quarta-feira, 2 de julho de 2008

ARTIGO - Da criminalização à corrupção.

DA CRIMINALIZAÇÃO À CORRUPÇÃO.

A deslegitimação da política e o estranhamento do mundo.

A criminalização dos movimentos sociais opera um movimento de deslegitimação dos sujeitos coletivos. Ao chamar o MST de criminoso, está-se a dizer que sua atividade, ou pior, o seu ser coincide com um crime. O reconhecimento do direito à terra como um direito humano e a reforma agrária deixam de ser propostas políticas para se tornarem associações à criminalidade. A análise é de Roberto Efrem Filho.

Os últimos acontecimentos no Rio Grande do Sul, envolvendo tanto as relações entre o Ministério Público e o MST, como aquelas entre os movimentos sociais e o Governo Yeda Crusius, expressam dois fenômenos cuja raiz histórica é a mesma: a marginalização da política no próprio debate político e a imposição do crime como seu cerne. Se, de um lado, a criminalização dos movimentos sociais agride as pautas da esquerda, do outro, permitir que a corrupção se torne um tema central para a esquerda pode reproduzir nela uma postura punitiva repleta de contradições. Explico.

Nas faculdades de direito, o crime é habitualmente definido como um fato típico, antijurídico e culpável. Sigamos por partes, mesmo que superficialmente. “Típico” é o comportamento que se amolda ao tipo penal, ou seja, ao que está legalmente previsto como crime. Todo fato típico se presume “antijurídico”, o que significa ser ele uma conduta contrária ao ordenamento jurídico. É possível, no entanto, que o fato seja típico, mas não antijurídico. É, por exemplo, o que acontece na legítima defesa, em que o sujeito comete o ato típico movido por um motivo tal capaz de eliminar a antijuridicidade. Por fim, o “culpável” se refere ao juízo de censura sobre a manifestação da vontade do autor de um fato típico e antijurídico. Em outras palavras: a um adolescente de 15 anos não pode recair a responsabilidade que se atribuiria a alguém adulto.

O que nas faculdades de direito não se costuma pronunciar – e que também não consta nos códigos – é que o crime, além de ser um fato típico, antijurídico e culpável (coisa que só faz realmente sentido pra jurista) é algo classista, racista e machista. Está em sua historicidade a defesa do patrimônio e, conseqüentemente, de quem o detém. Verifica-se com facilidade a enorme quantidade de normas protetoras da propriedade presentes no Código Penal. A relevância garantida pelo ordenamento a essas normas se torna ainda mais evidente quando as comparamos às normas protetoras do direito à vida. As penas daquelas são as mesmas destas, senão maiores. Ao ato de furtar um veículo em Pernambuco e levá-lo para a Paraíba (Art. 155, §4º do CP) pode-se aplicar uma pena superior a do ato de matar alguém (Art. 121 do CP).

Percorre o senso comum a afirmação segundo a qual “só quem vai para a cadeia é pobre e preto”. A não ser que se admita o pressuposto - silencioso, mas eficaz - de que as pessoas negras e pobres são “naturalmente mais desonestas”, há de se notar a quem o direito penal se dirige diretamente. O crime, portanto, pode até ser um fato típico jurídico e culpável, entretanto, bem provavelmente, só será mesmo tudo isso se for ele impingido contra alguém pobre, negro e homem. Sim, “homem”, dado ser ao homem, notadamente ao homem jovem, que o modelo de masculinidade hegemônica dita o exercício da violência.

Pois bem. É diante desse “crime” que o Estado pratica aquilo o direito chama de violência legítima: a polícia prende. De fato, a polícia bate, tortura, prende e, inúmeras outras vezes, tortura, mas ficarei só com o “prende” para considerar de antemão a lei. Esta, por sua vez, deve ser aplicada pelo Poder Judiciário de forma imparcial no julgamento do fato. Tal “imparcialidade” teria o condão de afastar a política e os valores. Segundo a tradição jurídica, relevantes são o fato e o direito, nada mais. É exatamente aqui que eu gostaria de chegar.

A criminalização dos movimentos sociais opera um movimento de deslegitimação dos sujeitos coletivos. Ao chamar o MST de criminoso, está-se a dizer que sua atividade, ou pior, o seu ser coincide com um crime. Crime, sendo típico, antijurídico e culpável, deve ser julgado com “imparcialidade” pelo Judiciário. Se o MST é caso de polícia e de “Justiça”, definitivamente não é possível tê-lo como um agente político legítimo, cuja expressão deve ser respeitada. Fechado está o ciclo, desse modo: o MST vai preso e, a partir daí, a democracia se realiza saudavelmente. É de se notar ademais que a criminalização do MST vai além do Movimento, atingindo sobremaneira suas causas e reivindicações. O reconhecimento do direito à terra como um direito humano e a reforma agrária deixam de ser propostas políticas para se tornarem associações à criminalidade.

Algo análogo se dá com a corrupção. Os meios de comunicação de massa têm trazido à tona escândalos atrás de escândalos. São cartões e dossiês, sanguessugas e mensaleiros. A corrupção ocupa manchetes e primeiras páginas. Aqui, no entanto, mais do que deslegitimar certos sujeitos coletivos, movimentos sociais ou partidos políticos, fere-se a esfera política como um todo: “política é coisa de ladrão”. O resultado é a desesperança: “este país não tem jeito”. Isso, ao tempo em que se espera do Poder Judiciário imparcial que cumpra ele sua função de punir os responsáveis pelos fatos denunciados pela mídia imparcial. Novamente, fecha-se o ciclo.

É certo que a ficção da imparcialidade cumpre nesse processo seu papel. Ela despolitiza o Judiciário e também a mídia, permitindo que eles colaborem com a despolitização dos movimentos e da própria política, ambos anulados como caminhos para a transformação do mundo. Reproduz-se daí um estranhamento, restando inviabilizada qualquer alternativa ao estabelecido. Na criminalização dos movimentos isso é latente. Cala-se a voz do outro, nega-se a alteridade, o dissenso, presume-se o consenso, o inevitável, o natural.

Basicamente, embora eu reconheça os limites deste breve texto, é no contexto descrito acima em que reside o perigo de a esquerda se utilizar de “escândalos” – os do Governo de Yeda Crusius, por exemplo – como bandeiras suas para revidar a criminalização por ela historicamente sofrida. Por mais que as denúncias dos crimes cumpram uma função de desmistificação da imagem “pura e ética” usualmente atribuída a certos partidos, como o da Governadora em questão, não devem ser elas o centro do debate. De outra forma, repetir-se-ia e respaldar-se-ia pelas mãos da esquerda a despolitização tradicionalmente conduzida pelas classes dominantes, responsável pela criminalização não só do MST, mas da luta, da classe trabalhadora, da práxis libertadora e – sem dúvida – do sonho.

*Roberto Efrem Filho é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Fonte: Agência Carta Maior.

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