"Impunidade permanece", diz viúva de Gringo, morto há 28 anos
O sindicalista Raimundo Ferreira Lima, mais conhecido como "Gringo", foi assassinado em 28 de maio de 1980. Alguns meses antes, ele havia sido eleito presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia (PA), no sul do estado. Sua chapa desbancou Bertoldo Lira, candidato da situação, mais próximo da polícia e dos poderosos da localidade.
Gringo era agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e lutava pela reforma agrária na região.
Há 28 anos, no caminho de volta de um compromisso em São Paulo (SP), Gringo parou para pernoitar em Araguaína, que hoje pertence ao Tocantins. No dia seguinte, retornaria a São Geraldo do Araguaia, na época um distrito do município de Conceição do Araguaia (PA).
O intervalo para repouso, todavia, acabou se tornando eterno. Gringo foi seqüestrado do hotel em que dormia e levado para uma estrada fora da cidade, onde foi assassinado a tiros. Um dia antes, o padre Ricardo Rezende Figueira, então diácono, declarara em entrevista coletiva em Brasília (DF) que havia seis ameaçados de morte na região. Um deles era Gringo.
Maria Oneide Costa Lima, mulher de Gringo, tinha 29 anos quando ficou viúva. "Eu não sabia nem o que fazer, não tinha nenhum grau de estudos para conseguir um emprego, com seis filhos nas costas pra criar", recorda.
Hoje, Maria Oneide é diretora de uma escola pública que leva o nome do homem com quem foi casada, "Raimundo Ferreira Lima", em São Geraldo do Araguaia (PA). Estudantes da escola fizerm duas apresentações durante a Mostra Artística das Comunidades em Araguaína (TO), durante o Festival da Abolição, realizado de 12 a 17 de maio no norte do Tocantins. A organização do evento - composta por CPT, Repórter Brasil, Centro de Direitos Humanos de Araguaína (CDH), Pastoral da Juventude Rural (PJR), entre outras entidades - prestou uma homenagem especial à Oneide.
"Essa causa de lutar contra o trabalho escravo, contra todo o tipo de escravidão, é o maior orgulho para mim. Estou continuando aquilo que o Gringo parou, que pararam tirando a vida dele...", declarou ao público do Festival. Ela lembrou o caso de outras pessoas que, como Gringo, morreram levantando a bandeira do direito à terra, como os casos de Expedito Ribeiro, executado em 1991, em Rio Maria (PA), e da família Canuto - o pai, João, foi assassinado em 1985 e os filhos José, Paulo e Orlando também sofreram atentado contra a vida em 1990; dos três, apenas Orlando, mesmo ferido, conseguiu sobreviver. "Nós vamos continuar lutando. A escola Raimundo Ferreira Lima, que é justamente o nome de Gringo, vai levar essa causa em frente", completou Oneide, visivelmente emocionada com a homenagem.
Ela nunca deixou a região, mesmo após a morte do marido. Começou a trabalhar com os padres franceses Aristide Camio e François Gouriou, da CPT, e se envolveu na luta por justiça no campo. Foi presa em seu domicílio em 1982, quando os padres também foram encarcerados sob acusação de subversivos e terroristas. Alguns anos depois, Oneide foi ameaçada de morte e chegou até a pedir proteção na capital federal, no período em que era supervisora de escolas da prefeitura. A ameaça vinha de Neif Murad, fazendeiro acusado de ser o principal mandante da morte de seu marido.
A história da morte de Gringo é semelhante ao que aconteceu com a missionária Dorothy Stang, assassinada em fevereiro de 2005. Nos dois casos, um grupo de "interessados" na execução montou um "consórcio" para pagar pistoleiros que acabaram com as vidas do sindicalista de São Geraldo e da irmã norte-americana em Anapu (PA). No caso do marido de Oneide, prefeitos da região, o então deputado estadual - e hoje deputado federal - Giovanni Queiroz (PDT-PA), além de Neif Murad e outros fazendeiros locais foram apontados pela imprensa como supostos mandantes do crime.
A notícia do assassinato de Gringo e da formação do consórcio criminosos saiu em vários jornais como paraense O Liberal, além d´O Estado de S. Paulo, que tinha o jornalista Lúcio Flávio Pinto como correspondente no Pará. "Havia a notícia da reunião [dos mandantes que montaram o consórcio], mas ninguém falou ´eu vi´", lembra o editor do Jornal Pessoal.
Até hoje não houve julgamento para quem matou Raimundo Ferreira Lima. "O processo foi engavetado, nunca foi levado para frente, nunca foi feito nada para que o verdadeiro culpado pagasse", diz a viúva Oneide. O processo sobre o caso chegou a ser instaurado na Justiça de Conceição do Araguaia, mas acabou engavetado por falta de provas. "Não conseguiram provas. Naquela época era muito precária a investigação", analisa o jornalista Lúcio Flávio.
Durante o Festival da Abolição, Maria Oneide conversou sobre a sua trajetória de vida e a importância da luta pela terra, que movia Gringo e que continua movendo a dedicada diretora da escola que carrega o nome do líder sindicalista que deixou a sua marca na história.
O clima de impunidade ainda permanece na região?
Oneide - Permanece. E muito. Agora tem o caso da irmã Dorothy [Stang, assassinada em 2005]. O mandante [Vitalmiro Bastos Moura, o "Bida"] é julgado, pega 30 anos de prisão e de repente vem outro julgamento e ele sai livre. Ainda existem casos de impunidade, que geram outros crimes...
Mas a senhora não acha que não melhorou? A repercussão da absolvição do Bida, por exemplo, foi negativa...
Melhorou. São Geraldo era um lugar do qual ninguém falava. Em São Geraldo houve a Guerrilha [do Araguaia, contra a repressão da ditadura militar], depois houve a prisão de missionários que foram para lá, como o padre Aristide [Camio] e o padre Chico [François Gouriou]... Quando a gente era professora, ninguém vinha falar da guerrilha. Vinha gente lá de São Paulo pesquisar em São Geraldo coisas que os nossos alunos nem sabiam.
Era um absurdo falar em "guerrilha". Hoje o pessoal já começa a dizer "eu vi", "eu estava presente". Mas antes, ninguém falava. Não levantava nem a voz. Se chegasse um político dizendo "tem que votar em mim", a pessoa votava porque tinha medo de que soubessem em quem ela tinha votado. Hoje melhorou com relação a isso. As pessoas já sabem exigir, criticar, falar.
Os acusados pela morte do Gringo foram a julgamento?
Nunca aconteceu. Acho que o processo até acabou. Por cinco ou seis anos depois da morte dele, nós marchamos para Araguaína [onde o sindicalista foi assassinado]. O processo foi engavetado, nunca foi levado para frente. Nunca foi feito nada para que os culpados pagassem pelo crime.
E se o inquérito fosse reaberto como no caso da morte do padre Josimo [Morais Tavares, assassinado em 1986]? Ah, a minha vontade era de ver esse julgamento, sim. Pelo menos para ver quem fez no banco do réu. Mas é difícil, né! Depois de tanto tempo. Quem sabe... Alguns mandantes ainda estão aí. O [principal] mandante já morreu, em 1984. Os lavradores da região mataram, não para vingar a morte do Gringo, mas por causa de conflitos envolvendo as mesmas terras.
Qual é a história dessas terras? Eram terras devolutas e o fazendeiro Neif Murad queria tomá-las dos posseiros. E tinha posseiro morando com mais de dez anos naquela terra... E por isso eles mataram o Gringo. A gente soube depois que a pessoa que matou [o Gringo] também morreu, mas foi por causa de outro crime cometido em Formoso do Araguaia [município do sul do Tocantins]. A família do rapaz morto [nesse outro caso] matou ele [pistoleiro].
Também houve um consórcio de mandantes no caso do Gringo? Isso. Antes era mais camuflado isso de contratar pistoleiro. Hoje é mais assim, cara limpa. Inclusive até o prefeito de Araguaína da época estava envolvido [como suspeito, pela imprensa], Joaquim [de Lima] Quinta era o nome dele, se não me engano. Também o deputado [estadual] na época, Giovanni Queiroz [que hoje é deputado federal pelo PDT-PA]. Mais ou menos seis pessoas estavam envolvidas [como mandantes]. Eu ainda tenho o jornal da época.
A senhora não saiu de São Geraldo do Araguaia depois da morte do Gringo. Foi difícil ficar no mesmo lugar, não foi?
Eu não sabia nem o que fazer, não tinha nenhum grau de estudos para conseguir um emprego, com seis filhos nas costas pra criar. Na época, o padre Chico e o padre Aristides tinham acabado de chegar a São Geraldo. Como o Gringo trabalhava na Pastoral da Igreja [Católica], eles me perguntaram se eu queria trabalhar na Pastoral também e eu aceitei. Quando comecei a trabalhar com eles, eu me senti outra pessoa, porque ia para a zona rural com eles. A gente se envolvia em muitas questões de terra. Terminei o segundo grau e depois o curso universitário em História e criei meus filhos. Mas toda a vida foi esse sentimento assim de lutar, sabe? Os padres [Aristide e François] foram presos [em 1982], eu fui presa também, prisão domiciliar.
Havia perseguição...
A Polícia Federal perseguia... Eles inclusive invadiram a minha casa e pegaram uma foto minha e da minha família. Fizeram uma montagem, dizendo que eu estava no Rio de Janeiro (RJ), com o padre Aristide, na praia, gastando o dinheiro dos pobres. Jogaram panfletos em toda região, de avião. Quando cheguei na zona rural, o pessoal estava com o papelzinho pregado na parede. Eles não sabiam ler, né... Diziam "Olha dona Oneide, olha aqui a senhora!", e eu contava a história e ia rasgando [os panfletos com a fotomontagem].
A senhora não teve medo?
Tive medo por causa dos meus filhos, mas só uns dez anos depois, quando chegaram os [meus] 40 anos... Quando eles eram pequenos eu não tinha medo. Eu ia, participava, falava, dava nome aos bois. E depois eu fiquei com medo. [Os filhos] ficaram sem pai, e agora iam ficar sem mãe?
Principalmente depois do que aconteceu com a família Canuto...
A gente era vizinho. Qualquer coisa que acontecia lá a gente ficava sabendo. Rio Maria fica a uns 200 km. [Esse caso dos Canuto] foi no final dos anos 1980. A partir daí eu fiquei com medo... Cansei de dormir com lavrador em minha casa, vigiando. Ficava em casa com medo porque o pistoleiro dizia que ia me matar. Eu já tinha saído da Paróquia e trabalhava na prefeitura como supervisora de escola e tinha que ir pra mata [zona rural]...
E por que as ameaças?
Sempre por causa da luta pela terra. Eu participava das reuniões, cuidava das coisas dos lavradores. O fazendeiro Neif Murad, justamente o que mandou matar meu marido, disse que da minha família não ia sobrar nem as galinhas. Falou lá pro pessoal e me contaram. Aí eu fui pedir proteção em Brasília (DF) porque me senti acuada. O ministro da Justiça da época me encaminhou para Belém. O secretário de segurança pública do estado fez uma audiência comigo e com ele [Neif Murad], e os filhos. Ele assinou um termo dizendo que qualquer coisa que acontecesse comigo - se eu, andando nas escolas, de repente morresse - então ele seria o único suspeito. Eu até andei com policial na zona rural e tinha medo, porque eu não confiava na polícia.
E hoje a senhora confia?
Não... Só confio no meu filho, que é policial. Por ironia do destino. Ele se tornou policial porque soube que o criminoso que matou o pai dele estava na região. Então ele foi ser polícia para se vingar. [Mas depois, quando se tornou policial] ele foi segurança do padre Ricardo [Rezende], e depois do frei Henri [de Roziers, da CPT de Xinguara (PA)]. Hoje ele está ajudando a montar a polícia comunitária que está sendo criada agora no Pará.
Foi por medo que a senhora se afastou da luta? Isso. E também começou a troca de padres. Porque quando o padre da paróquia é uma pessoa que luta, é outra coisa. Os padres Aristide e o Chico eram assim. Aí depois vai trocando e vão mudando as coisas, né...
Então a senhora se voltou mais para o trabalho na escola...
Eu hoje sou diretora da escola que tem o nome dele [Gringo]. Faz 22 anos que eu trabalho lá, desde 1986. Entrei como professora e a escola já se chamava Raimundo Ferreira Lima. Eu passei uns dez anos afastada que eu não ia nem em reunião, sabe? Era só da escola para casa, e da casa para escola... Esqueci até da Igreja. Os meninos falaram: "Mãe, eu não estou reconhecendo a senhora, vamos lutar, arregaçar as mangas!", e pensei "É mesmo". Agora já comecei de novo a levantar, brigar, falar, exigir, reclamar...
Como a senhora se engajou no combate ao trabalho escravo?
A Aninha [Ana Souza Pinto, também da CPT de Xinguara] sempre me ligava, e um dia disse "Oneide, tenho um projeto". Era o "Escravo, nem pensar!". O primeiro projeto que fizemos [na escola] ano passado foi ótimo. Trabalhamos seis meses, apresentamos e depois mandamos as fotos para a Repórter Brasil. Este ano outro projeto nosso foi agraciado com o financiamento.
Qual é a proposta do projeto deste ano?
Chama-se "Conscientizar para erradicar". Nós vamos fazer reuniões em pontos estratégicos da cidade, onde há mais pessoas que trabalham. Vamos convidar o juiz e a promotora para dar palestras nas escolas. Eu já até falei com o juiz, ele aceitou e até parabenizou a gente, disse que é muita coragem fazer esse trabalho, principalmente aqui na região de São Geraldo, porque já foram constatados vários casos de trabalho escravo.
A luta contra o trabalho escravo está ligada ao trabalho do Gringo?
Com certeza. Essa era a luta dele. Hoje eu sinto a falta do Gringo. São 28 anos, mas pra mim foi ontem. Nunca a gente esquece...Quando ele morreu, o meu caçula tinha nove meses. Hoje ele está com 28 anos. Agora já tenho netos: são 16. Eu estou com medo de ter bisnetos! Já falei: não quero bisneto porque se não vou ficar mais velha. O Gringo era um bom pai, um bom marido... Passou um bom tempo e eu nunca me casei... Sinto saudades.
Fonte: Revista Fórum.
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