Por Mauro Santayana
Quando os teólogos atribuíram a Jesus uma natureza divina, sua intenção era a de obter, para todos os homens, a mesma condição, com a necessária legitimação da fé e dos atos que a confirmassem. O evangelho cristão, monoteísta, nisso continuador do politeísmo grego, é manifestação da ética, astúcia da espécie para vencer os instintos, com a ajuda da razão e da solidariedade. Jesus, um homem como os outros, teria vindo ao mundo pelo milagre da concepção divina; mas, de acordo com a doutrina, é possível fazer, de qualquer um de nós também filho das entranhas de Deus, se formos capazes de seguir o seu exemplo de amor, de repartir o pão e alguns peixinhos com os famintos. A comunhão é a mais forte mensagem cristã.
Há, na dimensão humana de Cristo, identidade que as igrejas cristãs buscam sublimar, quando não esconder: a de homem público e, não evitemos o vocábulo, de político. Cristo não foi perseguido, julgado e condenado porque ameaçasse a fé judaica, com pregação herética, mas, sim, porque ameaçava o Estado romano e o reino de Herodes. Ele se insurgia contra a ordem política, ainda que não chamasse claramente ao confronto, mas seus seguidores o entendiam. Os sumo-sacerdotes que o inquiriram, torturaram-no e o condenaram, não o fizeram contra quem se identificava como filho de Deus, mas, sim, contra o suspeito de querer tornar-se rei dos judeus. Como ocorrera a Sócrates, muito antes, seu julgamento foi político.
Pilatos assim o entendeu, em seu sarcasmo, ao mandar que colocassem sobre sua cabeça a coroa de espinhos, com a inscrição, em aramaico, grego e latim, “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”. A menção a Nazaré – ainda que ele tivesse, por acaso, nascido em Belém – era intencional. A cidade não gozava de boa reputação na Palestina daquele tempo. Jesus, o Nazareno, morria com o indiferente desprezo do representante de Roma e de parcela alienada de seu povo, que não soubera ouvi-lo. Não há como negar a evidência histórica, pelo menos dos registros posteriores que conhecemos: Cristo foi um réu de “crime” político. Ele sucedera a João Batista, que o batizara com as águas do Jordão, no combate a contra Herodes Antipa, filho do primeiro Herodes, colocado no poder pelos romanos.
Essa conclusão não reduz a grandeza do Nazareno. Ele não foi o único jovem judeu daquele tempo a criar seitas que contestavam a realidade social. Não obstante, destacou-se, entre os demais, pela coragem de sua palavra, dirigida ao coração dos homens. Seu radicalismo estava na mensagem ousada: para que se salvassem (e “salvar” significa muitas coisas) era preciso que cada um reconhecesse no outro a si mesmo, e assim se amassem. Foi essa pregação que levou as massas a seguirem seus passos, convencidas pelas suas parábolas. Foi um líder e, se seu caminho não fosse tolhido no momento certo, era de esperar-se que as multidões se adensassem, e, sob seu comando, destruíssem a ordem social e jurídica de então. É de imaginar-se que, no caso de uma sublevação exitosa naquela província do Império, o movimento se estendesse, atingindo todo o Mediterrâneo, para abreviar o declínio de Roma.
A imanência de Cristo – quase podemos vê-lo, ao nosso lado, tocando-nos o ombro e mostrando-nos os pedregosos caminhos, que não levavam ao mar, mas, sim, aos discretos lagos interiores – é o mais sólido pilar do Ocidente. Estando entre nós, ainda que não consiga evitar a o egoísmo e a estupidez das guerras, sua presença mítica nos impõe a resistência, em busca da igualdade e da justiça. Todos os anos – e essa reminiscência sagrada devemos às Igrejas cristãs, sobretudo à Católica, com sua forte liturgia – relembramos a Paixão, com os seus símbolos: o cirineu, convocado a ajudá-lo a carregar a cruz, o lenço com que a mulher do povo lhe enxuga a face, os companheiros da hora final, cada um em sua cruz; o desabafo, ao sentir-se abandonado, a taça de fel e o jogo de dados, com que os soldados disputaram sua túnica inconsútil.
Cada um desses fatos nos relembra os valores e os limites da condição humana. Sem essa memória, ainda que existíssemos, não viveríamos.
Quando os teólogos atribuíram a Jesus uma natureza divina, sua intenção era a de obter, para todos os homens, a mesma condição, com a necessária legitimação da fé e dos atos que a confirmassem. O evangelho cristão, monoteísta, nisso continuador do politeísmo grego, é manifestação da ética, astúcia da espécie para vencer os instintos, com a ajuda da razão e da solidariedade. Jesus, um homem como os outros, teria vindo ao mundo pelo milagre da concepção divina; mas, de acordo com a doutrina, é possível fazer, de qualquer um de nós também filho das entranhas de Deus, se formos capazes de seguir o seu exemplo de amor, de repartir o pão e alguns peixinhos com os famintos. A comunhão é a mais forte mensagem cristã.
Há, na dimensão humana de Cristo, identidade que as igrejas cristãs buscam sublimar, quando não esconder: a de homem público e, não evitemos o vocábulo, de político. Cristo não foi perseguido, julgado e condenado porque ameaçasse a fé judaica, com pregação herética, mas, sim, porque ameaçava o Estado romano e o reino de Herodes. Ele se insurgia contra a ordem política, ainda que não chamasse claramente ao confronto, mas seus seguidores o entendiam. Os sumo-sacerdotes que o inquiriram, torturaram-no e o condenaram, não o fizeram contra quem se identificava como filho de Deus, mas, sim, contra o suspeito de querer tornar-se rei dos judeus. Como ocorrera a Sócrates, muito antes, seu julgamento foi político.
Pilatos assim o entendeu, em seu sarcasmo, ao mandar que colocassem sobre sua cabeça a coroa de espinhos, com a inscrição, em aramaico, grego e latim, “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”. A menção a Nazaré – ainda que ele tivesse, por acaso, nascido em Belém – era intencional. A cidade não gozava de boa reputação na Palestina daquele tempo. Jesus, o Nazareno, morria com o indiferente desprezo do representante de Roma e de parcela alienada de seu povo, que não soubera ouvi-lo. Não há como negar a evidência histórica, pelo menos dos registros posteriores que conhecemos: Cristo foi um réu de “crime” político. Ele sucedera a João Batista, que o batizara com as águas do Jordão, no combate a contra Herodes Antipa, filho do primeiro Herodes, colocado no poder pelos romanos.
Essa conclusão não reduz a grandeza do Nazareno. Ele não foi o único jovem judeu daquele tempo a criar seitas que contestavam a realidade social. Não obstante, destacou-se, entre os demais, pela coragem de sua palavra, dirigida ao coração dos homens. Seu radicalismo estava na mensagem ousada: para que se salvassem (e “salvar” significa muitas coisas) era preciso que cada um reconhecesse no outro a si mesmo, e assim se amassem. Foi essa pregação que levou as massas a seguirem seus passos, convencidas pelas suas parábolas. Foi um líder e, se seu caminho não fosse tolhido no momento certo, era de esperar-se que as multidões se adensassem, e, sob seu comando, destruíssem a ordem social e jurídica de então. É de imaginar-se que, no caso de uma sublevação exitosa naquela província do Império, o movimento se estendesse, atingindo todo o Mediterrâneo, para abreviar o declínio de Roma.
A imanência de Cristo – quase podemos vê-lo, ao nosso lado, tocando-nos o ombro e mostrando-nos os pedregosos caminhos, que não levavam ao mar, mas, sim, aos discretos lagos interiores – é o mais sólido pilar do Ocidente. Estando entre nós, ainda que não consiga evitar a o egoísmo e a estupidez das guerras, sua presença mítica nos impõe a resistência, em busca da igualdade e da justiça. Todos os anos – e essa reminiscência sagrada devemos às Igrejas cristãs, sobretudo à Católica, com sua forte liturgia – relembramos a Paixão, com os seus símbolos: o cirineu, convocado a ajudá-lo a carregar a cruz, o lenço com que a mulher do povo lhe enxuga a face, os companheiros da hora final, cada um em sua cruz; o desabafo, ao sentir-se abandonado, a taça de fel e o jogo de dados, com que os soldados disputaram sua túnica inconsútil.
Cada um desses fatos nos relembra os valores e os limites da condição humana. Sem essa memória, ainda que existíssemos, não viveríamos.
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