segunda-feira, 3 de novembro de 2008

MERCADO DE TRABALHO - Legalização da terceirização é o mais novo golpe contra os trabalhadores.

Nos últimos anos, já sob o governo Lula, o país prosseguiu diante de sucessivas e sorrateiras tentativas de mudanças em leis e relações trabalhistas – algo que pareceria insólito anteriormente ao começo da gestão de um líder sindical e trabalhista. Desde as discussões sobre a reforma sindical no Fórum Nacional do Trabalho – marco inicial na abertura do caminho a eventuais e posteriores mudanças na legislação trabalhista, vez que imporia menores resistências ao não incidir diretamente nas relações de classe, entre capital e trabalho -, o caminho tem sido pleno de surpresas. Vieram a polêmica Lei de Falências, com a manutenção de privilégios excessivos ao capital, o Super Simples - cujo objetivo expresso seria facilitar o funcionamento de pequenas e micro empresas – e, mais recentemente, a Emenda 3. Esta última, felizmente vetada pelo presidente Lula, proibia os fiscais da Receita Federal de autuarem empresas que substituíssem contratos via CLT por outros via prestação de serviços, configurando a famosa ‘pejotização’ das relações trabalhistas.

Haveria ainda outros exemplos a citar, mas cabe fixar-se na novidade da vez: em meio à crise financeira internacional, foi desenterrado e levado adiante, quase na surdina, projeto de lei do presidente anterior, o de número 4302/98, que permite uma total terceirização das contratações das empresas.

“Isso, assim como na reforma tributária, passa por uma penada, e assim vão fazendo as reformas que desejam, abolindo todos os direitos trabalhistas e obrigações do empregador, passando a recorrer à prestação de serviços nessa nova forma. É, portanto, uma ofensiva sobre os direitos sociais e trabalhistas e ao mesmo tempo à reforma tributária, pois assim também se atinge a tributação”, afirma Vera Teresa Balieiro, presidente da Unafisco (Sindicato Nacional dos Fiscais da Receita Federal) do Rio de Janeiro.

Um dos motivos que torna ainda mais controversa a retomada do tema é o fato de o presidente Lula, ainda em 2003, ter expressamente pedido seu arquivamento, sendo agora contrariado por integrantes de sua própria base. “Existe o interesse de eximir os empregadores de suas obrigações previdenciárias e também daqueles que prestam serviço de terem sua atuação beneficiada. A base do governo ignorou a mensagem do presidente”, critica Balieiro.

Trabalhadores e personalidades ligadas a sindicatos apontam diversas faces prejudiciais ao proletariado brasileiro com a aprovação do projeto. “Não se limita a ‘legalizar’ a contratação terceirizada, mas corrompe os dois princípios basilares de toda a legislação trabalhista, inscritas nos artigos 2º e 3º da CLT: os conceitos de empresa e de empregado, a partir dos quais a relação de trabalho se define”, escreveu a professora e diretora da FEPESP (Federação dos Professores do Estado de São Paulo) Silvia Bárbara no Boletim do DIAP - Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar - de número 219, de setembro de 2008. “Seguramente, a aprovação do PL 4302/98 representa o fim do vínculo empregatício. Ele poderá até existir no papel, mas dificilmente será adotado pelas empresas”, prossegue ela.

Analisando a seqüência temporal de tais propostas relacionadas às áreas trabalhista, sindical e também aquelas relativas à previdência, não são poucos os que antevêem um processo em que o governo vem promovendo um gradual desmonte dos direitos conquistados pelos trabalhadores após décadas de lutas. “É preciso reconhecer que essa força desconhecida tem capacidade de influenciar, pois não só consegue bloquear a votação da mensagem de arquivamento do projeto (bloqueio, aliás, visto como ato de má-fé pela professora), mas também se movimenta e faz o projeto avançar na Câmara”, constata Marcos Verlaine, analista político e assessor parlamentar do DIAP, em artigo veiculado no Boletim do departamento de 20/10/2008.

Ainda destrinchando as nuances do PL 4302/98, Silvia Bárbara aponta que “o projeto assegura não ‘haver vínculo empregatício entre os trabalhadores ou sócios das empresas prestadoras de serviços e a empresa contratante’. Ora, isso legaliza aquela situação em que a empresa ‘propõe’ ao seu empregado a abertura de uma empresa ou a adesão a uma pseudo-cooperativa. Um prato cheio para a Super-Receita analisar. Afinal, quem são os ‘sócios’ se não os funcionários que passaram para a condição de prestador de serviços, cooperados ou não? Esse é o grande pulo do gato. Livra a empresa do ônus de contratar, promovendo simultaneamente as reformas trabalhista e tributária”.

Essa noção é compartilhada pela presidente da Unafisco carioca que, no entanto, faz outra importante ressalva, referente ao futuro dos trabalhadores que aderirem a tal tipo de relação empregatícia. “É o mesmo que a Emenda 3: o empregador pede a seu funcionário que abra empresa, a fim de ser pago de forma terceirizada. Num primeiro momento, ele convence o empregado que ele lucrará com isso, pois poderá abater imposto como pessoa jurídica, melhorando seu padrão salarial possivelmente. Porém, na realidade, o trabalhador estaria comprometendo seu futuro, pois abriria mão de direitos trabalhistas, garantias da previdência, parcelas para a aposentadoria, assumindo um grande risco”.

Entretanto, o difícil seria impedir o trabalhador de se sujeitar às condições propostas, frequentemente justificadas pelos patrões como modernizadoras das relações de trabalho, imprescindíveis em tempos de crise econômica. “Os trabalhadores vão apostar na manutenção do emprego através da prestação de serviço, mas sem garantias trabalhistas, o que consequentemente gera uma arrecadação menor para a previdência também, e aí é que se verá o impacto maior”, completa Vera Teresa.

Conseqüências conhecidas

Independentemente do resultado final da empreitada, o fato é que as terceirizações já são há um bom tempo parte de nossa vida cotidiana. Existem milhões de trabalhadores empregados sob essas condições, inclusive na prestação de serviços ditos essenciais, de responsabilidade do governo e de utilidade pública. A novidade estaria no fato de que, com o PL 4302/98 aprovado, tal situação deixaria de ter um limite. “O projeto generaliza a contratação terceirizada em caráter permanente e para qualquer atividade, urbana ou rural, inclusive do mesmo grupo econômico. A empresa poderá ter 100% dos seus funcionários por terceirização ou até mesmo quarteirização (esta possibilidade também está prevista na proposição)”, lembra Silvia Bárbara.

Com as empresas prestadoras de serviço sendo questionadas em diversas áreas, como as Organizações Sociais que assumem a direção de hospitais em São Paulo e já foram alvo de CPI, não parece descabido questionar se usuários e clientes serão prejudicados. “Temos o resultado concreto. Aquelas empresas que prestam serviços terceirizados têm sua responsabilidade diluída. Quem será responsabilizado é o trabalhador. Com isso, a empresa de maior poderio econômico fica isenta e se livra das conseqüências”, diz Balieiro.

Silvia Bárbara aponta outro fator a desfavorecer a massa trabalhadora, a mais jovens em especial, constante no projeto de lei em questão. “Além de introduzir a terceirização como norma legal, o PL 4302 altera as regras de contratação temporária. Entre outras medidas, um trabalhador poderá permanecer em uma empresa como ‘temporário’ por até 270 dias ou prazo ainda maior, se constar de acordo ou convenção coletiva. Ao final do contrato, sai da empresa com uma mão na frente e outra atrás”.

Ainda no sentido de se zelar pelos direitos dos trabalhadores, Marcos Verlaine diz tratar-se de uma ‘alegoria’ a determinação de que a empresa tomadora de serviços seja solidariamente responsável pelo cumprimento de deveres trabalhistas e tributários. Se os próprios salários dos funcionários terceirizados costumam ser “aviltantes”, é mera utopia pensar que as empresas prezarão quaisquer direitos trabalhistas.

Livres de tantas obrigações impostas após marcantes lutas sociais vividas por gerações de trabalhadores, não é de surpreender que o setor empresarial receba a medida de braços abertos. “Desobrigada de suas antigas responsabilidades, a empresa vai investir menos e diminuirá o padrão de qualidade de seu serviço, como já vem acontecendo na prática em setores já terceirizados e como comprovamos ao averiguar o estado de manutenção dos serviços básicos”, sinaliza Balieiro.

O projeto de lei 4302, de 1998, ainda não está aprovado, mas o simples fato de sua discussão se encontrar pouco ou nada exposta à sociedade já é indício de que o melhor a se fazer é colocar o olho em seus idealizadores. “Uma simples penada pode ser suficiente para comprometer o futuro de milhões de trabalhadores brasileiros”, afirma Vera Cristina.

Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Fonte:AEPET.

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