Blog do Sakamoto, por Leonardo Sakamoto -
Considerando que a internet é apenas um espaço, um meio, nenhuma das duas opções, e que as pessoas que utilizam esse meio é que adotam posturas, não saberia afirmar se hoje, no Brasil, a maior parte das pessoas que navegam se inclinam mais para um lado ou para o outro. Mas, se não é possível dizer que a internet é isso ou aquilo, aqui no blog boa parte dos comentários são extremamente conservadores – do meu ponto de vista, é claro. Pincei algumas declarações recorrentes por aqui e teci algumas considerações.
Com exceção daqueles que pecam pela extrema falta de bom senso e por isso são deletados, todos os comentários postados são mantidos. Posso discordar veementemente do que diz o meu leitor, mas ele tem o direito de dizer e a internet é um espaço aberto para isso mesmo. Por isso, vocês vão ter que me engolir nessa.
“Tá com dó de criança de rua/morador de rua/usuário de drogas? Leva para casa.”
A sistemática ausência do Estado e a mais sistemática ação de determinados grupos ditos liberais de reduzir a importância da ação estatal ajudou a espalhar cada vez mais aberrações como essa. A discussão sai do âmbito das políticas públicas, que deveriam existir para dar apoio a determinadas populações fragilizadas, e passou para o espaço privado. Ou seja, sou eu que tenho que pegar cada pessoa pelo braço e dar comida em casa. Pois o Estado tem que se preocupar com coisas mais importantes, como auxiliar grandes corporações. Por outro lado, o comentário é recheado de rancor, como se a pessoa desejasse ver uma punição contra esses deslocados. “Por que tenho que me encaixar na sociedade e eles não?”, deve perguntar o missivista. Daí para a desumanização e queimar índios na rua é um passo.
“Antes de falar mal de um pecuarista, saiba que é ele quem coloca a comida na sua mesa.”
Ninguém está criticando todos os pecuaristas, mas apenas aqueles que fazem caca. Esse tipo de comentário usa a velha técnica de convencer os outros de que você está falando mal deles também a fim de obter parceiros na luta contra o blogueiro. Identidade reativa, sabe? Criar um inimigo comum, no caso eu, ignorando as arestas que existem entre os produtores que atuam dentro da lei e os criminosos. O pior é que eu nem como carne de boi.
“Você defende o aborto, não entende os desígnios de Deus e não dá a mínima para a vida.”
Exatamente porque defendo, acima de tudo, a vida é que tenho essa posição. Mas poderíamos dialogar feito gente grande sobre o tema se fossem trazidos argumentos não sobrenaturais para essa discussão. Devido aos textos defendendo o santo direito da mulher ao aborto, e carregado de raiva ou de um ímpeto evangelizador, um leitor posta diariamente quase um capítulo inteiro da Bíblia na forma de comentários neste blog – que, graças a Deus, tem filtro para segurar esse tipo de fanfarronice. Realmente, não entendo os desígnios de Deus e não faço idéia se ele joga dados. Mas me lembro de uma tira do Laerte em que Deus cria um céu mais legal para pessoas desregradas que se divertiram na vida.
“Deus criou o homem para governar e a mulher para estar ao seu lado.” “O marido tem direito a bater em sua mulher.” “Lei Maria da Penha não deveria existir porque em briga de marido e mulher não se deve meter a colher.”
A maior parte dos comentários machistas foram anônimos neste blog. Por que será?
“Esses sem-terra são um bando de vagabundos. Apanhar é pouco, deveriam matar mais alguns para que parem de atacar a propriedade alheia.”
Às vezes me pergunto quem foi que escolheu os temas dos livros de História usados nas escolas. Pois se os alunos entendessem como a política de terras no país garantiu que um punhado de pessoas concentrasse boa parte das propriedades (os últimos dados do IBGE lançados na semana passada apenas confirmam isso) entenderiam melhor o que significa lutar pela terra. Não é roubar, mas garantir que seja feito Justiça. Outra coisa: boa parte das vezes são pessoas desprovidas de bens materiais que transbordam fascismo ao criticar ocupações de terra. Poderíamos falar durante dias sobre o que está por trás desses discursos, mas cito a raiva diante da coragem alheia, o desejo de ascensão social que culmina na mesma posição do latifundiário, os efeitos dos discursos (muito famosos na época da Guerra Fria) de que os comunistas vão invadir sua casa e tomar até o liquidificador depois de violentar sua filha… Ou posso estar enganado e todas as pessoas que deixam esses comentários bizarros no meu blog são da TFP. Espero que não, pois imagine quando resolverem fazer um flash mob aqui na frente da minha casa?
“Trabalhei quando criança e isso formou meu caráter. Criança tem que trabalhar para não ficar fazendo arruaça na rua.”
Boa parte dos comentários postados sobre trabalho infantil são maniqueístas: ou a criança tem que ser burro de carga ou vai assaltar nos semáforos, não existe a opção estudar-brincar-crescer. Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação seja bonita o suficiente para ser copiada pelo seu filho. Mas será que eles não imaginam que o trabalho infantil não precisa ser hereditário? “O trabalho liberta”, já dizia o portão do campo de concentração. No Natal, vou fazer uma lista para Papai Noel levar uma boneca de pano ou um carrinho de madeira para a porta desse pessoal amargo da vida.
“Queria ver você ter um filho homossexual.”
Também. Mas nosso planejamento familiar prevê filhos apenas um pouco mais para frente. Depois da Copa.
“Se você critica tanto São Paulo, seu fdp, porque não se muda daqui? Tenho orgulho de ser bandeirante, sou a locomotiva que puxa este país!”
São Paulo, ame-o ou deixe-o. Depois perguntam porque a redemocratização é lenta nas entranhas de alguns. Esse comentário estava em um post em que escrevi que parte da população de São Paulo, pobre ou rica, guarda o ranço quatrocentão, bandeirante, o nariz empinado e arrogante diante do restante do país. É aquela coisa: se você é paulista e critica o estado, bom sujeito não é. O bom é que a pseudo-hegemonia perde força a cada dia.
“A empresa X gera empregos para o Brasil. E você? Quantos empregos gera?”
Trabalho é a única coisa que gera riqueza, portanto sem força de trabalho nenhuma empresa gera riqueza real. Em outras palavras, não é um favor contratar alguém, uma vez que alguém vai ficar com o lucro obtido por essa pessoa. O dono do capital precisa do trabalhador, contudo é comum as empresas e parte da mídia inverterem o discurso, mostrando a bondade de contratar empregados. Faça-me um favor! Aliás, fico na dúvida: será que comentários assim vieram das assessoria de imprensa contratadas para garantir a imagem da empresa, de empregados de alto escalão das mesmas ou veio de trabalhadores da base que sentem orgulho de fazer parte de uma grande corporação? Se forem as opções “a” e “b”, OK, faz parte, Se for a “c”, começo a me preocupar pela raça humana.
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