quarta-feira, 4 de março de 2009

IGREJA CATÓLICA - Bispo critica recuos "indevidos" do Vaticano.

Claudio Leal
Do Rio de Janeiro

Quatorze cartas caíram na mesa do bispo Dom Clemente Isnard. Homem de fala pausada, mas nada reticente, ele mergulhou em ponderações numa das celas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, em 2008. Aconselhados pelo cardeal fluminense, quatorze bispos pediram que não publicasse "o livro". Antes ouvira do abade: "Eu não li o livro. Mas ele vai lhe trazer muito sofrimento. E vai trazer respingos para mim e para o mosteiro".

Dom Clemente tinha o salvo-conduto da idade: 90 anos. Ordenado presbítero em 19 de dezembro de 1942, exerceu por 20 anos a presidência da Comissão de Liturgia da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e participou do Concílio Ecumênico Vaticano II - convocado pelo papa João XXIII. O bispo possui uma longa e respeitada trajetória no clero, o que garante força às suas palavras.

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Mas outro impulso o moveu na hora de decidir pela publicação da plaqueta Reflexões de um bispo, que levanta idéias renovadoras para a Igreja e lança dardos apimentados contra os burocratas de Roma. "Devo dar um testemunho", definiu sua missão.

O núncio apostólico, embaixador do Papa junto ao governo de um País, influiu para que a editora Paulus não editasse o livro, segundo relata Isnard. Entre suas propostas ousadas, está a de acabar com os onerosos cargos "diplomáticos". Num sermão em Olinda, ao completar nove décadas, o bispo criticou a existência do núncio e defendeu a descentralização da cúria romana.

- Ele esteve comigo aqui (no Mosteiro). Apertou minha mão, não falou nada. Nem eu falei nada. Eu teria que falar pra ele: "Senhor núncio, com que direito o senhor proibiu os padres paulinos de editarem meu livro?". Eu tinha direito de perguntar isso a ele. Mas aí seria um desaforo - conta.

Isnard recebeu a reportagem de Terra Magazine, no mosteiro beneditino do Rio, para esclarecer suas idéias e avaliar as transformações da Igreja no pontificado de Bento XVI. Nomeado membro do Conselho para execução da Constituição de Liturgia pelo papa Paulo VI, em 1964, o bispo critica os "recuos indevidos" do legado do Concílio Vaticano II. O cardeal Ratzinger tem esgrimado contra aspectos modernizantes do concílio ecumênico.

- Nós temos, na Igreja, um grupo retrógrado grande - reconhece.

As teses renovadoras de Dom Clemente Isnard podem ser condensadas em quatro pontos: o celibato opcional, a ordenação de mulheres, a participação popular nas nomeações de bispos e a entrega de obrigações a bispos eméritos. Ele também apóia uma idéia de Dom Aloísio Lorscheider (1924-2007): o fim do colégio cardinalício para a escolha do papa.

O celibato opcional dos padres, ressalta, chegou a ser proposto na década de 60. Mas uma pedra foi posta em cima.

- O patriarca oriental, Máximos IV, foi uma das personalidades mais brilhantes do Concílio Vaticano II. Era a favor. Chegaram a abrir as inscrições para quem quisesse falar sobre isso. Então, o papa Paulo VI sondou quais seriam as cabeças e chamou um por um e convenceu que não era oportuno.

Quanto à ordenação feminina, Isnard acha "muito estranho que durante dois mil anos não se tenha feito isso na Igreja Católica."

Nesta entrevista, não se priva de contar bastidores da história da Igreja brasileira e condena "retrocessos" na CNBB. Revela uma das histórias que retirou do livro, a pedidos. Ilustra o comportamento autocrático de parte da cúpula católica.

- Os paulinos pediram pra tirar. Eu tirei o nome... O algoz é um arcebispo, que já é agora também emérito. O padre pediu uma audiência e ele respondeu por escrito, e assinou: "Seu pedido de audiência me deixa enojado. Fale com a secretária".

Dom Clemente Isnard revisita ainda memórias de Jayme Ovalle, Augusto Frederico Schmidt, Raul de Leoni (seu tio), Alceu Amoroso Lima e Dom Sebastião Leme, além de descrever o microcosmo da Livraria Católica, no Rio.

"Costumo responder às perguntas", avisou de saída, como quem previne o entrevistador para relatos cristalinos. O livro Reflexões de um bispo pode ser encontrado na editora Olho D'Água, em São Paulo (Dr. Homem de Melo, 1036, Perdizes. Tel: (11) 3673-9633).

Leia a entrevista:

Terra Magazine - Por que o senhor defende o fim do colégio cardinalício?
D. Clemente Isnard- D. Aloísio Lorscheider, que era cardeal, dizia que se devia acabar o colégio cardinalício - quer dizer, o grupo de pessoas que elege o papa - e fazer com que o papa seja eleito pelos presidentes das conferências episcopais. Isso, pra mim, é uma possibilidade ímpar, representativamente. Aquele colégio cardinalício é de pessoas escolhidas pelo próprio papa. De certa maneira, ele faz o seu sucessor. Porque ele escolhe os eleitores do seu sucessor. Quando ele morre, os cardeais do mundo inteiro se reúnem. Hoje são do mundo inteiro. Antigamente era pior. Porque era um grupo quase exclusivamente de italianos.

Agora, não. Tem uma maioria italiana, mas do Brasil tem três ou quatro, da Argentina, Chile, Peru, Colômbia, enfim, a América Latina quase toda. Depois a América do Norte com boa representatividade, a Ásia... A Europa fica com mais privilégio, é mais numerosa (Alemanha, França, Itália). Mas aí esses presidentes de conferência episcopal não são vitalícios, eles são eleitos por um prazo - três ou quatro anos. Varia conforme o País. Não há o perigo de se formar um grupo que vota numa determinada linha. Então, o que nós estamos vendo agora é que, na Igreja, há uma maioria no episcopado que se traduziu no Concílio Vaticano II, em 1962. Eu estive lá, nos quatro anos do Concílio. Eram bispos do mundo inteiro. Os cardeais estavam também, são 120 cardeais.

Isso ajuda a arejar a Igreja e a desmontar uma burocracia?
É um pensamento muito bom do cardeal Lorscheider, que votou na eleição do papa. Não sei em quantos ele votou. No João Paulo II ele votou. Aos 80 anos, perde o direito de voto. Essa é uma coisa boa que fez o papa Paulo VI ao esclarecer: o bispo, aos 75 anos, pede renúncia da diocese. E o cardeal, em Roma, aos 80 anos. Deu mais cinco anos. Antigamente, no conclave pra eleger o papa, iam os velhinhos de cadeira de rodas, intereiramente ausentes. Eram eleitores, tinham que ser convocados, né? Com 80 anos, não entra mais para votar. D. Aloisio fala disso, no livro dele, logo no princípio.

O senhor defende que a escolha dos bispos pode ser mais próxima aos fiéis, aos leigos. Essa idéia tem representatividade na Igreja?
Olha, meu filho, eu acho muito difícil. Porque, você sabe, o papa que foi eleito já tem 80 anos. Não vai ficar muito tempo. Em todo caso, tem 80 anos. Bem, ele foi eleito porque durante muito tempo trabalhou na Cúria Romana, durante quase 20 anos, naquela congregação da Doutrina da Fé. E ele deve ter exercido muito influência no papa João Paulo II. Ficou sempre com cargo. Morreu João Paulo II e os cargos, em Roma, continuaram esperando o novo papa. O pontificado de João Paulo II foi um dos mais longos da história. É interessante que ele foi vítima daquele atentado, foi ferido, mas foi um dos mais longos. No fim da vida, estava se arrastando. Não sei se ele estava lúcido ainda. Não sei. "Ah, porque ele falou, fez o sermão...". Pode ter sido escrito por outro. Isso a gente nunca sabe.

Como é que funcionaram as coisas no final da vida do papa João Paulo II? No Vaticano, quando um papa está doente, como é que age o entourage?
Toma posse. Toma conta. Ali no entourage eu conheço alguns cardeais. Conheço um cardeal francês, não sei se é da Cúria... Há dois tipos de cardeais. O cardeal da Cúria mora lá. E tem o cardeal que é bispo em algum lugar. Por exemplo, aqui no Rio de Janeiro e em São Paulo, o bispo é cardeal. Aí os cardeais são muito mais independentes. O cardeal da Cúria, naquele ambiente... Houve mudança, mas não deu pra eleger um papa com outra tendência. O cardeal (Carlo Maria) Martini é um jesuíta, foi reitor da Universidade Gregoriana de Roma e nomeado arcebispo de Milão por Paulo VI. Então, é automaticamente nomeado cardeal. Milão é a principal diocese do mundo. Ele foi arcebispo, cardeal, mas não fez essa proposta de eleição do papa. Quem fez foi o brasileiro Lorscheider.

Agora, consta... - isso é segredo que é violado e ficamos sabendo, o tal segredo de Polichinelo (risos) - consta que na eleição há vários escrutínios, dois por dia. Faz um de manhã, outro de tarde, pra dar tempo. É preciso dois terços dos votos. E aí aconteceu uma coisa: nenhum teve dois terços dos votos. O cardeal Ratzinger, que tomou posse, tirou em torno de 30 votos. Mas o cardeal Martini teve 20 votos. E mais uns votos assim espalhados, de modo que nenhum dos dois tinha os dois terços. Isso aconteceu na história, na Idade Média. Uma vez, ficamos sem papa dois anos, porque os cardeais eram poucos e não se puseram em acordo. Depois, o pessoal em Roma descobriu que a solução era diminuir a comida. Não davam comida suficiente pros cardeais. Mas, aqui, nós hoje em dia somos mais civilizados. O Martini desistiu da candidatura. O pessoal reuniou os votos no cardeal Ratzinger. O Ratzinger vai tomar muito cuidado ao nomear novos cardeais.

Por quê?
Pra ter segurança. Quem é o candidato dele? Não sei. Talvez o arcebispo de Viena, (Christoph) Schoenborn, um homem notável. Porque não pode ser um bobo, né? Dos cardeais franceses, conheço um de Roma. Um homem notável. Mas deve estar muito velho. Ele já trabalhava em Roma.

No atual papado, há um recuo do Concílio Vaticano II?
Indevido. O Concílio Vaticano é ecumênico. Reuniram-se 2.300 bispos. Tomou decisões. Por exemplo, na liturgia, nós conseguimos quase tudo. Depois, como era minha especialidade, e Paulo VI queria uma representação bem internacional, apesar de ele não me conhecer, ele me nomeou para o Conselho de Execução da Constituição. Porque a Constituição de Liturgia determinou: "Faça-se um novo rito da missa". Mas não disse como. Precisava de um Conselho pra elaborar aquilo. E eu fiz parte desse conselho, em Roma. Foi trabalhoso... Porque o papa queria resolver. Paulo VI não era um "pau mandado". Ele era um homem que hesitava. Muito delicado. E também um homem que custava a tomar decisões. O Concílio, uma vez, parou dois, três dias porque ele não tomava uma decisão que precisava tomar. O papa conserva sempre o poder decisório. Por exemplo, a questão do celibato opcional dos padres...

Que o senhor defende.
Foi proposto no Concílio por alguns membros, bispos. E o patriarca oriental, Máximos IV, foi uma das personalidades mais brilhantes do Concílio Vaticano II. Era a favor. Chegaram a abrir as inscrições para quem quisesse falar sobre isso. Então, o papa Paulo VI sondou quais seriam as cabeças e chamou um por um e convenceu que não era oportuno. O Concílio estava indo muito bem, muito em paz e isso iria trazer desconforto...


Isso precisa ser rediscutido? Dá para esclarecer sua posição?
Defendo o celibato opcional - isso não é dizer: "os padres agora podem casar". Na minha diocese, eu tive quatro padres que pediram. Tive que dar licença e encaminhar a Roma. Um deles eu até me interessei pra ter uma resposta rápida. É um padrezinho italiano, muito bom, mas que já tinha tido dois filhos. E tinha uma mulher, uma professora. Ele conseguiu uma escola da roça para ela. Ficava escondida nessa escola. Uma vez por semana ele ia lá, dormia, e assim fazia. Mas era um padre bom. Tinha amor a Deus, à Igreja, à sua função. Eu senti muito, mas dei licença pra ele fazer o casamento. Já estava desligado do ministério. Como bispo, eu posso fazer os ministros extraordinários do casamento, da comunhão, do batismo. Caso por caso. E ele também estava feliz por isso. Era professor, dava aulas, só não podia celebrar missas e dar absolvição sacramental. Bem, saí da diocese e o meu sucessor veio: "não, não, não pode fazer nada". Ele não podia mais batizar, casar, fazer celebração da palavra de Deus nas igrejas. Eu cheguei a nomeá-lo regente de uma paróquia... Isso é um cargo que eu criei na minha cabecinha aqui. Regente não é vigário. Ele fez o dever dele. Pregou a palavra de Deus, e pregava bem.

O celibato afasta boas vocações da Igreja?
Não. O que há é o seguinte: as vocações desceram muito de nível. Porque uma família piedosa, mas que não tem cultura nem tradições, a solução pra ela é colocar o filho num Seminário Menor, onde ele faz os estudos secundários. Lá então grande parte não fica. Os que ficam vão para o Seminário Maior. Nesta peneiração, sempre ficam alguns. Mas não tem mais ninguém assim como d. Luciano Mendes de Almeida, um neto de um homem do Império. Ou monsenhor Nabuco, da família Nabuco.

Não tem mais essa ligação com famílias tradicionais?
Não tem. O nível do episcopado brasileiro desceu. Essas pessoas de família com tradição não existem mais. Mesmo no mosteiro. Nós entramos aqui juntos: um era filho de almirante, outro filho de embaixador, meu pai era comerciante, mas tive educação primorosa, fiz em casa os estudos... Ninguém fez propaganda pra isso. Eu fui nomeado bispo e dois deles foram eleitos abades.

Vamos entrar no tema das ordenações de mulheres, que o senhor aborda de forma corajosa. Qual é sua tese?
Não proponho, levanto o pedido de que a Igreja pense sobre isso. Hoje eu proporia. É muito estranho que durante dois mil anos não se tenha feito isso na Igreja Católica. Mas é interessante que a Igreja Luterana, o reformador Lutero, não pensou também nisso. Ele casou-se com uma freira, mas nunca pensou em fazer essa freira uma sacerdotiza.

Como se justifica esse descompasso entre a Igreja e a sociedade em relação à mulher, que conquistou mais espaços no último século?
Pois é, e cada vez mais, mesmo dentro da Igreja, nas ordens religiosas.

Houve participação de mulheres no Concílio?
No Concílio, entraram as mulheres em cargos, não para votar, mas dando as assessorias. Só na última sessão, mas entraram no Concílio. Uns dizem que deu certo, outros que não deu certo. A Igreja Anglicana está no mundo inteiro e, em outros países (fora a Inglaterra), existem mulheres que são pastoras, presbíteras... Há na Bíblia - nós temos que seguir sempre a Bíblia - uma frase de São Paulo, apóstolo, na "Carta aos Gálatas". Essa carta é muito importante porque, certamente, foi escrita por ele. Nessa carta ele repreendeu São Pedro, publicamente... O papa é sucessor de S. Pedro. Muito bem. São Paulo, na "Carta aos Gálatas", diz: "Não há diferença entre judeu e grego." Achavam que grego não podia ser admitido na Igreja Católica. "Não há diferença entre escravo e livre". O escravo era uma coisa. O dono podia matar o escravo, não era crime. "E homem e mulher". Judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher. Não há diferença em Cristo.

Doutrinariamente, isso pode justificar a ordenação feminina?
Esse texto bíblico é uma base, um fundamento. Naturalmente, toda a igreja conservadora... "Ah!...Ah!...". Então, hoje, se tivesse que votar, votava. Agora, há uma coisa que eu não sabia. Tenho cultura, mas minha cultura não é universal. João Paulo II, numa encíclica, escreveu que não era possível dar o sacerdócio às mulheres e que esta sentença da Igreja era definitiva. Agora tem uma discussão pra ver se sentença definitiva é definitiva mesmo (ri) Se é infalível... O Concílio Vaticano I, em 1870, aprovou a infalibilidade do papa em algumas condições. Mas não ele dizer que é definitivo... Com isso, ele teria que fazer sondagens. Não fez. Consulta aos bispos do mundo inteiro... Por exemplo, pra canonizar, pra declarar o dogma da Imaculada Conceição, depois o dogma de Assunção de Nossa Senhora, o papa consultou todos os bispos. E quase todos deram opinião favorável. Pra dizer que mulher não, não vá dizer que é definitivo. Isso não basta. É opinião de d. Aloisio Lorscheider e do cardeal Martini de que a Igreja poderá, amanhã, abrir o sacerdócio para mulheres.
Fonte: Terra Magazine.

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