segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

ANOS DE CHUMBO - A paçoquinha da Dona Maria.

enviado por Fernando Soares Campos

A PAÇOQUINHA DA DONA MARIA


Se fores jovem, leitor (a), grava no bronze da tua memória este nome: Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto. Desafia, dessa forma, o ministro da Defesa Nelson Jobim e os comandantes militares, que não querem o funcionamento da Comissão da Verdade prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos. Diz pra eles que a gente quer saber, entre outras coisas, o que aconteceu com o único amazonense incluído na lista oficial dos desaparecidos na ditadura militar.

- Eles tiraram duas vidas: a minha e a do meu filho. Eu não vivo mais. Hoje só estou vegetando. Eu não esqueço do meu filho nem um minuto. Meu filho era muito inteligente. Era educado. Um príncipe. Todos gostavam dele. Não quero indenização. O que quero é a verdade, nada mais, só quero saber onde está o meu filho - disse dona Maria Meirelles, em entrevista a Jocilene Chagas, em 1995.

Cadê o Thomazinho? Nascido em 1º de julho de 1937, em Parintins (AM), ele, já órfão de pai, mudou para Manaus, em 1950, onde estudou no Colégio Estadual do Amazonas. Viajou em 1958 para o Rio de Janeiro, e ali se destacou no movimento estudantil. Eleito secretário geral da UBES - União de Estudantes Secundaristas, em 1961, atuou no Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Em 1963, ganhou bolsa de estudos para estudar na Universidade Lomonosov, em Moscou.

Lá, encontrou uma menina de Manaus, do bairro de Aparecida, Miriam Marreiro, que estudava Direito na Universidade Patrice Lumumba. Com ela teve dois filhos: Larissa, nascida na Rússia, em 1963, e Togo, em 1967, no Brasil, para onde o casal voltou. O pai sequer acalentou o filho nos braços, pois foi logo preso e torturado. Larissa, que falava russo, ficou escondida na casa do ator Carlos Vereza, que conta:

- Uma vez fui à padaria comprar pão e ela começou a pedir doce em russo. Fiquei apavorado porque estávamos no auge da ditadura, e comecei a fingir que era pesquisa de som o que ela estava fazendo... ”.

Uma dor

Thomaz, libertado em 1973, entrou na clandestinidade. Foi aí que dona Maria viajou ao Rio. Queria ver o filho, fazer-lhe carinho, aliviar-lhe a dor. Acontece que, perseguido pela polícia, ele estava sempre mudando de esconderijo. O encontro aconteceu tarde da noite, num “ponto” de Copacabana, em fevereiro de 1973:

- Meu filho estava bastante machucado. Tinha muitas marcas no corpo. A gente cria um filho com tanto carinho para que sofra tanto. Ele deitou, colocou a cabeça no meu colo. Conversamos sobre as coisas de Parintins. Ele gostava de paçoca. Até uma paçoquinha levei para ele, feita por mim, no pilão.

Essa foi a última vez que dona Maria viu o filho. Alguns meses depois, em julho, a policia invadiu a casa de Miriam, levando-a para o DOI-CODI na Rua Barão de Mesquita, onde durante dois meses foi submetida à tortura. Quebraram-lhe a boca, os dentes e as pernas. Saiu da prisão amparada por um par de muletas. Mas não disse onde Thomaz estava.

Thomazinho, então dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), continuou clandestino, até que caiu preso no dia 7 de maio de 1974, e nunca mais foi visto. O Arquivo do DOPS/SP guarda um documento que registra a data da prisão, efetuada “quando viajava do Rio para São Paulo”, o que foi confirmado por Relatório do Ministério da Marinha. Anos depois, o ‘Correio da Manhã’ (03/08/79) noticiou que Thomaz estava numa lista de 14 mortos. Mas somente em 1995, a Lei 9.140/95 o considerou oficialmente desaparecido. Seu corpo até hoje não foi localizado.

Os criminosos que torturaram e mataram presos políticos - como Thomaz Meirelles - permanecem impunes, protegidos por uma cortina de silêncio. Mas a discussão acaba de ser reaberta, com o decreto assinado pelo presidente Lula, no último 21 de dezembro, instituindo a terceira etapa do Programa Nacional de Direitos Humanos, que prevê a criação até abril de 2010 da Comissão Nacional da Verdade, encarregada de investigar torturas durante a ditadura militar, o que já deu certo em outros países.

Uma flor

O Lula assinou o decreto? Ah, Margarida, pra quê? O ministro da Defesa, Nelson Jobim, fantasiado com aquele uniforme verde-oliva de combate com o qual aparece nos telejornais e, apoiando os comandantes militares, decidiu peitar o Lula. Se fosse há 40 anos, dariam um golpe. Agora, ameaçam pedir demissão. Acham impertinência e revanchismo a gente perguntar o que aconteceu com o Thomazinho e exigir que seus torturadores sejam processados.

Outro “general” disfarçado de verde, Alfredo Sirkis, vereador do PV do Rio de Janeiro, concordou com Jobim e com os militares. Parece que a senadora Marina Silva está muito mal acompanhada. A Comissão da Verdade – escreve Sirkis - pode “reviver uma guerra que terminou há 30 anos, criar um elemento de discórdia na relação com as Forças Armadas, trazendo polarizações do passado para complicarem o presente”. Será?

Ou seja, o país não deve discutir seu passado para “não complicar o presente”. Alegam que a Lei de Anistia, de 1979, perdoou todos os crimes políticos, inclusive os cometidos por torturadores. Colocam ambos no mesmo saco. De um lado, os torturados, presos, condenados, perseguidos, mortos, que combatiam um governo militar, ilegítimo, cujos componentes ocuparam o poder à força, rasgando a Constituição e depondo o presidente eleito pelo voto popular. De outro, os torturadores, que sem nada sofrer e pagos pelo Estado tomado de assalto, cometeram crimes imprescritíveis contra a Humanidade.

Querem que a gente finja que não houve nada, que os assassinos de Thomaz já foram perdoados. Mas, perdoar a quem, se estão protegidos pelo sigilo da documentação? Dona Maria não sabe a quem perdoar. Os arquivos dos três centros de informações militares – CIE, CENIMAR e CISA – até hoje uma ‘caixa preta’, não foram recolhidos ao Arquivo Nacional, como manda a lei. Como anistiar quem nunca foi condenado, sequer identificado?

- Não é possível construir uma nação, se não formos capaz de perdoar – escreveu em 1882 o pensador francês Ernest Renan. É verdade. Mas perdoar não é apagar a memória. Ao contrário, só pode haver perdão, se houver a consciência da ofensa.

Nessa disputa pela atualização da memória, grava, leitor (a), no teu bronze, o nome de Thomaz Meirelles. Compartilha a dor de suas mulheres: Maria, Miriam, suas irmãs Lea, Leny, Leda e Lygia, a filha Larissa, além de Togo. É uma forma de resistir, de dizer que não vamos esquecer a paçoquinha da dona Maria, que morreu há dois anos, sem saber onde colocar uma flor ou acender uma vela para o filho. Quando a Comissão da Verdade localizar o túmulo, nós faremos isso por ela.

José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (Uerj), reside no Rio há mais de 20 anos e assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal.

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Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
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