Anda em curso no Rio Grande do Sul um abuso de autoridade “continuado” (!) que, à margem da lei e da justiça, como todo o abuso desse tipo, visa criminalizar e desmoralizar os agricultores sem terra, a qualquer custo, em sua legítima reivindicação de reforma agrária, inexplicável e permanentemente prorrogada. Depois da violentíssima repressão que a Polícia Militar do Estado promoveu contra as agricultoras que promoveram o protesto de março em defesa do nosso meio-ambiente, em Rosario do Sul, chegou a vez de atacar os acampados em área de terra já desapropriada pelo Incra (!), no município de São Gabriel, no início de maio passado. Em Viamão, neste início de junho, novo ataque. Em São Gabriel, além da destruição de barracos, de vôos rasantes de um helicóptero para aterrorizar acampados, entre os quais idosos, mulheres e crianças, de terra jogada sobre a comida deles, de duas prisões flagrantemente ilegais, mas que mantiveram recluso um agricultor durante quatro dias, chegou-se a vasar para uma parte da mídia trechos de diários dos agricultores acossados e perseguidos durante horas. O “sucesso” dessa revista proposital e perversamente humilhante, que em muito excedeu os limites impostos pelo mandado judicial que a autorizava, baseou-se em desproporcional e custosa operação militar, mas foi engrandecido e elogiado pelos latifundiários gaúchos, os quais patrocinam, através de uma das suas entidades, programa de rádio diário na mesma empresa de comunicação que recebeu os tais diários. Aplaudiram a política de segurança pública que o governo estadual vem mantendo relativamente aos sem-terra, visivelmente sintonizada com o triste ideário de um conhecido chefe de polícia do Estado Novo que, ainda no século passado (!), dizia que a “questão social é um caso de polícia”. Assim, polícia militar e parte da mídia anteciparam publicamente aquilo que somente uma sentença judicial tem competência para fazer - a condenação dos “crimes” dos sem-terra que ambas se julgam com autoridade para julgar. É de se imaginar a vergonha que, certamente, pelo menos alguns dos soldados encarregados de cumprir as ordens dos seus chefes tiveram de sofrer, não só pela escandalosa desnecessidade de se reunirem numa força tão grande contra homens trabalhadores, mulheres e crianças pobres, abrigadas em barracos de lona, mas principalmente pelo desvirtuamento flagrante das finalidades próprias da sua corporação. Entre as crueldades que se praticavam na época da escravatura brasileira, admitia-se que os latifundiários marcassem o rosto dos escravos que fugiam das atrocidades a que eram submetidos, com ferro em brasa em forma de “F”, assim identificando suas vítimas como “fujões”. Já que isso seria muito difícil de repetir hoje, e contaria com pronta reação dos sem-terra feridos em sua dignidade própria, a segurança dos privilégios que mantem a terra do país ignominiosamente distribuída em nosso país achou um outro jeito de obter efeito atroz para eles: denunciá-los independentemente de qualquer devido processo legal, acusá-los independentemente de defesa ou contraditório e condená-los independentemente de sentença judicial. Nem a morte dessa gente fica excluída, como a CPT comprova todos os anos, arrolando as vítimas abatidas no país inteiro, que mais não reclamam do que o reconhecimento devido aos seus direitos humanos fundamentais, previstos expressamente na Constituição Federal. Tudo isso se explica, embora não se justifique, pelo que esses agricultores são - um testemunho multitudinário do fracasso do nossa economia e do nosso direito em garantir-lhes vida decente e digna - e não pelo que eles fazem. A repressão que a polícia militar gaúcha movimentou recentemente em trts dos nossos municípios, testemunhou concretamente a manifesta incapacidade do nosso sistema econômico, político e jurídico de enfrentar e vencer a injustiça social que historicamente nos vitima, confundindo pobreza com criminalidade, favorecendo a promiscuidade do Poder Público com privilégios seculares que escravizam a nossa terra e grande parte do nosso povo. Uma coisa é investigar, legalmente, outra é perseguir, abusivamente, como o enforcamento de Tiradentes provou. Os oficiais da Brigada Militar do Rio Grande do Sul que comandaram essas últimas ações contra os sem-terra que nos perdoem, mas se o patrono das polícias militares brasileiras fosse vivo, certamente morreria de novo, e de vergonha, com o que aconteceu em Rosario do Sul, São Gabriel e Vamão, tamanha é a distância que essas atrocidades guardam do seu amor a liberdade, da sua coragem, do seu heroismo e, principalmente, da sua resistência e luta contra toda a injustiça que se prevalece do seu poder e autoridade para, a pretexto de “manter a ordem e a segurança”, abusar de uma e outra, impondo-se por violência arbitrária, preservando opressão e assegurando a exclusão social. - Jacques Távora Alfonsin é procurador da República aposentado e e professor de Direito da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos).
Fonte: ALAI.
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