Aprofundamento da crise da dívida
A renomeação de Bernanke: perigoso, muito perigoso
Se a economia vier a deteriorar-se bruscamente em forma de L como muitos economistas prevêem, que preço político irão pagar o Presidente Obama e os Democratas por terem devolvido as chaves financeiras aos Republicanos nomeados por Bush que foram os primeiros a ceder terreno? Voltar a nomear Bem Bernanke como Presidente do Federal Reserve pode vir a prejudicar não apenas a economia mas também o Partido Democrata durante muitos anos. Reconhecendo isto, os Republicanos ganham pontos populistas opondo-se à sua renomeação durante as sessões de confirmação do Senado na passada quinta-feira, 27 de Janeiro – um dia depois do discurso de Obama sobre o Estado da União.
As sessões concentraram-se no papel do Fed enquanto principal grupo de pressão e desregulador de Wall Street. Apesar do facto de que o início da sua Carta o orienta para a promoção do pleno emprego e estabilização de preços, na prática o Fed é contra a força de trabalho. Alan Greenspan, como é conhecido, gabou-se de que o que tem levado à imobilidade dos sindicalistas, quando se trata de fazer greve por salários mais altos – ou mesmo por melhores condições de trabalho – é o medo de ser despedido e não poder cumprir os pagamentos das hipotecas e dos cartões de crédito. "A falta de um cheque para ficar sem casa", ou um crédito ultrapassado equivalente a juros altíssimos, tornou-se a fórmula para gerir a força de trabalho.
Quanto à tarefa que lhe cabe de promover a estabilidade de preços, a bolha do crédito fácil do Fed fez com que a via para a riqueza fosse a inflação dos preços dos activos, em vez do investimento de capital tangível. Isso encheu de contentamento os departamentos comerciais da banca, visto que os proprietários de casas, os consumidores, as empresas oportunistas, os estados e as localidades se endividaram cada vez mais na tentativa de melhorar a sua posição através do investimento em dívidas. Mas a economia negligenciou a sua base industrial e o emprego está ligado à produção. O lema do Fed desde o mestre das bolhas Alan Greenspan até Ben Bernanke tem sido "Inflação dos preços de activos, bom; inflação dos salários e dos preços dos bens de consumo, mau".
Reside aqui o problema com esta política. A subida dos preços da habitação aumentou o custo de vida e dos negócios, alargando o fosso entre o excesso do preço de mercado e os necessários custos sociais. Noutros tempos, o governo teria recolhido a receita crescente do imobiliário criada pelo aumento da prosperidade e pelo investimento público em transportes e outras infra-estruturas que tornaram determinados locais mais valiosos. Mas ultimamente os impostos diminuíram. Os terrenos continuam a custar tanto como sempre, porque o seu preço é estabelecido pelo mercado. O terreno em si não tem custo de produção. O valor da localização é criado pela sociedade, e deveria ser a base natural de tributação porque um imposto sobre o terreno não aumenta o preço do imobiliário; pelo contrário, fá-lo baixar deixando uma menor renda "livre" a ser paga aos bancos.
O problema é que a parte de que o cobrador de impostos abdica fica assim disponível para ser pago aos bancos como juros. E os potenciais compradores concorrem uns contra os outros até que o vencedor é aquele que for o primeiro a pagar aos bancos a renda da localização do terreno, sob a forma de juros.
Este desvio de impostos – em benefício dos banqueiros, e não dos proprietários das casas – fez com que a esperança de Obama em duplicar as exportações americanas durante os próximos cinco anos soem a falso. É este o resultado de "criar riqueza" sob a forma de uma bolha do mercado imobiliário alavancado pela dívida e do mercado de acções. A força de trabalho tem que pagar mais pela habitação e ensino financiado pela dívida, para não falar sobre os pagamentos aos oligopólios dos seguros de saúde e sobre os impostos sobre vendas e rendimentos mais elevados, aliviados dos ombros do capital financeiro e imobiliário.
Quando os Republicanos perceberam qual a direcção que o voto deveria tomar, puderam dar voz a algumas simpáticas declarações populistas para as eleições intermédias em Novembro próximo. Jeff Sessions do Alabama e Sam Brownback do Kansas votaram contra a confirmação de Bernanke. Jim deMint da Carolina do Sul alertou para que a sua renomeação seria "O maior erro que vamos fazer por muito tempo". E acrescentou: "Confirmar Bernanke é continuar as políticas que deitaram abaixo a nossa economia".
Entre os Democratas candidatos à reeleição, Barbara Boxer da Califórnia realçou que, ao estimular a inflação dos preços dos activos, a pró-Bolha (ou seja, a política pró-endividamento) do Fed estraçalhou a economia, reduzindo o emprego. O Fed devia proteger os consumidores, mas Bernanke é um opositor confesso da Agência dos Produtos Financeiros ao Consumidor, declarando que apenas o Fed, de forma desreguladora, devia ser o único regulador financeiro – o que parece ser um paradoxo.
Obama apoia Bernanke e o seu discurso sobre o Estado da União evitou notoriamente sancionar a Agência dos Produtos Financeiros ao Consumidor quando, anteriormente, tinha afirmado que essa agência iria ser a peça central da reforma financeira. Os lobistas de Wall Street deram-lhe a volta. A lógica deles foi a mesma fórmula mágica que o senador Chris Dodd, da indústria de seguros de Connecticut, repetiu nas sessões de confirmação: Bernanke "salvou a economia".
Como é possível dizer que o Fed fez isso quando o volume de endividamento está a aumentar exponencialmente para além da capacidade de pagar? "Salvar a economia" indo em socorro dos credores – acrescentando dívidas incobráveis privadas ao balanço do sector público – é sobrecarregar a economia, não é salvá-la. Esta política só adia a crise ao mesmo tempo que aprofunda o volume final de dívida que devia ser liquidada – e portanto muito mais difícil de liquidar, anulando um volume correspondente de poupanças do outro lado da folha de balanço (porque as poupanças de um lado são as dívidas do outro lado).
O que está de facto em causa é a filosofia económica que Bernanke vai aplicar durante os próximos quatro anos. Lamentavelmente, os contestatários de Bernanke esquecem-se de fazer perguntas pertinentes quanto às linhas desta política e à teoria económica ou lógica subjacentes a esta abordagem prática. O que devia ser abordado não era apenas a sua atitude desreguladora perante a Bolha da Economia e a explosão da fraude aos consumidores, nem sequer os erros que cometeu. O senador Republicano Jim Bunning só apresentou um sorriso amarelo e exibiu um ar contrito quando Bernanke apoiou o queixo na mão, como se quisesse dizer, "Vou ser paciente e deixar-vos falar". Os outros senadores quase pediram desculpas.
Uma descrição popular (e cuidadosamente enganadora) de Bernanke, que tem sido citada até ao enjoo para promover a sua renomeação, é que ele é um especialista quanto às causas da Grande Depressão. Se vamos criar um novo colapso, isso certamente ajudará a compreender esta última. Mas os historiadores económicos que compararam os escritos de Bernanke à história real chegaram à conclusão de que é precisamente a sua má interpretação da Depressão que o está a levar a repeti-la de forma trágica.
Enquanto apologista do "gotejamento" (trickle-down) [1] para a alta finança, o prof. Bernanke tem retirado sistematicamente conclusões falsas quanto às causas da Grande Depressão. O preconceito ideológico por detrás das suas opiniões é obviamente a razão principal que lhe valeu o seu cargo porque, como muitos observadores satirizaram, uma condição prévia para ser contratado como presidente do Fed é que não se perceba como funciona realmente o sistema financeiro. Em vez de reconhecer que um endividamento crescente, salários baixos e a canalização da riqueza para o topo da pirâmide económica foram as causas principais da Depressão, o prof. Bernanke atribui o problema principal simplesmente à falta de liquidez, que provocou a baixa de preços.
Conforme escreveu recentemente o meu colega australiano Steve Keen no seu Debtwatch no. 42 ( http://www.debtdeflation.com/blogs/ ), o processo contra Bernanke devia concentrar-se na sua abordagem neoclássica que esquece o facto de que o dinheiro é dívida. Ele encara o problema financeiro como sendo o de um nível de preços demasiado baixo para que os activos possam ser colateralizados para empréstimos bancários. E para Bernanke, "riqueza" é sinónimo do que os bancos vão emprestar, nas condições de crédito existentes.
Em 1933, o economista Irving Fischer (principal responsável da tautologia monetarista "moderna" MV = PT) [2] escreveu um artigo clássico, "A Teoria Dívida-Deflação da Grande Depressão", desmentindo a visão neoclássica que o levou a perder a sua fortuna pessoal no colapso do mercado de acções de 1929. Explicava como a incapacidade de pagar as dívidas estava a provocar bancarrotas, acabando com o crédito bancário e poder de consumo, encolhendo os mercados e consequentemente o incentivo para investir e empregar a força de trabalho.
Bernanke rejeita esta ideia, ou pelo menos a sua interpretação que parafraseia nos seus Ensaios sobre a Grande Depressão (Princeton, 2000, p. 24), conforme cita o prof. Keen:
No entanto a ideia de Fischer foi menos influente nos círculos académicos, por causa do contra-argumento de que a dívida-deflação não representava senão uma redistribuição de um grupo (devedores) para outro (credores). Na ausência, pouco admissíveis, de grandes diferenças nas tendências de despesas marginais entre os grupos, sugeria-se, as redistribuições puras não teriam efeitos macroeconómicos significativos.
Tudo o que um endividamento excessivo faz é transferir o poder de compra dos devedores para os credores. Nisto Bernanke faz lembrar Thomas Robert Malthus, cujos Princípios de Economia Política defendiam que os proprietários (a classe de Malthus) tinham necessariamente que manter um equilíbrio económico num modo parecido com os teóricos do 'trickle-down' ao longo dos tempos. O que seria do emprego inglês, argumentava Malthus, se os patrões não gastassem os seus rendimentos em cocheiros, roupas dispendiosas, mordomos e criados? Foram os gastos dos patrões a partir dos seus rendimentos de rendas (protegidos pelas tarifas agrícolas de Inglaterra, as Leis do Trigo, até 1846), que mantiveram o trabalho dos fabricantes de carroças e de outros fornecedores. E, pela mesma lógica, é o que os financeiros abastados de Wall Street fazem hoje com o dinheiro que ganham nos empréstimos, possibilitando que os proprietários de casas e os poupadores fiquem ricos conseguindo ganhos de capital com a inflação do preço dos activos.
A realidade é que os abastados financeiros de Wall Street, que ganham salários e bónus de multi-milhões de dólares, gastam o seu dinheiro em troféus: belas artes, apartamentos ou casas de luxo em condomínios privados, iates, carteiras de marca e alta moda, festas de aniversários com a participação de cantores pop da moda. ("Estou a ver os iates dos corretores de títulos; mas onde é que estão os dos seus clientes?") Não é este o tipo de despesas que reflecte o perfil de produção da economia "real".
Bernanke não vê qualquer problema, a não ser que os ricos gastem uma parte menor dos seus ganhos em bens de consumo e de produtos do trabalho do que os assalariados médios. Mas claro que esta tendência para consumir é precisamente o ponto que John Maynard Keynes realçou na sua Teoria Geral (1936). Quanto mais ricas as pessoas ficam, mais baixa é a proporção do seu rendimento que consomem – e mais poupam.
Esta tendência decrescente para consumir é o que preocupava Keynes quanto ao futuro. Achava que, quando as economias poupavam mais do que a subida dos seus níveis de rendimentos, iriam gastar menos em bens e serviços. Portanto a produção e o emprego não conseguiriam acompanhar o ritmo – a não ser que o governo se intrometesse para preencher o fosso.
Os gastos de consumo estão de facto a cair, mas não porque a economia estejam a assistir a uma taxa de poupança mais alta. A taxa de poupança americana caiu para zero – porque, apesar do facto de as poupanças brutas se manterem altas (cerca de 18 por cento), a maior parte é emprestada para se transformar em dívida de outras pessoas. O efeito é portanto uma lavagem com base numa economia alargada. (18 por cento de poupanças menos 18 por cento de dívidas = poupanças líquidas zero).
O problema é que trabalhadores e consumidores se afundaram cada vez mais em dívidas, poupando cada vez menos. Isto é exactamente o oposto do que Keynes previa. Só os 10 por cento mais ricos da população poupam cada vez mais – principalmente sob a forma de empréstimos aos "90 por cento de baixo". Mas poupar menos vai de mãos dadas com consumir menos, por causa das receitas que o sector financeiro extrai do fluxo circular da economia "real" (assalariados que gastam as suas receitas para comprar os bens que produzem) como serviço da dívida. O sector financeiro está envolvido na economia de produção-e-consumo. Portanto, a incapacidade de consumir faz parte integrante do problema da dívida. A base da política monetária em todo o mundo moderno devia ser pois como salvar as economias de se encolherem em resultado do seu alto endividamento de crescimento exponencial.
A apologia de Bernanke do capital financeiro: as economias parece necessitarem de mais dívida, e não de menos
Bernanke acha que o "decréscimo na procura total" é o factor dominante na Grande Depressão (p. ex, conforme citado por Steve Keen). Isto é verdade em qualquer depressão económica. Mas, na sua leitura, a dívida parece não ter nada a ver com a redução dos gastos dos bens que o trabalho produz. Assumindo o ponto de vista de um banqueiro, acha que o problema mais grave é a procura de acções e de imobiliário. Bernanke promete não deixar cair de novo a procura de activos (e, portanto, dos preços dos activos). O seu antídoto é inundar a economia com crédito como está agora a fazer, imitando a política de bolha de Alan Greenspan.
Os 10 por cento mais ricos da população, evidentemente, poupam a maior parte do seu dinheiro. Emprestam as poupanças – e criam novo crédito – aos outros 90 por cento de baixo, ou jogam em derivativos ou outras actividades de 'soma zero' [3] em que os seus ganhos (se, claro, os tiverem) encontram a sua contrapartida nas perdas de outras pessoas. O sistema mantém-se em andamento, não através das despesas do governo, ao estilo de Keynes, mas pela criação de novo crédito. Isso sustenta o consumo e, claro, o empréstimo para imobiliário, acções e títulos permite que os emprestadores aumentem os seus preços, permitindo que os seus possuidores contraiam mais empréstimos com base nesses activos. A economia expande-se – até que as receitas correntes deixem de cobrir os encargos decorrentes da dívida.
É isso que faz rebentar a Bolha da Economia. A inflação dos preços dos activos dá lugar à queda dos preços e a um património negativo do imobiliário e também a grande parte da alavancagem da dívida financeira. É neste sentido que Bernanke considera que a Depressão teve como causa os preços mais baixos. Quando os preços do imobiliário ou de outros colaterais mergulham, deixa de ser possível fazer mais empréstimos para manter em andamento o fluxo circular de empréstimo e reembolso da dívida.
O fluxo circular financeiro é muito diferente do fluxo circular que Keynes (e a Lei de Say) discutia – a circulação em que os trabalhadores e os seus empregadores gastavam os seus salários e lucros em bens de consumo e bens de investimento. O fluxo circular financeiro processa-se entre os bancos e os seus clientes. E este fluxo circular incha à medida que desvia cada vez maior quantidade de despesas do fluxo circular da economia "real" entre receitas e despesas. O capital financeiro aumenta em relação ao capital industrial. [i]
Os preços mais altos na economia "real" podem ajudar a manter o fluxo circular financeiro, dando mais receitas correntes aos que contraem empréstimos para pagar as suas hipotecas, empréstimos para estudos e outras dívidas. Assim, Bernanke considera que a desvalorização do dólar de Franklin Roosevelt ajudou a voltar a inflacionar os preços.
Mas actualmente um dólar em queda tornaria as importações (tanto matérias-primas como bens de consumo) mais caras. Isso iria comprimir os orçamentos da maior parte das famílias, dada a crescente dependência da América em relação às importações, visto que a sua economia está pós-industrializada e financiarizada. Portanto, a política preferida de Bernanke é levar os bancos a voltar a emprestar – não para que o governo gaste mais em despesas deficitárias em infra-estruturas, serviços sociais ou outros projectos de pleno emprego. As despesas governamentais que Bernanke patrocinou são puras operações de salvamento dos bancos, companhias de seguros, especuladores de imobiliário e outras instituições de Wall Street para que elas possam estimular os preços dos activos e dessa forma salvar o balanço financeiro da economia, e não o emprego e o nível de vida.
Portanto um maior endividamento não é o problema, na perspectiva do presidente Bernanke. É a solução. É isto que torna tão perigosa a sua renomeação.
A desvalorização do dólar ao estilo de Roosevelt tornaria o imobiliário, as empresas e outros activos americanos mais baratos para os investidores globais. Teria pois os mesmos efeitos "positivos" (se é que é um efeito "positivo" tornar as casas e os edifícios de escritórios mais custosos para os compradores) do que o aumento do crédito – e sem que seja necessário eliminar o serviço da dívida da economia. Esta política é parecida com o programa de austeridade e de "estabilização" do Fundo Monetário que tem causado tanta destruição nas últimas décadas. [ii] É a política que está a ser preparada para ser imposta aos Estados Unidos. É isto também que torna a renomeação de Bernanke tão perigosa.
O problema é uma mistura da perigosa leitura errada de Bernanke da história económica, e a perspectiva de banqueiro que está subjacente a essa leitura – que ele agora foi mandatado para impor do seu poleiro de planificador central no Federal Reserve Board. O apoio do Presidente Obama à sua renomeação sugere que a recente retórica económica ouvida na Casa Branca é um falso populismo. O Presidente promete que desta vez vai ser diferente. Os antigos nomeados por Bush – Geithner, Bernanke e os gestores da Goldman Sachs emprestados ao Tesouro – estarão dispostos a defender a Golden Sachs e os outros banqueiros. E desta vez os rapazes 'rubinomics' [4] da era de Clinton não vão fazer à economia dos EUA o que fizeram à União Soviética.
Com esta postura, não admira que os Democratas de Obama estejam a abrir mão da carta populista anti-Wall Street a favor dos Republicanos!
O estorvo Bernanke
Bernanke esquece-se do problema de que as dívidas têm que ser pagas – ou pelo menos renegociadas. Este serviço da dívida deflaciona a economia "real" não financeira. Mas a análise do Fed pára mesmo antes do colapso. É uma teoria de "boas notícias" limitada ao período de tempo feliz em que a bolha está a aumentar e os proprietários de casas vão pedindo aos bancos mais e mais empréstimos para comprar casas (ou mais rigorosamente os seus terrenos) que estão a subir de preço. Foi essa a bolha Greenspan-Bernanke em poucas palavras.
Não é preciso olhar para tão longe como a Grande Depressão. O Japão, a partir de 1990, é um bom exemplo. Os preços dos terrenos caíram todos os trimestres durante mais de 15 anos depois de a bolha rebentar. O Banco do Japão fez o que o Federal Reserve está agora a fazer. Baixou as taxas de empréstimo aos bancos para menos de 1%. Os bancos "conseguiram a sua saída da dívida" emprestando a especuladores globais que trocaram os empréstimos em ienes por divisas estrangeiras e compraram activos de rendimento mais alto no estrangeiro – sobretudo títulos do governo islandês que rendiam 15% e meteram ao bolso a diferença de câmbio.
Esta conversão contínua de dinheiro especulativo a partir do iene em divisas estrangeiras fez baixar a taxa de câmbio do Japão, ajudando os exportadores. Da mesma forma hoje, a política de juros baixos do Fed leva os bancos americanos a contrair empréstimos e a emprestar aos intermediários comprando títulos de rendimento mais alto ou outras garantias designadas em euros, libras esterlinas e outras divisas.
O problema do câmbio externo surge quando estes empréstimos são reembolsados. No caso do Japão, quando os mercados financeiros globais entraram em baixa, e as taxas de juro japonesas começaram a subir em 2008, os intermediários decidiram inverter a sua posição. Para reembolsar os ienes que tinham pedido emprestado aos bancos japoneses, venderam títulos denominados em euros e dólares e compraram divisas japonesas. Isto forçou a subida da taxa de câmbio do iene – erodindo a competitividade de exportação e lançando o caos na economia. O Partido Democrático Liberal, que há muito governava, foi corrido do poder quando o desemprego alastrou.
No caso actual dos EUA, o regime de taxas baixas de juros do presidente Bernanke no Fed estimulou um comércio denominado em dólares avaliado em US$1,5 milhões de milhões. Os especuladores contraíram empréstimos de dólares a juros baixos e compraram títulos de divisas estrangeiras de juros altos. Isto enfraquece a taxa de câmbio do dólar em relação às divisas estrangeiras (cujos bancos centrais estão a aplicar taxas de juro mais altas). O dólar enfraquecido leva a que os gestores de dinheiro dos EUA façam sair mais fundos de investimento da nossa economia em busca desses promissores lucros do mercado de acções assim como de um lucro em divisas estrangeiras.
A perspectiva de desfazer esta criação de crédito ameaça encurralar os Estados Unidos numa ratoeira de juros baixos. O problema é que, se e quando o Fed começar a aumentar as taxas de juro (por exemplo, para abrandar a nova bolha que Bernanke está a tentar alimentar), os especuladores globais vão reembolsar as suas dívidas em dólares. Quando for invertida a situação nos EUA, o dólar vai aumentar rapidamente de preço. Isso ameaça fazer da promessa de Obama em duplicar as exportações americanas dentro de cinco anos um sonho impossível.
A perspectiva para os consumidores americanos é serem atingidos por uma tripla ameaça. Têm que pagar preços mais altos pelos bens que compram, quando o dólar cai, tornando as importações mais caras. E o governo irá gastar menos no fluxo circular da economia em consequência do congelamento de despesas por três anos do presidente Obama para abrandar os défices orçamentais. Entretanto, os estados e as cidades estão a aumentar os impostos para equilibrar os seus próprios orçamentos à medida que as receitas dos impostos caem. Os consumos e, claro, toda a economia tem que mergulhar mais profundamente no endividamento para acabar por ficar na mesma (ou então assistir à degradação do nível de vida).
Para Bernanke, a recuperação económica exige que se ressuscite o polvo [5] Goldman Sachs que Matt Taibbi descreveu tão engenhosamente como estando colada no rosto da humanidade, devidamente protegida pelo Fed. Os bancos emprestarão mais para manter a pirâmide da dívida a aumentar para que os consumidores, os negócios e os governos locais evitem a contracção.
Tudo isto enriquece os bancos – enquanto as dívidas puderem ser pagas. E se não puderem ser pagas, irá o governo em socorro deles mais uma vez? Ou desta vez "será diferente"?
Irá a nossa economia debater-se por causa da renomeação de Bernanke enquanto os ricos ficam mais ricos e as famílias americanas ficam sob uma pressão financeira crescente à medida que as receitas descem e as dívidas crescem exponencialmente? Ou sairão os americanos mais ricos da nova bolha quando o Fed voltar a inflacionar os preços dos activos?
A via para a servidão da dívida
Na semana passada, o senador John Kerry de Massachusetts reconheceu a fúria de muitos americanos por causa das operações de salvamento dos grandes bancos. "É compreensível que exista um debate, interrogações e até fúria" quanto à renomeação de Bernanke. "No entanto", acrescentou, "depois desta quase calamidade, acho que o presidente Bernanke exerceu uma liderança que foi urgente, inteligente, forte e vital para afastar um desastre maior".
Lamentavelmente, por "desastre" o senador Kerry parece querer significar as perdas para Wall Street. Partilha com o presidente Bernanke da ideia de que os ganhos decorrentes da subida de preços dos activos são bons para a economia – por exemplo, possibilitando os fundos de pensões a pagar aos reformados e "construir riqueza" para os poupadores americanos.
Enquanto a equipa Bush-Obama espera voltar a inflacionar a economia, os 13 milhões de milhões de dólares da operação de salvamento que gastou tentando alimentar a bolha destrutiva assumem a forma de economia de gotejamento ('trickle-down'). Não desencadearam a dívida pública do tipo keynesiano, com o governo a gastar o mesmo valor no modesto pacote "Estímulo" para aumentar o emprego e as receitas. E não está a proporcionar melhores serviços públicos. Foi destinado apenas a inflacionar os preços dos activos – ou mais rigorosamente, a impedir que eles caíssem.
É isto que significa a renomeação do presidente do FED. Significa uma política destinada a aumentar os preços das casas a crédito, com uma correspondente subida na receita dos consumidores paga aos banqueiros como amortização do serviço de dívida.
Entretanto, a subida dos preços de acções e títulos vai fazer aumentar o preço da compra de um rendimento de reforma. Um preço de acções mais alto significa a obtenção de um dividendo mais baixo. O mesmo acontece com os títulos. Inundar os mercados de capital com crédito para aumentar os preços dos activos faz baixar os lucros dos activos dos fundos de pensões, empurrando-os para o défice. Isto permite que os gestores das empresas ou companhias inteiras, tipo General Motors, fiquem ameaçados pela insolvência dos seus planos de pensões se os sindicatos não renegociarem os seus contratos de pensões para valores mais baixos. Isso ainda "liberta" mais dinheiro para os gestores financeiros pagarem a credores que estão no topo da pirâmide económica.
A oposição de Bernanke à regulamentação de Wall Street
Como é que se ultrapassa esta polarização financeira? A solução aparentemente óbvia é escolher administradores para o Fed e para o Tesouro fora das fileiras dos ideólogos apoiados – aplaudidos mesmo – por Wall Street. A criação de uma Agência de Produtos Financeiros do Consumidor, por exemplo, deixará de ter sentido se for um anti-regulador como Bernanke a dirigi-la. Mas é isso precisamente o que ele está a pedir quando declara que o seu Fed devia ser a única agência reguladora, invalidando os esforços de todas as outras – não vá uma qualquer agência estatal, uma agência federal ou qualquer comissão do Congresso resolver proteger os consumidores contra o empréstimo fraudulento, honorários exorbitantes e penalizações e taxas de juro usurárias.
A luta de Bernanke contra as propostas para essas agências reguladoras a fim de proteger os consumidores do empréstimo predatório é pois uma segunda razão para não o renomear. Como pode Obama fazer campanha a favor da sua renomeação para presidente do Fed e ao mesmo tempo apoiar a agência de protecção ao consumidor? Sem nos vermos livres de Bernanke e Geithner, não interessa o que diz a lei. Os Democratas aprenderam com as administrações de Bush e Reagan que basta nomear desreguladores para as posições chave e as garras legais passam a ser irrelevantes.
A independência do Federal Reserve é um eufemismo para oligarquia financeira.
Isto arrasta a terceira premissa que os defensores de Bernanke citam: a tão gabada independência do Federal Reserve. Que supostamente serve para salvaguarda da democracia. Mas o Fed devia estar sujeito à democracia representativa, em vez de ser independente dela! Devia fazer parte do Tesouro representando o interesse nacional em vez dos interesses de Wall Street.
Isto apareceu como um importante problema com o sistema de dois partidos políticos na América. Tal como a equipa Republicana, a administração Obama também põe os interesses financeiros em primeiro lugar, com a premissa de que a riqueza decorre das suas actividades de crédito, o enquadramento do tempo financeiro tende a ser a curto prazo e economicamente corrosivo. Apoia o crescimento do endividamento geral à custa da economia "real", tomando assim uma posição de política anti-força de trabalho, anti-consumidora e anti-devedores.
Por que razão o sector mais importante das economias modernas – a finança – tem que ser independente do processo eleitoral? Isto é tão mau como tornar o poder judicial "independente", o que acaba por ser um eufemismo para extrema direita.
A bem dizer, para além e acima da questão da independência, está o problema de que o próprio governo está a ser dominado pelo sector financeiro. O secretário do Tesouro, o presidente do Fed e outros administradores financeiros estão subordinados aos conselhos de Wall Street e ao seu consentimento, primeiro e acima de tudo. O poder do lobby torna difícil defender os interesses públicos, conforme vimos pela posição de Paulson e de Geithner. Não acredito que Obama ou os Democratas (para não falar dos Republicanos) estejam sequer perto de chegar à situação de resolver este problema. A única coisa que podemos fazer é lamentar a repetição que Obama faz das suas preferências.
Aliada à questão da "independência" há uma quarta razão para rejeitar Bernanke pessoalmente: o secretismo do Fed em relação à fiscalização do Congresso, realçada pela sua recusa em divulgar os nomes dos destinatários das dezenas de milhares de milhões das operações de salvamento do Fed e permutas de lixo tóxico.
Que é que importa?
Agora que foram rejeitados os argumentos de confirmação contra a renomeação de Bernanke, o que é que isso significa para o futuro?
Na frente política, a sua renomeação está a ser citada como mais uma prova de que os Democratas se preocupam mais com os banqueiros do que com as famílias americanas e com os trabalhadores. Por consequência, isso vai bastar para o que parecia impensável há um ano: possibilitar aos candidatos do Partido Republicano assumir a pose de salvadores tipo Roosevelt da classe média em pé de guerra. Sem dúvida mais uma década de falhanço económico abjecto do Partido Republicano fará apenas com que os Democratas corporativos apareçam mais uma vez como única alternativa. E assim continuará… a não ser que façamos alguma coisa.
O problema não é só que Bernanke não tenha feito o que a carta do Fed impõe fazer-se: promover o emprego num ambiente de preços estáveis. Os Republicanos – e alguns Democratas – lêem pela mesma cartilha de que Bernanke abusa. O Fed podia ter elevado as taxas de juro para abrandar a bolha. Não o fez. Podia ter feito parar a fraude de hipotecas por atacado. Não o fez. Podia ter protegido os consumidores limitando as taxas dos cartões de crédito. Não o fez.
Para Bernanke, tem que se manter o actual sistema financeiro (ou melhor, o endividamento geral) para que a redistribuição da riqueza para o topo possa continuar. O Serviço de Investigação do Congresso calculou que desde 1979 a 2003 o rendimento da riqueza (rendas, dividendos, juros e ganhos de capital) para o 1 por cento do topo da população disparou de 37,8% para 57,5%. Esta receita tem sido espoliada aos trabalhadores americanos empurrados para o triturador da dívida perante salários estagnados.
Entretanto, o governo permite que se forme uma portagem corporativa na nossa economia – e não lança impostos sobre estas receitas para que possam ser capitalizadas em riqueza financializada pagando apenas um imposto de 15% sobre os ganhos de capital. Estes impostos não são pagos à medida que estes lucros se acumulam, mas apenas se e quando eles se realizam. E o imposto nem sequer tem que ser pago se os lucros das vendas desses activos forem reinvestidos! A política financeira e fiscal reforça-se pois uma à outra num modo que polariza a economia entre o sector financeiro e a economia "real".
Por detrás destas más políticas há um corpo inquietante de teoria económica lixo – uma economia que, infelizmente, é ensinada na maior parte das universidades actuais. (Não na Universidade do Missouri em Kansas City e em algumas outras, é preciso que se diga). Bernanke considera o dinheiro como fazendo parte duma equação oferta e procura entre dinheiro e preços – e aqui refere-se apenas aos preços no consumidor, e não aos preços dos activos que o Fed se esqueceu de referir. É uma parte importante do buraco negro do Fed: Greenspan e Bernanke acharam que a carta do Fed se referia apenas à estabilização dos preços no consumidor e dos salários – enquanto que os preços dos activos – o custo de obter uma casa, um curso ou um rendimento de reforma – dispararam em consequência da alavancagem da dívida.
O que falha em Bernanke – tal como com os seus colegas neoclássicos – é que o dinheiro que é gasto no aumento dos preços também é dívida. Isso significa que deixa uma herança de dívida. Quando os bancos "fornecem crédito" subscrevendo empréstimos, o que estão a vender é dívida.
A pergunta que os seus departamentos de marketing fazem é, qual a dimensão do mercado para a dívida? Quando fui trabalhar para o Chase Manhattan em 1967 como analista do departamento de balanço, por exemplo, estabeleci ligação com o departamento de marketing para calcular qual era a dimensão do mercado internacional de dívida – e qual a dimensão da quota desse mercado que o banco podia razoavelmente esperar obter.
O banco quantificou o mercado de dívida medindo até que ponto os emprestadores de excedentes podiam pressionar para além das necessidades básicas. Para empréstimos pessoais, a analogia foi, quanto é que um assalariado podia pagar ao banco depois de satisfazer as necessidades básicas (renda, alimentação, transportes, impostos, etc.). Para o departamento de imobiliário, quanto das receitas líquidas podia pagar o dono de um terreno, depois de pagar o combustível e outros custos operacionais e impostos? O excedente calculado das receitas foi capitalizado num empréstimo. Do ponto de vista privilegiado do departamento de marketing, os bancos estavam dispostos a absorver todo o excedente como serviço de dívida.
O serviço de dívida financeiro não é gasto em bens de consumo. É reciclado em novos empréstimos, depois de pagar os dividendos aos accionistas e os salários e bónus aos seus gestores. Os accionistas gastam o dinheiro a comprar outros investimentos – mais acções e títulos. Os gestores compram troféus – iates, obras de arte, carros luxuosos, apartamentos luxuosos (cujo principal valor é a sua localização – o bairro em que se situa o terreno), viagens ao estrangeiro e outras coisas luxuosas. Nenhuma destas despesas tem grande efeito sobre o índice dos preços ao consumidor, mas afecta os preços dos activos.
Esta ideia está em falta na teoria neoclássica e monetarista. Uma vez gasto o "dinheiro" (ou seja, a dívida), isso tem um efeito nos preços através da procura e da oferta e pronto. Não há dinâmica ao longo do tempo de dívida ou riqueza. Desde que o marxismo empurrou a economia política clássica para a sua conclusão lógica nos finais do século XIX, a ortodoxia económica ficou traumatizada em tratar da riqueza e da dívida. Por isso faltam as relações de balanço no currículo económico académico. Foi por isso que deixei de ensinar teoria económica em 1972, até que a UMKC [Universidade de Missouri-Kansas City] desenvolveu um currículo alternativo ao do monetarismo da Universidade de Chicago, focando a criação da dívida e o reconhecimento de que os empréstimos bancários criam depósitos, invertendo a habitual teoria "austríaca" e outras teorias do universo individualista paralelo.
[i] Elaborei a lógica com mais pormenor em "Saving, Asset-Price Inflation, and Debt-Induced Deflation", in L. Randall Wray and Matthew Forstater, eds., Money, Financial Instability and Stabilization Policy (Edward Elgar, 2006):104-24. E explico como a recente expansão de crédito e facilidade das condições de empréstimo alimentaram a bolha do imobiliário em "The New Road to Serfdom: An illustrated guide to the coming real estate collapse," Harpers, Vol. 312 (No. 1872), May 2006):39-46.
[ii] Explico o funcionamento destes planos com mais pormenor em Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance (1972; nova ed., 2002), "Trends that can't go on forever, won't: financial bubbles, trade and exchange rates," em Eckhard Hein, Torsten Niechoj, Peter Spahn and Achim Truger (eds.), Finance-led Capitalism? (Marburg: Metropolis-Verlag, 2008), e Trade, Development and Foreign Debt: A History of Theories of Polarization v. Convergence in the World Economy (1992, nova ed. 2009).
N.T.
[1] 'economia do gotejamento (trickle-down)' é um termo de retórica política que se refere à política de proporcionar cortes de impostos ou outros benefícios aos negócios na crença de que isso beneficiará indirectamente a população em geral.
[2] MV = PT, em que
M é a quantidade de dinheiro disponível na economia para transacções
V é a velocidade de circulação, ou seja, número de vezes que o total do dinheiro muda de mãos em transacções durante um determinado período de tempo
P é o nível de preços
Q é o número de transacções
[3] Soma zero (zero sum) – situação em que o ganho (ou perda) de um participante é compensado rigorosamente pela perda (ou ganho) do(s) outro(s) participante(s).
[4] Rubinomics (Rubin+economics) – política económica de Clinton e Robert Rubin, antigo secretário do Tesouro; sublinha o efeito que o equilíbrio do orçamento do governo tem sobre as taxas de juro a longo-prazo
[5] "A primeira coisa que é preciso saber sobre o Goldman Sachs é que ele está em toda a parte. O banco de investimentos mais poderoso do mundo é um grande polvo vampiro colado no rosto da humanidade, comprimindo incessantemente as suas ventosas contra tudo o que lhe cheire a dinheiro" (Matt Taibbi, "The Great American Bubble Machine")
O original encontra-se em http://globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=17346 . Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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