Ricardo Kotscho
Caros leitores olímpicos
Antes de começar a escrever a reportagem sobre a minha viagem ao Araguaia, como prometi na quinta-feira, não posso deixar de partilhar com vocês a imensa alegria que senti ao ficar sabendo na volta da fantástica vitória do Rio em Copenhague. Sediar a Olimpíada de 2016 não foi uma conquista só da mais bela cidade do mundo, mas de toda uma geração de brasileiros que continua acreditando neste país.
SÃO GERALDO DO ARAGUAIA (PA) – Nossa viagem no helicóptero do Exército que partiu de Marabá na manhã de sexta-feira era em direção aos fundões da selva amazônica, no sul do Pará, cenário da Guerrilha do Araguaia, quase 40 anos passados.
Mas selva mesmo, aquela da mata imensa e fechada que a gente conhecia, não há mais.
Em meia hora de vôo, dava para ver ao longo dos 120 quilômetros, até São Geraldo do Araguaia, os trágicos resultados da destruição da mata que mudou completamente a paisagem neste período. Neste pedaço sempre conflagrado do sul do Pará, desde os anos 1970, após a abertura da Transamazônica, a maior floresta do mundo foi derrubada e queimada sem dó, virou pasto.
Com a terra árida pisoteada pelo gado e após um longo período de estiagem, mais parece que estamos chegando ao sertão nordestino. Sim, aqui neste pedaço sempre conflagrado do sul do pará, a selva já virou sertão.
O solo típico do semi-árido nordestino só é salpicado aqui e ali por algumas nesgas de mata separando os latifúndios às margens das grotas, o outro nome dos igarapés da região. A única faixa de mata contínua ainda visível neste trecho é o da Reserva Indígena Sororó, dos índios sururi.
A primeira constatação que faço, antes mesmo da nossa primeira parada, na Grota do Mutuma, onde os membros do Comitê Interinstitucional do Ministério da Defesa acompanharão escavações que estão sendo feitas em busca dos corpos de 57 combatentes do PCdoB desaparecidos no Araguaia, é que neste lugar hoje seria impossível montar uma guerrilha.
Ficou inviável alguém montar nestas terras desmatadas uma operação militar clandestina, tão difícil como localizar os restos mortais dos desaparecidos, tantos anos passados, com a paisagem completamente alterada.
“Eles vieram para cá porque contavam com a defesa da mata para garantir o equilíbrio estratégico”, lembra Diva Santana, irmã da guerrilheira desaparecida Mariadiná, uma baiana decidida que integra o comitê de 11 membros formado por decreto presidencial para supervisionar os trabalhos do Grupo de Trabalho do Tocantins, criado em abril deste ano pelo governo federal.
Desde a anistia concedida pelo regime militar em 1979, Diva acompanha todas as incursões na região do Araguaia-Tocantins, até agora frustradas, em busca dos corpos na esperança de encontrar os restos mortais de sua irmã.
Agora, ao lado dos ministros da Defesa, Nelson Jobim, e de Paulo Vanucchi, dos Direitos Humanos, que chefiam esta missão do governo, ela acompanha os trabalhos de escavação na Grota do Mutuma, onde ficava o “Destacamento C”, um dos três montados pelos guerrilheiros.
Após uma rápida explanação feita por Edmundo Müller Neto, do Ministério da Defesa, que é o coordenador de campo do GTT, Diva fica mais animada. “Esse é um ponto muito interessante, temos esperança de encontrar Mundico hoje. Várias testemunhas, ex-mateiros que foram guias do Exército e moradores antigos, indicaram este mesmo local em momentos diferentes do trabalho da ouvidoria”, informou Müller.
Mundico era o nome de guerra de Rosalindo de Souza, também baiano, um dos primeiros mortos nos combates, ainda em 1972, quando o Exército entrou na área pela primeira vez. As circunstâncias da sua morte até hoje estão envoltas em mistério: suicídio, acidente ou justiçamento feito pela própria guerrilha por estar namorando uma companheira.
Diva acredita mais que tenha sido um acidente causado pela própria arma e afasta a possibilidade de justiçamento. “Isto é até uma ofensa, não fazia parte do código moral da guerrilha”.
Uma equipe formada por dois antropólogos forenses, quatro geólogos e seis ajudantes abre dois buracos de 80 por 120 centímetros indicados pelo rastreamento do GPR (Ground Penetration Radar), um equipamento capaz de localizar anomalias no solo a até três metros de profundidade.
Para tristeza de Nayara Souza Alves, de 40 anos, sobrinha de Rosalindo, nada foi encontrado, mais uma vez (desde agosto, já foram investigados 36 alvos em 14 diferentes áreas do sul do Pará num total de 24.300 metros quadrados, tendo o GPR percorrido uma distância de 51 quilômetros em linha reta).
Nayara, que é de Itapetinga, na Bahia, assim como seu tio, veio de Araguaina, no Tocantins, onde vive atualmente, para acompanhar as escavações.
“Eu era muito pequena quando ele veio para lutar aqui, mas me lembro do sofrimento do meu avô Rosalvo, que morreu sem poder enterrar o corpo do neto. Para nós da família, ficou só esse vazio, este silêncio. Só temos algumas cartas dele guardadas. O tio falava sempre do seu ideal de fazer um país melhor para todos nós”.
Militares da Diretoria do Serviço Geográfico do Exército (DSG) deixam o marco geodésico 1026 na terra para informar a quem passar por ali no futuro que aquele local já foi investigado.
De volta ao helicóptero, nossa próxima parada é a Fazenda Bacaba, na cidade de São Domingos do Araguaia ( antiga São Domingos das Latas), a 70 quilômetros de Marabá, uma das três bases do Exército durante o combate à guerrilha (as outras ficavam em Marabá e Xambioá).
Em mais meia hora de viagem de helicóptero, que sobrevoou a Serra das Andorinhas, da qual falarei mais adiante, os raros sinais de vida na floresta que virou pasto, vistos do alto, eram os rebanhos de gado branco correndo assustados com o barulho dos rotores do helicóptero.
Na base de Bacaba, o Exército construiu uma pista de pouso para apoiar as operações na área. A partir da análise de documentos recebidos pelo Ministério da Defesa e de diversos orgãos e entidades, incluindo as Forças Armadas, havia referências a inumações clandestinas de guerrilheiros nos entornos da pista.
Antes do início das escavações neste local, onde também nada foi localizado, o Comitê Interinstitucional, do qual faço parte, reuniu-se com as equipes do GTT, que fizeram uma longa explanação dos trabalhos até aqui cumpridos.
Todos falaram das dificuldades para obter resultados positivos nas investigações de campo em razão da mudança radical na geografia da região. O fato positivo é que a presença conjunta de militares e civis, incluindo representantes das famílias dos desaparecidos, tirou o medo de falar dos moradores da região, que passaram a colaborar com os pesquisadores.
Em nome das famílias, Diva Santa agradeceu o empenho das equipes técnicas e dos militares chefiados pelo general de brigada Mario Lúcio de Araújo, que garante os recursos financeiros e humanos e organiza toda a infra-estrutura. “A vontade do povo brasileiro é que a questão seja resolvida e esclarecida de uma vez por todas para que possamos virar esta página da nossa história”.
Diva fez um apelo aos militares que participaram da fase final das operações, em 1974, ainda na ativa ou já reformados, para que prestem informações capazes de auxiliar nas buscas.
Este é o grande desafio daqui para a frente. Os trabalhos de campo, que serão interrompidos no final de outubro, em razão do início do período de chuvas, e só poderão avançar no próximo ano com a colaboração destes militares.
Tanto os ministros Jobim e Vanucchi, como os membros das equipes técnicas e o ex-deputado Aldo Arantes, observador independente que representa o PCdoB no GTT, insistiram em suas falas na necessidade do convencimento dos militares que participaram do combate à guerrilha para contar o que aconteceu na reta final da campanha, ainda que dificilmente os corpos possam ser localizados.
“O nosso trabalho é a favor da verdade histórica, não é contra ninguém”, resumiu o ministro Nelson Jobim, que viajou acompanhado do comandante do Exército, Enzo Martins Peri, simbolizando o distencionamento que está havendo entre militares e civis na questão do Araguaia.
Um dos militares que participaram da terceira fase de operações militares no Araguaia, o coronel aviador reformado Pedro Correa Cabral, de 67 anos, estava presente à reunião, mas não falou.
A ser verdade tudo o que o coronel me contou em entrevista ao Balaio, depois da reunião, sobre o destino dado aos corpos dos guerrilheiros durante a chamada “Operação Limpeza”, no início de 1975, será impossível localizá-los. Trechos do seu depoimento:
“No último mes de combate, em dezembro de 1974, segundo os nossos controles, só restava um guerrilheiro vivo que não foi localizado e conseguiu fugir da área. Era o Angelo Arroyo (ele seria morto pouco tempo depois pelo DOI-CODI durante invasão feita na casa onde a direção do PCdoB estava reunida na Lapa, em São Paulo)”.
“Nós da FAB fomos chamados no início de janeiro para fazer a “Operação Limpeza” com a finalidade de não permitir, depois que os militares saíssem que a área fosse escarafunchada por jornalistas e familiares dos mortos, causando problemas ao governo e às Forças Armadas. A ordem eram sumir com os corpos dos guerrilheiros”.
“Um colega meu da FAB, o coronel Sergio Camargo, localizou um paredão de pedra ao norte da Serra das Andorinhas para fazermos este trabalho. Ele falou para o comando que já sabia para onde levar e queimar os corpos, mas foi transferido para Belém, e o serviço ficou para mim e outros pilotos. Só eu transportei uns 15 fardos com os corpos que foram cercados de pneus e queimados com gasolina. Cheguei a pousar lá quando os fardos levados por outro helicóptero ainda estavam queimando”.
“Isto foi feito entre 20 de janeiro e 20 de fevereiro de 1975. Fui o último piloto a deixar a área. Conto tudo isso no meu livro “Xambioá _ A guerrilha do Araguaia”, lançado em 1993. Já voltei três vezes á Serra das Andorinhas, mas não consegui encontrar o local exato onde os corpos foram queimados. Na primeira vez, fui com o pessoal da revista Veja, logo que o livro foi lançado. Em 2001, acompanhei uma missão do então deputado Luis Eduardo Greenhalg, com o apoio da FAB, e voltei em 2004 com um grupo interministerial”.
“Espero que o grupo que agora está aqui convoque o coronel Sergio Camargo para vir para cá e colabore com as buscas porque foi ele que descobriu o paredão das Andorinhas e sabe voltar lá. É possível que a gente encontre lá pelo menos restos do aço que é empregado na fabricação de pneus para provar que os corpos foram mesmo queimados ali”.
Ao nos despedirmos, o coronel Cabral estava bastante emocionado com o que acabara de assistir e ouvir na reunião. “Não esperava viver para ver isso que vi hoje, ver o comandante do Exército participando de uma reunião ao lado do Aldo Arantes, do PCdoB, com o mesmo objetivo de encontrar a verdade. É um outro Exército, um outro país, muito melhor, mais próximo da democracia”.
Ao final da missão, de volta a Brasília na noite de sexta-feira, depois de passar o dia todo subindo e descendo de avião e de helicóptero militares, os joelhos moídos, mais quebrado que arroz de terceira, também tive esta sensação de que o Brasil muidou muito, e para melhor, desde que fui fazer minhas primeiras reportagens na Amazonia no começo dos anos 70. A notícia triste, é que a floresta está sumindo.
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