corporativa e outros títulos apoiados por dívida e apoiados por activos. Outros permitem certas instituições investirem na dívida da Fannie Mae a par de obrigações dos Estados Unidos em quantias ilimitadas. A Fannie Mae utiliza uma variedade de veículos de financiamento para proporcionar aos investidores títulos de dívidas que cumpram seus objectivos de investimento, comércio, hedging e financeiros, nem todos dos quais servem o interesse público. A Fannie Mae tem capacidade para emitir diferentes estruturas de dívida em vários pontos da curva da renda (yield curve) devido à sua grande e consistente necessidade de financiamento. Quando o Tesouro retirou os títulos a 30 anos, estas agências GSE saltaram para preencher o vazio no financiamento a longo prazo.
Ideologia triunfante
A privatização da Fannie Mae e do Freddie Mac foi um movimento ideológico. Ela era financeiramente desnecessária pois o crédito soberano poderia ter financiado todas as necessidades de hipotecas habitacionais para rendimentos baixos, moderados e médios sem que fosse extraído lucro para investidores e correctores privados. Estes instrumentos de dívida da agência desempenharam um papel crucial no desenvolvimento e sustentação da bolha de crédito nos EUA que agora volta à casa para se empoleirar.
De facto, o fundo de risco de ambas as agências foi questionado, dentre muitos outros, pela voz do capitalismo do mercado livre, o Wall Street Journal, em 20 de Fevereiro de 2003 num editorial acerca da segurança da Fannie Mae e do Freddie Mac, da sua estabilidade e da sua administração financeira, caracterizando ambas as agências como companhias de risco sempre crescente que "parecem-se a hedge funds fracamente administrados" ... "indevidamente expostas a risco de crédito com grandes posições em derivados", e que elas "utilizam todos os tipos de derivativos" e "estão expostas a não quantificados riscos de terceiros nestas posições". Tais preocupações teriam sido evitadas se ambas as agências fossem financiadas directamente com crédito governamental, e o custo da habitação para americanos de rendimento baixo, moderado e médio teria sido mais baixo. Quando isto acontece, o governo é agora confrontado com a perspectiva de ter de salvar estas GSEs com fundos públicos.
O termo "subcapitalização" para instituições financeiros é simplesmente um eufemismo desinfectado para insolvência. A fonte real da actual turbulência de mercado é mais do que a perversidade das GSEs que fugiram da trilha das suas finalidades públicas. Trata-se de outro sintoma do fracasso do banco central. O mundo está agora a testemunhar o lento mas firme colapso do regime de banco central que passou a existir nos EUA em 1913, o qual fracassou no cumprimento do seu mandato de administrar o sistema monetário para manter a estabilidade de preços e o pleno emprego. Políticas monetários disfuncinais adoptadas por todos os bancos centrais, liderados pela Reserva Federal dos EUA, permitiram ao mercado retirar capital para fora do capitalismo de livre mercado para transformá-lo num gigantesco esquema Ponzi .
Na década de 1990, a intenção original do Congresso para as GSEs foi desviada da criação de condições acessíveis de propriedade das casas para as famílias com rendimentos baixos e moderado para um novo papel de apoiar uma bolha habitacional que permitia às famílias comprarem casas a preços cujas hipotecas os seus rendimentos não podiam atender. O lucro da apreciação dos preços habitacionais foi principalmente para os originadores das hipotecas e bancos que compravam e vendiam MBSs para investidores que também lucravam com a compra de dívida com dívida colaterizada com a dívida que estavam a comprar. O capital subitamente tornou-se apenas um valor nocional no mercado de derivativos da dívida. Compradores de casas compravam hipotecas sem pagamento inicial, bancos e correctores de hipotecas vendiam a dívida a titularizadores (securitizers) que vendiam-na s investidores institucionais os quais tomavam emprestado utilizando os títulos como colateral. Os GSEs também se tornaram muito lucrativos, abandonando os compradores das casas ao incumprimento das suas hipotecas quando o mercado virou-se sobre eles. Todo o ciclo de transacção não exigia qualquer capital.
A Fannie Mae e o Freddie Mac, classificadas como AAA pelas principais companhias de classificação de crédito do mundo, estão agora a ser tratados como comerciantes de derivativos como se estivessem classificados cinco níveis abaixo porque os emissores estão lamentavelmente subcapitalizados para a dimensão da dívida que assumiram. Os credit-default swaps ligados ao US$1,45 milhão de milhões de dívida vendida por estas duas maiores companhias financeiras de hipotecas, alegadamente apoiadas pelos EUA, são comerciadas a níveis que implicam que os títulos deveriam ser classificados como A2 pelo Moody's Investors Service. O preço dos contratos utilizados para especular sobre a capacidade de solvência da Fannie Mae e do Freddie Mac e para proteger contra um incumprimento duplicou nos últimos dois meses.
Indiferença à garantia da dívida
Os traders estão indiferentes à implícita garantia do governo da dívida das GSE quando as perdas de créditos crescem e aumentam as preocupações acerca de as mesmas não terem capital suficiente para aguentar a maior derrocada habitacional desde a Grande Depressão. A Fannie Mae perdeu 80% do valor de capitalização no mercado no primeiro semestre de 2008 no New York Stock Exchange; e o Freddie Mac perdeu 70%. Estas duas GSEs relataram perdas conjuntas de mais de US$11 mil milhões, e levantaram mais de US$20 mil milhões de novo capital desde Dezembro de 2007. Depois de a Lehman Brothers Holdings Inc ter divulgado o relatório de 7 de Junho de 2008 a dizer que uma nova regra contabilística pode exigir às GSEs que levantem outros US$75 mil milhões em novo capital, as acções do Freddie Mac caíram mais 18% e as da Fannie Mae 16%.
(A 2ª e última parte do artigo será publicada amanhã)
22/Julho/2008
[*] Presidente de um grupo de investimento privado com sede em Nova York. Seu sítio web encontra-se em http://www.henryckliu.com .
O original encontra-se em http://atimes.com/atimes/Global_Economy/JG22Dj06.html
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
Um comentário:
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