segunda-feira, 7 de julho de 2008

COLÔMBIA - O preço da liberdade.

COLÔMBIA

O preço da liberdade

Ainda é difícil saber o que de fato aconteceu na selva colombiana no episódio da libertação de Ingrid Betancourt. Mas uma coisa é certa: a versão oficial é inverossímil. E as FARC estão pagando o preço do caminho que escolheram: o isolamento.

“Um grupo revolucionário que depende de assaltos a bancos para sobreviver, termina virando um grupo de assaltantes de banco”.

Quem disse isso, ou mais ou menos isso, não foi um ideólogo de direita. Foi Ernesto Che Guevara.

Infelizmente a frase se aplica às FARC colombianas, para quem, ao que tudo indica, o seqüestro virou uma indústria, e a extorsão, uma prática corrente.

Escrevo “ao que tudo indica” porque uma espessa cortina de fumaça cobre o perfil das FARC, e o que está acontecendo no seu interior, com as mortes de alguns de seus principais próceres. Um morreu de morte natural; dois foram assassinados, um pelo ataque do Exército colombiano em território equatoriano, o outro, com a companheira, pelo chefe de seus guarda-costas, numa operação mercenária.

Entretanto, deve-se dizer, essa cortina de fumaça não é apenas da responsabilidade de uma imprensa conservadora em escala mundial, ou das campanhas orquestradas a partir de Washington ou Bogotá. É conseqüência também do próprio caminho que as FARC percorreram, o de um crescente isolamento no plano continental.

Apesar dos esforços mais recentes do presidente Hugo Chavez que, ao contrário do que se propaga na imprensa conservadora, não é um “falcão” de lutas armadas, mas um presidente a quem não interessa um clima de guerra nas vizinhanças de seu país, as FARC não saíram de sua política ou condição de isolamento, pelo menos no que toca aos países da América do Sul.

Também não propiciaram uma resposta convincente à acusação freqüente de envolvimento com o narcotráfico. A política de seqüestros, herdeira dos movimentos desesperados dos anos sessenta para libertação de prisioneiros das ditaduras do continente, ameaçados de morte e torturados sistematicamente, tornou-se uma indústria de objetivos turvos, a não ser os de demonstração de poder e força sobre um território e pessoas, além de se presumir que seja rentável do ponto de vista de manter a sobrevivência dos mais ou menos 10 mil guerrilheiros que devem compor as suas forças.

Esse é o maior problema das FARC: nada é claro a seu respeito, exceto o fato de que sua trajetória é de imersão na falta de clareza política. Oriunda da junção de bases camponesas com egressos do Partido Comunista Colombiano e da Juventude Comunista em épocas de duríssima repressão, ainda nos anos sessenta, e depois de algumas tentativas infrutíferas de retornar à vida política tradicional, que provocaram também dissidências e divisões, as FARC deixaram-se envolver pela perda de nitidez de seus propósitos políticos.

O grupo está longe da desarticulação. Mas há sinais de desagregação. É tão difícil acreditar ao pé da letra na versão oficial apresentada pelo governo de Uribe, esse sim um “falcão” da guerra, sobre a libertação de Ingrid Betancourt, quanto acreditar que os últimos sucessos ou insucessos que atingiram as FARC foram possíveis sem algum tipo de infiltração ou, no mínimo, desagregação interna.

Em 1° de março pp., Raul Reyes, definido como o segundo homem das FARC, e seu “negociador” maior, foi assassinado no ataque que violou o território equatoriano. A seguir, outro alto dirigente, Ivan Rios, e sua companheira, foram assassinados pelo chefe de seus guarda-costas, numa operação que rendeu ao traidor 2,5 milhões de dólares (Cf. Libération, 04/07/2008). No mês de março morreu, ao que parece de morte natural, pois nem isso ficou completamente claro devido ao silêncio do organismo guerrilheiro, seu líder e fundador Pedro Antonio Marin, ou Manuel Marulanda, apelidado de “Tirofijo”, aos 80 anos de idade. Seu “sucessor” foi Alfonso Cano. Na versão oficial, alguém, se fazendo passar por Cano, telefonou para o Comandante César, no campo onde estavam Ingrid Bentancour e outros prisioneiros, “informando” que helicópteros de “uma ONG” iriam até lá para transportar os seqüestrados para outro lugar. A hipótese é muito estranha, para dizer o mínimo.

No mesmo dia da reportagem do Libération, uma rádio suíça anunciou a possibilidade de que um resgate teria sido pago pela libertação de Betancourt e dos outros, hipótese logo negada pelo governo francês e, é óbvio, pelo governo colombiano. Apesar das negativas, não se pode descartar essa hipótese, não só pelo que tem de plausível em si mesma, como também pelo fato de que, como a morte de Rios mostra, a infiltração de dinheiro para obter atitudes convenientes ao governo colombiano dentro da organização não é novidade. E a julgar pelo preço pago pelo assassinato do líder das FARC, 2,5 milhões de dólares, o caixa dessa movimentação não é pequeno.

O que vai acontecer a seguir vai depender de vários fatores. Um deles é a verificação sobre esse suposto pagamento. No caso dele ter ocorrido mesmo, numa operação nos bastidores da operação de fachada, deve-se perguntar: quem pagou, quem recebeu? Foi uma negociação com o próprio comando das FARC ou com algum setor? Qual será o efeito disso, se for real, dentro da organização? Se não houve esse pagamento, ou se ele tiver sido feito à revelia do comando, então o nível de desagregação das FARC pode ser maior do que o que aparenta ser.

Outro fator importante é o que vai acontecer nas eleições norte-americanas. A eventual eleição de Barack Obama pode não significar uma interrupção ou freio nessa política agressiva para consolidar a Colômbia como a cabeça-de-ponte de Washington no continente sul-americano; mas a eventual eleição de McCain certamente vai significar seu aprofundamento, como sua recente visita a Bogotá confirma.

Resta saber também qual será o efeito dessas operações agressivas, de sucesso no momento, para o governo de Uribe. Se no momento ele quer desfrutar das glórias da operação sem dividi-las com ninguém, e se isso o aproxima mais ainda de Washington, Uribe está muito isolado na América do Sul, e isso também o deixa numa posição incômoda e politicamente mais frágil do que seria conveniente. Seu contencioso com a Venezuela e com o Equador não é desprezível, e pode ter reflexos indesejáveis na sua relação com o Brasil.

Uma coisa é certa: o clima de enfrentamento e de impasse, que parece se aprofundar, na selva colombiana, numa guerra sem perspectiva de negociação, não tem nada de positivo para as forças populares e progressistas na América do Sul, só fortalecendo o ar guerreiro dos falcões norte-americanos e seus aliados e reforçando sua retórica belicista para se opor e criar empecilhos às políticas democráticas ligadas àqueles setores e suas aspirações.
Fonte: Agência Carta Maior.

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