'Meu governo seguramente não foi derrubado pelo povo'. Entrevista com Jean-Bertrand Aristide | |
Em meados dos anos 80, Jean-Bertrand Aristide (foto) era um jovem padre paroquial que trabalhava em um bairro pobre e conflituoso de Porto Príncipe. Corajoso defensor dos direitos e dignidade dos pobres, logo se tornou o mais amplamente respeitado porta-voz de um crescente movimento popular contra a série de regimes militares que controlaram o Haiti depois do colapso da ditadura pró-americana dos Duvalier, em 1986. Em 1990, venceu a primeira eleição presidencial democrática, com 67% dos votos. Sentido como uma perigosa ameaça pela elite minoritária dominante do Haiti, foi derrubado por um golpe militar em setembro de 1991. Conflitos com essa mesma elite e suas legiões, apoiada por seus poderosos aliados nos EUA e França, tem marcado toda a trajetória política de Aristide: depois de conquistar uma esmagadora vitória nas eleições de 2000, seus inimigos lançaram uma campanha de propaganda massiva para caracterizá-lo como violento e corrupto. A resistência estrangeira e da elite local por fim culminaria em um segundo golpe contra ele, na noite de 28 de fevereiro de 2004. Amigo e politicamente aliado de Thabo Mbeki, da ANC, Aristide foi para um relutante exílio na África do Sul, onde permanece até os dias de hoje. Apelos para o retorno imediato e incondicional de Aristide continuam a polarizar a política haitiana. Muitos analistas, assim como alguns importantes membros do governo atual reconhecem que, se a constituição permitisse a Aristide candidatar-se novamente a uma reeleição, ele venceria facilmente. Recluso, o ex-presidente do Haiti veio à tona recentemente com o terremoto que abalou o seu país. Na oportunidade se disse pronto a voltar para o país e ajudar a sua reconstrução. Analistas acreditam que uma eventual volta do ex-presidente poderia provocar uma reviravolta na conturbada política local. Mesmo vivendo em um quase anonimato, Aristide conseguiu conservar uma forte base de simpatizantes na capital e em diversas áreas rurais do Haiti — o que poderia ser interpretado como uma ameaça ou mesmo uma afronta a seu velho aliado e atual presidente, René Préval. Um pouco da história e do pensamento de Jean-Bertrand Aristide pode ser conhecida através da longa entrevista que o ex-presidente concedeu a Peter Hallward professor de filosofia na Universidade de Middlesex (Inglaterra). A entrevista em francês foi realizada em Pretória (África do Sul) no dia 20 de julho de 2006. O texto completo da entrevista foi publicado em apêndice do livro de Hallward Damming de Flood: Haiti, Aristide and the Politics of Containment (Paperback, 2008). Eis a entrevista. O Haiti é um país profundamente dividido e você tem sido sempre um personagem profundamente conflituoso. Para a maioria dos numerosos observadores simpatizantes dos anos 90 era fácil entender essa divisão mais ou menos em função de critérios de classe: você foi demonizado pelos ricos e idolatrado pelos pobres. Então, as coisas começaram a ficar mais complicadas. Certos ou errados, ao final da década, muitos dos que originalmente o apoiavam passaram a ficar mais céticos e seu segundo governo (2001 - 2004), do início ao fim, foi implacavelmente perseguido por acusações de violência e corrupção. Apesar de, em todas as medidas possíveis, você permanecer folgadamente como o político mais confiável e popular entre o eleitorado haitiano, parece que você tem perdido muito do apoio que gozava entre partes da classe política, dos trabalhadores, ativistas, intelectuais e outras, tanto no país como no exterior. Muitas de minhas questões referem-se a essas acusações, especialmente a de que, com o passar do tempo, você fez concessões ou abandonou muitos de seus ideais originais. Para começar, gostaria de retornarmos brevemente a um território familiar e perguntar sobre o processo que o conduziu ao poder em 1990. O final dos anos 80 foi um período muito reacionário na política mundial, especialmente na América Latina. Como você explica a considerável força e resistência do movimento popular contra a ditadura no Haiti, movimento que passou a ser conhecido como "Lavalas" - palavra que em creóle significa "inundação", ou "avalanche", assim como "multidão", ou "todos juntos"? Como você explica que, apesar das circunstâncias, e certamente contra os interesses dos EUA, dos militares e de todo o poder que dominava o Haiti, você conseguiu vencer as eleições de 1990? Grande parte do trabalho já tinha sido feito por pessoas antes de mim. Refiro-me a pessoas como Padre Antonio Adrien e seus companheiros, e Padre Jean Marie Vincent, que foi assassinado em 1994. Eles haviam desenvolvido uma visão teológica progressista que refletia as esperanças e expectativas do povo haitiano. Já em 1979, eu estava trabalhando no contexto da Teologia da Libertação. Há uma frase em particular que ficou marcada em minha mente e que pode ajudar a resumir meu entendimento da situação naquela época. Você deve lembrar-se de que a Conferencia de Puebla aconteceu no México, em 1979, e naquele tempo muitos teólogos da libertação estavam trabalhando sob severas restrições, ameaçados e impedidos de participar. O slogan que ao qual estou me referindo dizia algo como "si el pueblo no va a Puebla, Puebla se quedara sin pueblo" - se o povo não vai a Puebla, Puebla ficará sem povo. Em outras palavras, o povo é para mim o próprio centro de nossa luta. Não se trata de lutar pelo povo, em nome do povo, à distância do povo; é o povo, ele mesmo, que está lutando. Trata-se de lutar com o povo e no meio do povo. Isso leva a um segundo princípio teológico, que Sobrinho, Boff e outros entenderam muito bem. A teologia da libertação somente pode ser uma etapa de um processo mais abrangente. Esta etapa, na qual nós temos que começar falando em nome dos pobres e oprimidos, tem fim assim que eles comecem a falar com sua própria voz e com suas próprias palavras. O povo começa a assumir seu próprio lugar na cena pública. A teologia da libertação dá lugar, então, à libertação da teologia. O processo completo leva-nos longe do paternalismo, de toda noção de um "saber" que poderia vir a conduzir o povo e resolver seus problemas. Os padres que eram inspirados pela teologia da libertação naquele tempo entendiam que nosso papel era acompanhar o povo, e não tomar o lugar dele. No Haiti, a emergência do povo como força pública organizada, como consciência coletiva já tinha começado nos anos oitenta, e, por volta de 1986, essa força era forte o suficiente para afastar a ditadura Duvalier do poder. Foi um movimento da base popular, e não um projeto piramidal, dirigido por um único líder ou uma só organização. Também não foi apenas um movimento político. Ele tomou forma, sobretudo através da construção de numerosas pequenas comunidades eclesiais de base, ou "ti legliz", por todo o país. Foram essas comunidades que desempenharam um papel histórico decisivo. Quando fui eleito presidente, não se tratava somente de um cargo estritamente político, da eleição de um político, de um partido político convencional. Não! Tratava-se da expressão de um grande movimento popular, da mobilização do povo como um todo. Pela primeira vez o Palácio Nacional tornou-se um lugar não só de políticos profissionais, mas para o povo, ele mesmo. O simples fato de permitir-se a pessoas comuns entrarem no palácio, o simples fato de serem bem vindas pessoas das camadas mais pobres da sociedade haitiana no coração central do poder tradicional - isto já foi um gesto profundamente transformador. Você hesitou por algum tempo antes de aceitar colocar-se como candidato naquelas eleições de 1990. Você estava perfeitamente consciente de como, considerando-se as relações das forças existentes, a participação nas eleições poderia enfraquecer ou dividir o movimento. Olhando para trás agora, você ainda pensa que foi a coisa certa a fazer? Haveria alguma alternativa viável àquela de seguir a via parlamentar? Eu sou inclinado a pensar a história como um processo de cristalização de diferentes tipos de variáveis. Algumas delas são conhecidas, outras não. As variáveis que nós conhecíamos e entendíamos naquele tempo eram bastante claras. Nós tínhamos uma idéia do que éramos capazes e também sabíamos que aqueles que buscavam manter o status quo tinham inúmeros meios à disposição. Eles tinham toda sorte de estratégias e mecanismos - militares, econômicos, políticos... - para desorganizar qualquer movimento que desafiasse sua continuidade no poder. Mas nós não podíamos saber exatamente como eles se serviriam destes meios. Eles mesmos não poderiam saber. Estavam acompanhando atentamente a forma como o povo lutava para inventar modos de organizar a si mesmo, modos de promover efetivamente este desafio. Isso é o que eu penso acerca de variáveis desconhecidas: o movimento popular estava em processo de ser inventado e desenvolvido, sob pressão, no campo de batalha, e não havia meios de saber de antemão que contra-ataque eles iriam provocar. Agora, dado o equilíbrio desses dois tipos de variáveis, eu não podia voltar atrás. Não recuei em nada. Em 1990, fui convocado por outros no movimento a aceitar a cruz que tinha caído sobre mim. Foi nesses termos que o Padre Adrien descreveu isso e foi assim que eu entendi: eu deveria aceitar o fardo daquela cruz. "Você está no caminho do Calvário", ele disse, e eu sabia que ele estava certo. Quando recusei isso, no início, Monsenhor Willy Romélus, em quem eu depositava muita confiança, como conselheiro, insistiu que eu não tinha escolha. "Sua vida não pertence mais a você", ele disse, "Você a ofereceu em sacrifício ao povo. E agora que uma missão concreta se apresenta a você, agora que você se encontra frente a essa convocação especial, de seguir Jesus e carregar sua cruz, reflita cuidadosamente antes de voltar atrás.” Isto era o que eu sabia, e sabia muito bem, então. Foi uma espécie de caminho do Calvário. E assim que decidi, aceitei este caminho tal como ele seria, sem ilusões, sem enganar-me a mim mesmo. Nós sabíamos perfeitamente bem que não seríamos capazes de mudar tudo, que não seríamos capazes de corrigir cada injustiça, que iríamos trabalhar sob severas restrições, e assim por diante. Suponha que eu dissesse não, que não aceitasse ser candidato, como as pessoas iriam reagir? Entendo agora o eco de certas vozes que perguntavam: "Vamos ver agora se você tem a coragem de tomar essa decisão. Vamos ver agora se você não passa de um covarde para aceitar essa tarefa. Você, que tem proferido os mais belos sermões, o que vai fazer agora? Vai abandonar- nos, ou vai assumir essa responsabilidade de modo que juntos possamos seguir em frente?" E eu pensei sobre isso. Qual a melhor maneira de colocar em prática a mensagem do evangelho? O que eu deveria fazer? Eu lembro como respondi a essa questão, quando, alguns dias antes da eleição de 1990, fui a uma manifestação pelas vítimas do massacre da Viela de Vaillant, no qual vinte pessoas foram mortas pelos Macoutes, no dia das eleições canceladas de 1987. Um estudante perguntou-me: "Padre, o senhor pensa que poderá mudar sozinho essa situação tão corrupta e injusta?" E eu, em resposta, disse-lhe: "Para chover, é necessária uma, ou muitas gotas de chuva? Para uma inundação, basta um fiozinho de água, ou a torrente de um rio?” E eu agradeci a ele por dar-me a chance de apresentar nossa missão coletiva na forma dessa metáfora: não será sozinhos, como gotas de chuva, que você e eu conseguiremos mudar essa situação, mas juntos, como uma inundação ou uma torrente, "lavalassement", que iremos transformá-la, saná-la, sem ilusão de que isso será fácil ou rápido. Então, haveria alternativas? Acho que não. No entanto, estou seguro de que havia uma oportunidade histórica, e de que nós demos uma resposta histórica, uma resposta que transformou a situação, um passo na direção certa. Naturalmente, fazendo isso, provocamos uma reação. Nossos oponentes responderam com um golpe de estado. Primeiro, a tentativa de golpe de estado de Roger Lafontant, em janeiro de 1991, e, como ele falhou, o golpe de 30 de setembro de 1991. Nossos oponentes tinham sempre meios desproporcionalmente poderosos de reprimir o movimento popular. Nenhuma simples ação ou decisão poderia mudar isso. O que importa é que nós tínhamos dado um passo adiante, um passo na direção certa, seguido de outros passos. O processo que começou naquele época ainda é forte, apesar de tudo, ainda é forte, e eu estou convencido de que ele virá somente a se fortalecer ,e que, no fim, ele irá prevalecer. O golpe de setembro de 1991 aconteceu apesar do fato de as políticas concretas que você aplicou, quando estava no poder, terem sido muito moderadas, muito prudentes. Teria sido um golpe inevitável, então? Apesar do que você fez ou não fez, bastaria que a simples presença de alguém como você no Palácio Presidencial fosse inaceitável para a elite haitiana? E, neste caso, o que mais poderia ser possível fazer para prever e resistir aos violentos contra-ataques? Bom, essa é uma boa questão. Eu entendo a situação do seguinte modo: o que aconteceu em setembro de 1991 aconteceu também em fevereiro de 2004 e poderia facilmente ocorrer novamente no futuro, sempre que a oligarquia que controla os meios de repressão venha a empregá-los para manter uma versão oca de democracia. Essa é sua obsessão: manter uma situação que poderia ser chamada de democrática, mas que, de fato, consiste em uma democracia importada e superficial, controlada de cima para baixo. Eles têm sido capazes de manter essa situação por um longo tempo. O Haiti é independente há 200 anos, mas nós agora vivemos num país onde um por cento da população controla mais que a metade da riqueza. Para a elite, trata-se de estarmos nós contra eles, de procurar um modo de preservar as desigualdades massivas que afetam cada faceta da sociedade haitiana. Nós estamos submetidos a uma espécie de apartheid. Mesmo depois de 1804, a elite tem feito o possível para manter as massas à margem, no outro lado dos muros que protegem seus privilégios. É a isso que nós somos contra. É a isso que qualquer democracia genuína é contra. A elite fará tudo que puder para certificar-se de que controla um presidente fantoche, que controla um parlamento fantoche. Ela fará o que for preciso para proteger o sistema de exploração do qual seu poder depende. A sua questão deve ser colocada em relação a esse contexto histórico, em relação a essa profunda e considerável permanência. De fato, mas nesse caso, o que fazer para confrontar o poder dessa elite? Qual a melhor maneira de enfrentar essa violência se, afinal, ela é preparada para usar violência a fim de conter qualquer verdadeira ameaça a sua hegemonia? Apesar da força do movimento popular que o conduziu ao poder, ele não teve força suficiente para conseguir mantê-lo lá, em face à violência que isso desencadeou. As pessoas às vezes comparam-no a Toussaint L`Ouverture, que conduziu seu povo à liberdade e obteve vitórias extraordinárias, conquistadas sob condições extraordinariamente difíceis. Mas Toussaint é também freqüentemente criticado por não ter ido muito longe, por não ter conseguido romper com a França, por não ter conseguido fazer o bastante para manter o apoio do povo. Foi Dessalines quem conduziu a batalha final pela independência e quem pagou o preço daquela batalha. O que você tem a responder aos que dizem (como Patrick Elie, por exemplo, ou Bem Dupuy) que você foi muito moderado, que você agiu como Toussaint numa situação que, de fato, exigia um Dessalines? O que você tem a dizer aos que afirmam que você depositou muita confiança aos EUA e a seus aliados domésticos? Bom... [risos]. "Muita confiança nos EUA", isso me faz rir... Em minha humilde opinião, Toussant L`Overture, como homem, tinha suas limitações. Mas ele deu o melhor de si e, na verdade, não fracassou. A dignidade que ele defendeu, os princípios que ele defendeu, continuam a inspirar-nos até hoje. Ele foi capturado, fisicamente foi preso e morto, sim, mas Toussaint ainda está vivo. Seu exemplo e seu espírito nos guia sempre. Hoje, a luta do povo haitiano é uma extensão de sua campanha pela dignidade e liberdade. Nesses dois últimos anos, de 2004 a 2006, o povo continua a lutar por sua dignidade e recusa-se a ajoelhar-se, recusa-se a se render. Em 6 de julho de 2005, Cité Soleil foi atacada e bombardeada, mas esse ataque, assim como muitos outros similares, não desencoraja o povo em insistir para que suas vozes sejam ouvidas. Eles denunciam a injustiça. Eles votaram para a presidência em fevereiro, e isso também foi uma demonstração de sua dignidade; eles não aceitam mais a indicação de outro presidente de cima para baixo. Esta simples insistência na dignidade é, ela mesma, um mecanismo de mudanças históricas. O povo quer ser o sujeito de sua história, não seu objeto. Assim como Toussaint foi o sujeito de sua história, assim também o povo haitiano tomou e estendeu sua luta, como sujeito de sua história. Mais uma vez, isso não significa que a vitória é inevitável ou fácil. Isso não significa que nós podemos resolver cada problema, ou ainda, que, depois de tratarmos de um problema, aqueles poderosos interesses particulares não irão levar a que se tente todo o possível para desfazer os avanços. No entanto, alguma coisa irreversível aconteceu. Alguma coisa que fez seu caminho através da consciência coletiva. Esse é precisamente o significado real da famosa afirmação de Toussaint, assim que ele foi capturado pelos franceses, que eles tinham cortado o tronco da árvore da liberdade, mas suas raízes permaneciam profundas. Nossa luta pela liberdade encontrará muitos obstáculos, mas ela não perderá suas raízes. Ela está firmemente enraizada na mente do povo. O povo é pobre, certamente, mas nossas mentes são livres. Nós continuamos a existir como povo, com base nessa tomada de consciência inicial, dessa consciência fundamental do que nós somos. Não é por acaso que quando vieram a escolher um líder, esse povo, essas pessoas que foram mantidas tão pobres e tão marginalizadas pelos poderosos, tenham escolhido, não um político, e sim, um padre. Os políticos deixaram-nos sucumbir. O povo estava procurando por alguém com princípios, alguém que falasse a verdade. De certo modo, isso seria mais importante que sucesso material ou uma pronta vitória sobre nossos adversários. Esse é o legado de Toussaint. Quanto a Dessalines, a luta que ele conduziu foi a luta armada, foi uma luta militar, e necessária, pois ele tinha que romper as correntes da escravidão de uma vez por todas. Ele conseguiu. Mas será que ainda precisamos levar essa mesma luta, da mesma forma? Penso que não. Dessalines estava errado em lutar daquele modo? Não. Mas nossa luta é diferente. É Toussaint e não Dessalines quem pode ainda acompanhar o movimento popular nos dias de hoje. Sua inspiração conduziu à vitória nas eleições de fevereiro de 2006, que permitiu ao povo manobrar seus adversários para escolher seu próprio líder, contra a vontade do poder constituído. Para mim isso abre para um ponto mais geral. Nós depositamos muita confiança nos norte-americanos? Fomos muito dependentes de forças externas? Não. Nós simplesmente tentamos permanecer lúcidos e evitar a demagogia fácil. Seria mera demagogia por parte de um presidente haitiano pretender ser mais forte que os americanos, ou de engajar-se numa guerra interminável de palavras, ou opor-se a eles por puro prazer. A única maneira racional de seguir é refletir bem sobre o equilíbrio relativo entre os interesses, compreender o que os americanos querem, lembrarmos do que queremos e avançarmos o possível sobre os pontos de convergência existentes. Vejamos um exemplo concreto: em 1994, Clinton precisava de uma vitória na política externa, e o retorno da democracia no Haiti apresentou-se a ele como uma oportunidade. Nós precisávamos de um instrumento para vencer a resistência do exército haitiano assassino, e Clinton ofereceu-nos esse instrumento. Isso é o que quero dizer por atuar pelo espírito de Toussaint L'Ouverture. Nós nunca tivemos nenhuma ilusão de que os americanos partilhavam de nossos objetivos fundamentais, sabíamos que eles não queriam caminhar na mesma direção, mas sem os americanos nós não poderíamos ter restaurado a democracia. Não havia nenhuma outra opção, nenhuma alternativa a não ser recorrer às tropas americanas? Não. O povo haitiano não está armado. É claro que há alguns criminosos e malandros, alguns traficantes de drogas, algumas gangues que têm armas, mas o povo não tem armas. Você está enganando a si mesmo se pensa que o povo pode partir para uma luta armada. Nós temos que olhar a situação nos olhos: o povo está desarmado e nunca terá tanto armamento como seus inimigos. É inútil meter-se numa luta na área dos seus inimigos ou jogar o jogo deles. Você perderia. Você não teria pagado um preço muito alto pelo apoio americano? Eles o forçaram a fazer todo tipo de acordo, a aceitar muitas das coisas que você sempre se opôs: um rígido plano de ajustamento estrutural, de políticas econômicas neoliberais, a privatização das empresas públicas, etc. O povo haitiano sofreu muito sob essas restrições. Deve ter sido muito difícil engolir estas coisas durante as negociações de 1993. Certamente, mas você tem que fazer a distinção entre a luta, por um lado, como princípio, a luta para persistir na opção preferencial pelos pobres, que para mim foi inspirada na teologia e é uma questão de justiça e verdade e, por outro, sua luta política, que se conduz por regras diferentes. Conforme sua versão de política você pode mentir e trapacear se isso permitir que consiga seus objetivos estratégicos. A acusação de que havia armas de destruição em massa no Iraque, por exemplo, foi uma flagrante mentira. Mas a partir do momento em que foi um útil caminho para atingir seus objetivos, Colin Powell e companhia tomaram esse rumo. Quanto ao Haiti, voltando a 1993, os americanos aceitaram com prazer um plano econômico negociado. Quando eles insistiram, através do FMI e de outras instituições financeiras internacionais, na privatização das estatais, eu estava preparado para concordar, a princípio, se necessário - mas recusei-me em simplesmente vendê-las, incondicionalmente, a investidores privados. A corrupção no setor estatal era inegável, mas havia muitas diferentes formas de abordar essa corrupção. Ao invés de privatização sem limites, eu estava pronto para concordar com uma democratização dessas empresas. O que isso significa? Significa uma ênfase na transparência. Significa que alguns dos benefícios de uma fábrica ou uma empresa deveriam ser partilhados entre as pessoas que trabalham para ela. Significa que alguns desses benefícios deveriam ser investidos em coisas como, escolas locais, clínicas de saúde, de modo que os filhos dos trabalhadores possam receber algum benefício proveniente de seu trabalho. Significa criar condições em nível micro que são coerentes com os princípios que queremos guiar o desenvolvimento em nível macro. Os americanos disseram "tudo bem, sem problemas". Nós assinamos aqueles tratados, e estou em paz com minha decisão até hoje. Eu disse a verdade, ao passo que eles o assinaram em um espírito diferente. Eles o assinaram porque com isso poderiam facilitar meu retorno ao Haiti e assim arranjar a vitória na política externa, mas, assim que eu voltei ao governo, eles já haviam deixado planejada a renegociação dos termos da privatização. E foi exatamente isso que aconteceu. Eles começaram a insistir na privatização sem limites e, novamente, eu disse não. Quiseram então desfazer nosso acordo, e então, lançaram uma campanha de desinformação para fazer parecer que eu não cumpri com a palavra. Isso não é verdade. Os acordos que nós criamos estão lá. As pessoas podem julgar por elas mesmas. Infelizmente nós não tínhamos os meios para vencer a guerra de relações públicas. Eles ganharam a batalha das comunicações, espalhando mentiras e distorcendo a verdade, mas eu ainda sinto que nós ganhamos a batalha real, pois a verdade está conosco. E quanto à sua batalha com o exército do Haiti, o mesmo que o derrubou em 1991? Os americanos refizeram esse exército de acordo com suas próprias prioridades de 1915 e desde então ele tem atuado como uma força para a proteção daquelas prioridades. Você foi capaz de desmobilizá-lo a poucos meses de seu retorno, em 1994, mas o modo como isso foi feito permanece controvertido, e você não foi capaz de desmobilizar e desarmar completamente os próprios soldados. Parte deles voltou a persegui-lo vingativamente, durante seu segundo mandato. Novamente, não tenho nenhum arrependimento em relação a isso. Foi absolutamente necessário dissolver o exército. Nós tínhamos um exército de aproximadamente 7.000 soldados, e isso absorvia 40% do orçamento nacional. Desde 1915 ele tinha servido como exército de ocupação interna. Ele nunca enfrentou um inimigo externo. Por que necessitaríamos de um exército como esse, ao invés de uma força policial adequadamente treinada? Nós fizemos o que deveria ser feito. De fato, nós organizamos um programa social para a reintegração de militares desmobilizados, já que eles também são membros da comunidade nacional. Eles também tinham o direito de trabalhar e o estado tinha a responsabilidade de respeitar esse direito. Ainda mais que, você sabe, se eles não encontrassem trabalho, seriam mais facilmente tentados a recorrer à violência ou ao crime, como foram os Tontons Macoutes antes deles. Nós fizemos o melhor que pudemos. O problema não vinha do nosso programa de integração e desmobilização, veio com o descontentamento daqueles que estavam determinados a preservar o status quo. Eles estavam cheios de dinheiro e armas e trabalhavam mão a mão com a máquina militar mais poderosa do planeta. Era fácil para os americanos cooptar quaisquer antigos soldados, treiná-los e equipá-los na República Dominicana e usá-los para desestabilizar o país. Foi exatamente isso o que eles fizeram, mas, eu insisto, não foi um erro desmobilizar o exército. A situação não foi assim, como se nós pudéssemos ter evitado o segundo golpe, o golpe de 2004 se tivéssemos mantido o exército. Ao contrário, se o exército tivesse permanecido intocável, então René Préval nunca teria terminado seu primeiro mandato (1996- 2001), e eu certamente não teria sido capaz de resistir por três anos, de 2001 a 2004. Agindo desse modo, trouxemos luz sobre o verdadeiro conflito que estava em jogo aqui. Como você sabe, a história do Haiti é pontuada de uma longa série de golpes de estado. Mas, ao contrário dos golpes precedentes, o golpe de 2004 não foi uma ação do "exército" haitiano agindo sob as ordens de nossa pequena oligarquia, em acordo com os interesses estrangeiros, como aconteceu muitas vezes, tal como no golpe de 1991. Não. Desta vez esses poderosos interesses tiveram que fazer o trabalho, eles mesmos, com suas próprias tropas e em seu próprio nome. Uma vez que Chambleim e seu pequeno bando de rebeldes foram barrados na periferia de Porto Príncipe e não conseguiam avançar mais, os "marines" americanos entraram em ação e expulsando-o do país. Exatamente. A verdade concreta da situação, a real contradição que orienta essa situação, finalmente vem à tona e aparece inteiramente à opinião pública. Voltemos a meados da década de 90. Por um momento, a criação do Partido Fanmi Lavalas em 1996 serviu a função similar, ajudando a revelar as linhas "de fato" do conflito interno que tinha já fraturado a pouco estruturada coalizão das forças que o levaram ao poder em 1990? Por que existiam essas grandes divisões entre você e alguns de seus antigos aliados, pessoas como Chavannes Jean-Batiste e Gérard Pierre-Charles? Quase todo o primeiro mandato de Préval, de 1996 a 2000 foi assolado por ataques e oposição de Pierre-Charles e o OPL. Você passou, então, a construir um partido unificado, disciplinado, que pudesse propor e encaminhar um programa político coerente? Não, não foi assim que as coisas aconteceram. Em primeiro lugar, por experiência e por inclinação, eu era um professor, não um político. Eu não tinha experiência em partidos políticos, e estava contente de deixar a outros a tarefa de desenvolver uma organização partidária, de treinar quadros do partido, e assim por diante. De volta a 1991, eu estava contente em deixar tudo isso a políticos de carreira, a pessoas como Gérard Pierre-Charles, e, junto com outras pessoas ele passou a trabalhar nesse sentido assim que a democracia foi restabelecida. Ele nos ajudou a fundar a "Organização Política Lavalas" - OPL, e eu estimulei que algumas pessoas se juntassem a ela. Esse partido venceu as eleições de 1995 e, no final de meu mandato, em fevereiro de 1996, ele tinha a maioria no Parlamento. Mas então, ao invés de continuar a ouvir o povo, depois das eleições, a OPL começou a dar menos atenção a ele. Começou a cair nos padrões e práticas tradicionais dos políticos do Haiti. Ele começou a ficar mais fechado em si mesmo, mais distante do povo, mais inclinado a fazer promessas vazias, e assim por diante. Eu já estava fora do poder e permaneci à distância. Mas um grupo de padres envolvidos com o movimento Lavalas sentia-se frustrado e queria restaurar uma ligação mais significativa com o povo. Eles queriam permanecer em comunhão com o povo. A partir desse momento (1996), o grupo de pessoas que se sentiam dessa maneira, que estavam insatisfeitas com o OPL, formava um grupo conhecido como "a nebulosa" - eles tinham uma posição incerta e confusa. Com o tempo, mais e mais pessoas tornavam-se descontentes com a situação. Nós nos engajamos em longas discussões sobre o que deveríamos fazer, e Fanmi Lavalas nasceu dessas discussões. Ele surgiu do próprio povo. E mesmo quando veio a constituir-se como uma organização política, ele nunca se concebeu a si mesmo como um partido político tradicional. Se você for ver a constituição da organização vai notar que a palavra "partido" nunca é mencionada. Ele descreve a si mesmo como organização, não como partido. Por quê? Porque no Haiti nós não temos nenhuma experiência política positiva de partidos políticos. Partidos têm sempre sido instrumentos de manipulação e traição. Por outro lado, nós temos uma longa e positiva experiência de organização, de organizações populares - as "ti legliz", por exemplo. Então, não, não fui eu que "fundei" Fanmi Lavalas como um partido político. Eu apenas dei minha contribuição à formação dessa organização, que oferecia uma plataforma aos que estavam frustrados com o partido OPL, que estavam ainda ativos no movimento mas se sentiam excluídos dele (O OPL rapidamente renomeou a si mesmo como "Organização Neoliberal do Povo em Luta"). Agora, para se efetivar, Fanmi Lavalas necessitava canalizar a experiência de pessoas que conheciam um pouco de política, pessoas que poderiam atuar como líderes políticos sem perder o compromisso com a verdade. Este é o problema mais difícil, claro. Fanmi Lavalas não tem a rígida disciplina e coordenação de um partido político. Alguns de seus membros não têm a experiência necessária para preservar ambos: o compromisso com a verdade e uma efetiva participação política. Para nós, política está profundamente relacionada à ética, esse é o ponto crucial da questão. Fanmi Lavalas não é uma organização exclusivamente política. Por isso políticos não conseguem apropriar-se e utilizar Fanmi Lavalas como trampolim para o poder. Isso nunca será fácil. Os membros do Fanmi Lavalas exigem a fidelidade de seus líderes. Essa é uma lição que Marc Bazin, Louis-Gerald Gilles e outros tiveram que aprender durante a campanha eleitoral de 2006. Exatamente. Até que ponto Fanmi Lavalas tornou-se uma vítima de seu próprio sucesso? Como a ANC aqui na África do Sul, estava claro desde o início que Fanmi Lavalas seria mais ou menos imbatível nas eleições. Mas isso pode ter vantagens e desvantagens. Como você propõe lidar com os muitos oportunistas que imediatamente procuram se imiscuir na sua organização, gente como Dany Toussant e seus associados? Eu deixei o poder em 1996. Em 1997, Fanmi Lavalas havia emergido como uma organização funcional, com um claro estatuto. Isso foi já um grande passo à frente em relação a 1990. Em 1990, o movimento político era demasiado espontâneo; em 1997, as coisas já eram mais coordenadas. Além da constituição, no primeiro congresso do Fanmi Lavalas nós votamos e aprovamos o programa escrito em nosso “Livre Blanc”: "Investir no Humano", que, eu sei, você já conhece. Esse programa não surgiu do nada. Por aproximadamente dois anos nós promovemos encontros com engenheiros, com agrônomos, com médicos, professores, e assim por diante. Nós ouvimos e discutimos os méritos de diferentes propostas. Foi um processo coletivo. O “Livre Blanc” não é um programa baseado em minhas prioridades pessoais ou ideologia. É o resultado de um longo processo de consulta com profissionais em todos esses domínios, e foi compilado como um verdadeiro documento colaborativo. Como o próprio Banco Mundial veio a reconhecer, ele foi um programa genuíno, um plano coerente para a transformação do país. Ele não foi um pacote de promessas vazias. Agora, no meio dessas discussões, no meio dessa organização emergente, é verdade que você irá encontrar oportunistas, você irá encontrar futuros criminosos e futuros traficantes de drogas. Mas não era fácil identificá-los. Não era fácil descobri-los em tempo e afastá-los em tempo, antes que fosse muito tarde. Muitas dessas pessoas, antes de ganhar um assento no parlamento, comportavam-se perfeitamente bem. Mas, você sabe, para algumas pessoas o poder pode ser como o álcool: depois de um copo, dois copos, uma garrafa inteira... Você já não está lidando com a mesma pessoa. Ele deixa algumas pessoas inconscientes. Essas coisas são difíceis de prever. No entanto, eu penso que, se não houvesse intervenção das potências estrangeiras, nós seríamos capazes de fazer um avanço concreto. Nós tínhamos estabelecido métodos viáveis para a discussão colaborativa e para preservar ligações diretas com o povo. Eu penso que nós teríamos feito um avanço real, dando passos pequenos, lentos, mas seguros. Mesmo com o embargo sobre a ajuda, nós conseguimos realizar algumas coisas. Nós fomos capazes de investir em educação, por exemplo. Como você sabe, em 1990 havia somente 34 escolas secundárias no Haiti; já em 2001 havia 138. O pouco que nós tínhamos para investir, nós investimos no rumo que indicava o programa "Investir no Humano". Nós construímos uma nova universidade em Tabarre, uma nova faculdade de medicina. Apesar de dispor de recursos precários, o programa de alfabetização foi lançado em 2001 e estava indo bem. Os peritos cubanos que ajudaram a manejar o programa tinham convicção de que por volta de dezembro de 2004 nós teríamos reduzido à taxa de analfabetismo adulto para apenas 15%, uma pequena fração do que foi uma década antes. Os governos anteriores nunca tentaram seriamente investir em educação, e está claro que nosso programa veio a se constituir como uma ameaça ao status quo. A elite não queria nem ouvir falar de educação popular, por óbvias razões. Novamente, voltamos à questão: nós podemos partir de uma posição de liberdade genuína e independência, e trabalhar para criar um país que respeita a dignidade de todo o seu povo, ou então nós devemos aceitar uma posição de dependência servil, um país onde a dignidade do povo comum não conta para nada. Isso é o que está em jogo aqui. Munidos desse programa, Fanmi Lavalas teve oficialmente uma vitória arrasadora nas eleições legislativas de maio de 2000, recebendo 75% dos votos. Ninguém questionou a transparência e legitimidade da vitória. Mas seus inimigos nos EUA e no país logo canalizaram a atenção para o fato de o método usado para calcular o número de votos necessários para se ganhar uma vaga no senado no primeiro turno (isto é, sem que seja necessário um segundo turno entre os dois candidatos mais populares) era um assunto controverso, para não dizer ilegítimo. Eles pularam sobre esse tecnicismo para justificar uma suspensão da ajuda e dos investimentos internacionais. Logo depois do início de seu segundo mandato (em fevereiro de 2001), os vencedores das eleições para esses assentos, foram persuadidos a abandonar suas cadeiras e ficar esperando por um segundo turno. Mas isso foi já um ano depois: não teria sido melhor resolver o assunto mais rapidamente, evitando dar aos americanos um pretexto para minar sua administração antes mesmo que ela começasse? Eu espero que você não se importe se eu chamar a atenção sobre as palavras que você usou: você disse que nós demos um pretexto aos americanos. Na verdade os americanos criaram seu pretexto, e, se não tivesse sido esse, teria sido alguma outra coisa. Seu objetivo, o tempo todo, era garantir que não haveria comemoração significativa do bicentenário da independência no próximo janeiro de 2004. Os EUA demoraram 58 anos para reconhecer a independência do Haiti, já que, obviamente, os EUA eram um país escravagista naquele tempo, e, de fato, a política americana nunca mudou realmente. Suas prioridades não mudaram e, hoje em dia, a política americana é mais ou menos consistente com o modo que ela sempre tem sido. O golpe de setembro de 1991 foi dado por pessoas no Haiti com o apoio da administração dos EUA, e em fevereiro de 2004 ele aconteceu outra vez, graças a muitas dessas mesmas pessoas. Não, os EUA criaram seu pequeno pretexto. Eles estavam tendo muito trabalho em persuadir os outros líderes no CARICOM a voltarem-se contra nós (muitos dos quais, de fato, eles nunca conseguiram persuadir), e eles precisavam de um pretexto que fosse claro e fácil de entender. "Truques eleitorais", isso foi a cartada perfeita para se jogar. Mas eu me lembro muito bem do que aconteceu quando eles vieram observar as eleições. Eles vieram e disseram "muito bem, sem problemas". Tudo parecia que estava indo bem, o processo foi qualificado como pacífico e justo. E então, assim que o resultado apareceu, visando minar nossa vitória, eles começaram a questionar sobre o modo de contagem dos votos. Mas eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu não era mais um membro do governo e não tinha nenhuma influência sobre o CEP - Conselho Eleitoral Provisório. Somente ele tinha autoridade de decidir nesses casos. O CEP é um organismo soberano e independente. O CEP declarou o resultado das eleições. Eu não tinha nada a fazer sobre isso. Em seguida, uma vez que eu fui reeleito, e que os americanos queriam que eu afastasse os senadores, o que eu deveria fazer? A constituição não dá ao presidente o poder de afastar senadores eleitos de acordo com o protocolo decidido pelo CEP. Você poderia imaginar uma situação como essa acontecendo nos próprios EUA? O que aconteceria se um governo estrangeiro insistisse para que o presidente depusesse um senador eleito? Isso é um absurdo. A situação toda é simplesmente racista. De fato, eles impõem condições a nós que eles nunca pensariam em impor a um país "legalmente" independente, sobre um país branco. Nós devemos chamar as coisas pelos seus nomes: o problema é uma questão de governança democrática, de validade de um resultado eleitoral específico? Ou é, na verdade, de outras coisas? No final das contas, o que os americanos queriam era usar o legislativo, o senado, contra o executivo. Eles esperavam que eu fosse estúpido o suficiente para insistir na deposição daqueles senadores eleitos. Eu recusei isso. Em 2001, como um gesto de boa vontade, esses senadores finalmente escolheram renunciar, partindo do princípio de que poderiam disputar novas eleições assim que a oposição estivesse pronta para participar delas. Mas os americanos falharam em colocar o senado e o parlamento contra a presidência, e logo ficou evidente que a oposição não tinha interesse algum em novas eleições. Uma vez que essa tática falhou, os EUA recrutaram ou compraram alguns testa-de-ferro, incluindo Dany Toussaint e companhia, e os utilizaram, um pouco tardiamente, contra a presidência. Mais uma vez, o objetivo geral era demolir a celebração de nosso bicentenário, a celebração de nossa independência, com todas suas implicações. Quando chegou a hora, eles mandaram emissários à África, especialmente à África franco fônica, dizendo a seus líderes que não participassem das celebrações. Chirac exerceu enorme pressão a seus colegas africanos. Os americanos fizeram o mesmo. Thabo Mbeki foi praticamente sozinho em sua determinação em resistir a essa pressão e, através dele, a União Africana foi representada. Eu sou muito grato a ele por isso. A mesma pressão foi exercida sobre os caribenhos: o primeiro ministro das Bahamas, Pery Christie, decidiu vir, mas isso foi tudo, ele foi o único. Foi muito decepcionante. Na imprensa, entretanto, você veio a ser representado não como um inquestionável vencedor de eleições legítimas, mas como um autocrata cada vez mais tirânico. Exatamente. Uma grande parte dos 200 milhões de dólares enviados para o Haiti, destinados à ajuda e desenvolvimento, que foi suspensa quando nós ganhamos as eleições em 2000, foi simplesmente dirigida à propaganda e campanha de desestabilização movida contra nosso governo e contra o Fanmi Lavalas. A campanha de desinformação foi verdadeiramente massiva. Enormes quantias de dinheiro foram gastas para fazer passar a mensagem, por rádio, através dos jornais, através dos vários pequenos partidos políticos que deveriam servir de veículos para a oposição... Foi extraordinário. Quando eu olho para trás, para esse período extremamente desencorajador de nossa história, eu a comparo com o que tem acontecido recentemente em outros países. Eles estão passando pelos mesmos tipos de problemas quando tentaram dizer que havia armas de destruição em massa no Iraque. Eu ainda posso ver Colin Powell sentando lá, na frente das Nações Unidas, com seu pequena sacola de truques, demonstrando ao mundo inteiro que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa: "Olhem para essa prova irrefutável!" Isso foi patético. Em qualquer caso a lógica é a mesma: eles montam uma mentira útil, e então, vendem-na. É a lógica de gente que se crê todo-poderoso. Se eles decidem que 1 + 1 = 4, então será 4. De My Lai, aos Irão-Contras, ao Iraque, ao Haiti. Colin Powell fez uma carreira inteira de acordo com essa linha de idéias... Mas, voltando a maio de 2000: logo que o resultado foi declarado, o dirigente do CEP, Léon Manus, deixou o país dizendo que você e Préval tinham feito pressão sobre ele para calcular os votos de um modo particular. Por que ele veio a assumir a linha americana? Bom, não quero julgar Léon Manus, não sei exatamente o que aconteceu. Mas penso que ele agiu da mesma forma que alguns líderes do Grupo dos 184. Eles têm obrigações a um patrão, um "boss". O "boss" é americano, um americano branco; e eles são negros. Não subestime o complexo de inferioridade que ainda tão frequentemente condiciona essas relações. Você é negro, mas talvez você se sinta mais branco que os brancos se estiver disposto a cair de joelhos em frente aos brancos, ao invés de ficar sobre seus pés. Então você pode sentir-se quase tão branco quanto eles. É como uma herança psicológica da escravatura: mentir para o homem branco não é mentir, já que os homens brancos não mentem. [risos]. Como os homens brancos poderiam mentir? Eles são os civilizados. Se eu mentir para os brancos eu não estou realmente mentindo. Estou apenas repetindo a mentira que eles queriam que eu repetisse. Não se esqueça que sua viagem para fora do país começou em um veículo com placa diplomática e que ele chegou a São Domingo em um helicóptero americano. Quem tem acesso a esse tipo de transporte? Neste caso e em outros deste tipo, o que está acontecendo, de fato, é bastante claro. São as pessoas com poder que dão as cartas, e eles usam esse ou aquele "petit nègre de service", esse ou aquele “moleque de recados” para traduzir as mentiras que eles chamam verdade. Com o povo recrutado no Grupo dos 184 foi praticamente a mesma coisa: eles foram pagos para dizer o que seus patrões queriam que eles dissessem. Eles ajudaram a destruir o país, para deixar seus patrões satisfeitos. Por que essas pessoas manifestam uma hostilidade tão violenta contra você e seu governo? Há alguma coisa de histeria sobre as posições adotadas pela, assim chamada, "Convergência Democrática", e mais tarde pelo Grupo dos 184 e por pessoas como Evans Paul, Gérard Pierre- Charles e outros. Eles recusam qualquer tipo de compromisso, eles insistem sobre todo tipo de condições irracionais antes mesmo de considerar em tomar parte num segundo turno de eleições. Os próprios americanos pareciam exasperados com a atitude deles, mas não fizeram nenhum esforço concreto para chamá-los à ordem. Eles não fizeram nenhum esforço para convocá-los à ordem porque isso fazia parte do plano. É um pouco como o que está acontecendo agora [em julho de 2006] com Yvon Neptune: os americanos têm derramado lágrimas de crocodilo sobre o pobre Neptune encarcerado, como se eles não tivessem sido cúmplices nem responsáveis pela sua prisão. Como se eles não tivessem o poder de mudar a situação de uma hora para outra! Eles têm o poder de desestabilizar e derrubar um governo democraticamente eleito, mas eles não têm poder para libertar três ou quatro prisioneiros que eles mesmos colocaram na prisão[risos]! Naturalmente, eles têm que respeitar a lei, os procedimentos rigorosos, a integridade das instituições haitianas! Isso é tudo um blefe. É um absurdo. Por que o Grupo dos 184 e nossos adversários da "sociedade civil" eram tão hostis? Novamente, isso é, em parte, uma questão de patologia social. Quando um grupo de cidadãos está pronto para agir de uma forma tão irracional e servil, quando eles estão de tal modo propensos a difundir a mensagem preparada por seus senhores estrangeiros sem ao menos se darem conta de que agindo assim estão prejudicando a eles mesmos - bom, se você quer saber o que penso, isto é sintoma de uma verdadeira patologia. Isto tem relação com um ódio visceral que se torna uma verdadeira obsessão: um ódio contra o povo. Não foi nunca realmente contra mim. Não tem nada a ver comigo como indivíduo. Eles detestam e desprezam o povo. Eles recusam-se absolutamente a reconhecer que somos todos iguais, que todos os homens são iguais. Assim, se explica em parte por isso: eles querem assegurar-se de que são diferentes, não são como o povo, não como eles. É essencial que eles se considerem superiores aos outros. Acho que isso é uma parte do problema, e não se trata simplesmente de um problema político. Há alguma coisa de masoquista nesse comportamento e o que inúmeros sádicos estrangeiros mais desejam, acima de tudo, é que suas ordens sejam obedecidas! Eu estou convencido de que isso tem relação com a herança da escravidão, uma herança do desprezo pelo povo, pelas pessoas simples, pelos negros [petits nègres]... É a psicologia do apartheid: melhor cair de joelhos aos homens brancos do que ficar ombro a ombro com os negros. Não subestime a profundidade desse desprezo. Não se esqueça que, voltando a 1991, uma das primeiras coisas que fizemos foi abolir, nas certidões de nascimento, a classificação de "camponês" [paysans] a pessoas nascidas fora de Porto Príncipe. Esse gênero de classificação, e toda espécie de coisas da mesma ordem, servia para manter-se um sistema de rígida exclusão. Servia para manter o povo à distancia, de tratá-los como "moun andeyò" [em créole] - pessoas de fora, clandestinas. Isso é o que quero dizer com mentalidade do apartheid, e isso corre muito fundo. Isso não muda da noite para o dia. E quanto à sua própria disposição de trabalhar juntamente com pessoas comprometidas com o passado, por exemplo, a inclusão de antigos duvallieristas em seu segundo governo? Foi uma decisão fácil de tomar? Foi necessária? Não, não foi fácil, mas eu a vi como um mal necessário. Trazer Marc Bazin, por exemplo. Ele foi ministro das finanças de Jean-Claude Duvalier. Eu só me voltei para Bazin porque meus oponentes da Convergência Democrática, da OPL, e outros, recusaram-se a participar do governo. Você estava sob pressão para formar um governo de consenso, de unidade nacional, e convocou pessoas da Convergência primeiro? Sim, e não consegui nada. O objetivo deles era bloquear todo o processo, e disseram "não" imediatamente. Veja, claro que nós tínhamos uma massiva maioria no parlamento, e eu não estava preparado para dissolver um parlamento formalmente eleito. Para quê? Mas eu estava ciente do perigo de simplesmente excluir a oposição. Queria formar um governo democrático. Decidi fazê-lo o mais inclusivo que pude, dadas as circunstâncias. Já que a Convergência não queria participar, convidei pessoas de setores que tinham pouca ou nenhuma representação no parlamento a ter voz na administração, a ocupar algum ministério visando manter um equilíbrio entre os setores legislativo e o executivo do governo. Isso deve ter sido muito controverso. Bazin não somente trabalhou com Duvalier como também foi seu adversário em 1990. Sim, foi controverso, mas eu não tomei essa decisão sozinho. Nós tivemos longas discussões, promovemos encontros, procurando um entendimento. Alguns eram a favor, outros, contra. No final, havia uma maioria de acordo com o fato de que nós não poderíamos trabalhar sozinhos, que nós precisávamos demonstrar nossa vontade e capacidade de trabalhar com pessoa que claramente não eram pró-Lavalas. Eles não eram pró-Lavalas, mas nós já tínhamos publicado um bem definido programa político e se eles estavam dispostos a cooperar em um assunto ou outro, então, estávamos dispostos a trabalhar com eles. Isso é irônico: você é frequentemente acusado de ser um presidente "monárquico", quando não, tirânico, de ser intolerante em relação à dissidência, de estar determinado a impor sua vontade... Mas o que você diz daqueles que argumentam ao contrário, que o problema real foi justamente o oposto, que você foi muito tolerante com a dissidência? Você permitiu aos antigos soldados convocarem aberta e repetidamente à reconstituição do exército. Você permitiu aos auto-proclamados líderes da "sociedade civil" fazerem todo o possível para dissolver seu governo. Você permitiu a estações de rádio sustentarem uma campanha feroz de desinformação. Você permitiu toda sorte de manifestações que pediam sua deposição por meios legais ou abomináveis, e muitas dessas demonstrações foram diretamente financiadas e organizadas por seus inimigos nos EUA. Ao final, a situação saiu do controle e as pessoas que buscavam tirar proveito do caos não estavam certamente motivadas para o respeito do direito à liberdade de expressão! Bem, isso é uma exigência da democracia. Ou você permite a livre expressão de opiniões diversas ou não. Se as pessoas não são livres para demonstrar e dar voz às suas reivindicações, não há democracia. Eu sabia que nossa posição era forte no parlamento e que a grande maioria do povo estava do nosso lado. Uma pequena minoria opunha-se a nós, uma pequena mas poderosa minoria. Suas conexões com o estrangeiro, seus interesses comerciais e outros , tornava-os poderosos. Entretanto, eles tinham o direito de protestar, de articular suas reivindicações, como qualquer um. Isso é normal. Quanto às acusações de que eu estava me tornando ditador, autoritário, e assim por diante, não dei ouvidos a isso. Eu sabia que eles estavam mentindo, e eu sabia que eles sabiam que estavam mentindo. Isso era, obviamente, uma estratégia previsível: ajudar a criar uma imagem que eles poderiam vender mundo afora. Em casa, no entanto, todos sabiam que isso era ridículo e, no final, como eu disse antes, foram os senhores estrangeiros, eles mesmos, que vieram ao Haiti para terminar o serviço. Meu governo seguramente não foi derrubado pelo povo que fazia manifestações nas ruas. Talvez a acusação mais grave e frequente feita contra você pelos manifestantes e repetida por seus críticos mundo afora, é que você recorreu à violência para permanecer no poder. À medida que a pressão sobre seu governo aumentou, você teria começado a se apoiar em gangues armadas das favelas, chamados de "chimères", e que você os teria usado para intimidar e, em alguns casos, assassinar seus oponentes. Aqui, novamente, as pessoas que fazem essas acusações estão mentindo e eu penso que elas sabem que estão mentindo. Assim que você começa a olhar racionalmente sobre o que realmente aconteceu, essas acusações estão longe de sustentar-se. Muitas coisas devem ser levadas em conta. Para começar, a polícia trabalhava sob um boicote por vários anos. Nós não conseguíamos nem comprar coletes à prova de bala ou bombas de gás lacrimogênico. A polícia estava muito mal equipada e era frequentemente incapaz de controlar uma manifestação ou uma confrontação. Alguns de nossos oponentes, alguns dos manifestantes, que buscavam provocar confrontos violentos, sabiam disso muito bem. O povo também estava ciente disso. Era de conhecimento público que enquanto no Haiti estava esgotando a munição e os suprimentos da polícia, pesado armamento estava sendo repassado para nossos oponentes em contrabando através da República Dominicana. O povo sabia disso, compreendia e se inquietava. Eles começaram a ficar nervosos, com razão. As provocações aumentaram e aconteceram atos isolados de violência. Essa violência era justificada? Não, eu a condenei. Eu a condenei veementemente. Mas com os meios limitados de que dispúnhamos, como poderíamos prevenir cada foco de violência? Havia muito de provocação, muito de cólera, e não havia meio algum de fazermos com que cada cidadão recusasse a violência. O presidente de um país como o Haiti não pode ser responsabilizado pelos atos de cada cidadão. Mas nunca houve qualquer ato deliberado de encorajamento à violência, nunca houve uso deliberado de violência. Aqueles que fazem e repetem essas acusações estão mentindo e eles sabem disso. No que diz respeito aos "chimères", isso é claramente uma outra expressão de nossa mentalidade de apartheid, a própria palavra diz tudo: "chimères" são pessoas pobres, que vivem em estado de profunda insegurança e desemprego crônico. Eles são as vítimas da injustiça estrutural, da violência social sistemática, e estão entre as pessoas que votaram nesse governo, que apreciavam o que o governo estava fazendo ou tinha feito, apesar do embargo. Não surpreende que essas pessoas iriam se confrontar com os que sempre se beneficiaram dessa mesma violência social, assim que eles começaram ativamente a sabotar seu governo. Mais uma vez, isso não justifica atos de violência ocasionais, mas de quem é responsabilidade real? Quem são as verdadeiras vítimas da violência aqui? Quantos membros da elite, quantos membros dos numerosos partidos da oposição foram mortos pelos "chimères"? Quantos? Quem são eles? Enquanto isso, todos sabem que alguns dos poderosos interesses econômicos foram muito felizes em financiar gangues de criminosos, todos sabem que eles colocaram armamento pesado nas mãos de marginais, em Cité Soleil e em todo lugar, na intenção de provocar desordem, criar rejeição e jogar a culpa sobre Fanmi Lavalas. Estas mesmas pessoas também pagavam a jornalistas para apresentarem a situação de um determinado ponto de vista. Entre outras coisas, prometiam-lhes visto - recentemente, alguns deles que estão agora vivendo na França, admitiram o que foram levados a dizer para poder receber o visto. Assim, você tem pessoas que estavam financiando a desinformação, por um lado, e a desestabilização, por outro, estimulando pequenos grupos de bandidos a semear pânico nas ruas, para criar a impressão de que o governo perdeu o controle da situação. Como se isso não fosse suficiente, ao invés de permitir que a munição para a polícia chegasse ao Haiti, ao invés de enviar armas e equipamentos para fortalecer o governo haitiano, os americanos enviavam a seus representantes na República Dominicana. Basta você somente ver quem são essas pessoas - gente como Jodel Chamblain, que é um criminoso reconhecidamente condenado pela justiça que escapou da prisão para ser bem acolhido pelos EUA, que em seguida armou e financiou esses "combatentes pela liberdade" que esperavam na fronteira com República Dominicana. Isso foi o que realmente aconteceu. Nós não armamos os "chimères", os EUA armaram Chamblain e Philippe. A hipocrisia é extraordinária. Em seguida, quando o período 2004-2006 chegou, todo esse indignado vozerio contra a violência morreu. Como se nada tivesse acontecido. Pessoas estavam sendo enfiadas em containeres e jogadas ao mar. Isso não quer dizer nada. Os inumeráveis ataques a Cité Soleil, eles não significam nada. E eu poderia continuar por muito tempo. Milhares têm morrido. Mas eles não contam, porque não são mais que "chimères", acima de tudo. E quanto a pessoas de sua equipe como Dany Toussaint, seu antigo chefe de segurança, que foi acusado de toda espécie de violência e intimidação? Ele estava trabalhando para os outros. Isso está claro. Desde o início. E nós fomos enganados. Eu lamento muito isso. Mas não era difícil para os americanos ou seus representantes infiltrar-se no governo, infiltrar-se na polícia. Nós não estávamos em condições de fornecer à polícia os equipamentos que eles precisavam. Nós podíamos apenas pagar-lhes um salário adequado. Era fácil para nossos oponentes "resolver" o problema, corromper alguns policiais, infiltrar-se em nossa organização. Isto era incrivelmente difícil de controlar. Nós estávamos verdadeiramente cercados. Eu estava rodeado de pessoas que, de um jeito ou de outro, eram pagas por potências estrangeiras que trabalhavam ativamente para derrubar o governo. Um amigo disse então, diante da situação: "Agora entendo porque você acredita em Deus, pois de outro modo não posso entender como você pode ainda estar vivo, em meio a isso tudo." Eu suponho que mesmo seus inimigos sabiam que não havia nada a ganhar se você se tornasse um mártir. Sim, eles sabiam que uma mistura de desinformação e difamação seria mais efetivo, mais devastador. Eu estou, seguramente, acostumado a isso [risos]. Como posso saber mais sobre o papel de Dany Toussaint em tudo isso? Ele não estava disposto a falar comigo quando estive em Porto Príncipe há dois meses atrás. É intrigante que pessoas que estavam clamando por sua prisão enquanto você estava ainda no poder ficaram subitamente muito contentes em deixar Dany Toussanint em paz, assim que ele tomou posição abertamente contra você (em dezembro de 2003) e assim que eles mesmos assumiram o poder. Mas você pode provar que ele trabalhava para ou com eles desde o início? Não será fácil provar, admito. Mas, se você procurar bem para descobrir as evidências, acredito que as encontrará. Com o tempo, coisas que estavam então escondidas e obscuras tendem a vir à luz. No Haiti há muitos rumores e contra-rumores, mas finalmente a verdade deverá aparecer. Há um provérbio créole que diz "twou manti pa fon": mentiras não vão muito longe, cedo ou tarde a verdade aparecerá. Há muitas coisas que estavam acontecendo naquela época que só recentemente estão começando a vir à luz. Você quer dizer coisas como as admissões públicas finais feitas nos últimos anos pelos líderes rebeldes Remissainthe Ravix e Guy Philippe, sobre a amplidão e a longa duração de sua colaboração com a Convergência Democrática, com os americanos? Exatamente. Nessa mesma linha, o que você diz a grupos de militantes de esquerda como Batay Ouvriye, que afirmam ter seu governo falhado em ajudar os pobres, que você não fez nada pelos trabalhadores? Apesar de eles não parecerem ter nada em comum com a Convergência, fizeram e fazem o mesmo tipo de acusações contra Fanmi Lavalas. Eu acredito que há várias explicações possíveis, apesar de não ter certeza. Primeiro é preciso ver de onde vêm seus recursos. O discurso faz mais sentido assim que se saiba quem está pagando a conta. Os americanos não escolhem por acaso os grupos políticos que vão financiar.[*] Muito menos sindicalistas quase trotskistas... Certamente não. E, de novo, acho que em grande parte a razão remonta ao que eu disse antes, que em algum lugar, de certa maneira, existe uma pequena e secreta satisfação, talvez uma satisfação inconsciente, em dizer coisas que poderosas pessoas brancas querem que sejam ditas. Mesmo aqui, penso que acontece um pouco como no caso anterior: "Sim, somos operários, somos camponeses, lutamos em nome dos trabalhadores, mas em algum lugar há uma pequena parte de nós que gostaria de escapar à nossa classe mental, o estado de espírito de nossa classe, para saltar a outra classe mental". Eu sinto que é alguma coisa como isso que se passa. No Haiti o desprezo pelo povo tem raízes profundas. Em minha experiência, a resistência à nossa reivindicação por igualdade, por estarmos junto com o povo, remonta a muito longe, certamente. Mesmo quando se trata de coisas triviais... …Como, convidar para sua piscina crianças dos bairros pobres? É verdade. Você não pode imaginar as reações que aquilo provocou. Foi um grande escândalo: as piscinas são supostamente reservadas aos ricos. Em fevereiro último [2006]**, quando vi as fotografias das pessoas nadando na piscina do Hotel Montana, eu ri [risos]. Eu pensei "Isso é formidável!". Eu pensei "Ah, agora posso morrer em paz!" Foi muito bom de se ver, porque naquela época, quando as crianças vieram nadar em nossa piscina de Tabarre, muita gente disse: "Olhem, ele está abrindo as portas de sua casa aos miseráveis, ele está pondo idéias em suas cabeças. Primeiro eles vão pedir para nadar em sua piscina; logo vão querer um lugar em nossas casas." E eu disse "Não, é justamente o oposto". Eu não tinha nenhum interesse por aquela piscina. Eu quase nunca a usei. O que me interessava era a mensagem. As crianças dos bairros mais pobres não teriam normalmente nenhuma chance de ver uma piscina, quanto mais de nadar em uma. Muitas invejam os ricos. Mas depois de ter nadado numa piscina, depois que elas se dão conta de que é apenas uma piscina, elas concluem que isso não importa muito, o ressentimento se evapora. Aquele dia, em fevereiro, uma enorme multidão de milhares de pessoas veio das favelas para comparecer ao CEP (que tinha por base o Hotel Montana). Eles apresentaram suas reivindicações [que seu voto fosse respeitado]. Depois, centenas deles foram nadar na piscina do hotel e saíram, sem mexer em nada, nenhum estrago, nenhum furto, estavam só marcando presença. Exatamente. É uma maravilha de se ver aquelas fotos. Vamos voltar agora ao que aconteceu em fevereiro de 2004. Sei que você tem sido perguntado frequentemente sobre isso, mas há versões muito diferentes sobre o que aconteceu nos dias precedentes à sua expulsão do país. Os americanos insistem que, tarde da noite, você procurou-os para pedir ajuda, que você subitamente entrou em pânico, que eles estavam surpresos com o acelerado colapso de seu governo. Isso não parece muito consistente com outros fatos. Os rebeldes bem armados de Guy Philippe foram capazes de desarmar algumas delegacias de polícia e pareciam controlar quase toda as regiões norte e oeste do país. Mas que apoio que eles realmente tinham? E havia seguramente pouca chance de eles tomarem a capital em face das muitas milhares de pessoas que estavam prontas para defendê-la? Não esqueça que já tinha havido várias tentativas recentes de golpe, um julho de 2001, com um ataque à academia de polícia, antiga academia militar, e, novamente, poucos dias antes, em dezembro de 2001, com uma incursão no próprio palácio presidencial. Eles não tiveram sucesso e nas duas ocasiões os rebeldes foram forçados a deixar a cidade. Eles só tiveram sucesso em fugir. Não foi só a polícia que os enfrentou, foi uma coalizão entre polícia e povo. Assim, os rebeldes sabiam que o povo se levantaria contra eles, sabiam que não seria fácil. Eles sabiam que poderiam conseguir abrir caminho na cidade, mas que não seria fácil permanecer lá. Foi um pouco como a coisa ficou no Iraque: os americanos tinham os armamentos para abrir caminho facilmente, mas permanecer lá provou ser mais que um desafio. Os rebeldes sabiam que não podiam tomar Porto Príncipe, e foi por isso que eles hesitaram um momento, nos arredores da cidade, a uns 40 quilômetros de distância. Então, do nosso ponto de vista, não havia nada que devêssemos temer. O balanço de forças estava a nosso favor, isto estava claro. Há ocasiões em que pessoas em grande número são mais poderosas que pesadas metralhadoras e armas automáticas. E Porto Príncipe, uma cidade onde há numerosos interesses nacionais e internacionais, é diferente de zonas mais isoladas como Saint-Marc ou Gonaives. O povo estava preparado e eu não me preocupava. Os rebeldes sabiam que não podiam tomar a cidade e por isso seus mentores decidiram, ao invés de fazer um incursão, atacar as províncias, visando criar a ilusão de que boa parte do país estava sob seu controle, de que havia uma grande insurreição a caminho. Mas esse não era o caso. Não havia uma grande insurreição: havia um pequeno grupo de soldados, pesadamente armados, que foram capazes de tomar algumas delegacias de polícia, matar alguns policiais, e criar certo tumulto. Os policiais estavam com a munição se esgotando, e não eram páreo para os M16 dos rebeldes. Mas a cidade, isto era outra história. Enquanto isso, como você sabe, em 29 de fevereiro deveria chegar a Porto Príncipe uma carga de munição para a polícia, que nós tínhamos comprado da África do Sul, tudo perfeitamente legal. Esse fato foi decisivo. O balanço de forças já não estava a favor dos rebeldes. Se a polícia recuperasse toda sua capacidade operacional, então os rebeldes não teriam chance alguma. Então, a partir desse ponto os americanos não tiveram outra opção a não ser eles mesmos irem pegar você na noite de 28 de fevereiro? Isso mesmo. Eles sabiam que a qualquer hora iriam perder a oportunidade de "resolver" a situação. Eles se apegaram a essa opção enquanto ainda era possível, e nos embarcaram num avião no meio da noite. Foi isso o que eles fizeram. Os americanos - Embaixador Foley, Luis Moreno e companhia - insistem no fato de que você pediu a ajuda deles, que eles tiveram que arranjar um vôo para colocá-lo em segurança no último minuto. Vários jornalistas estavam prontos para endossar a versão deles. Por outro lado, um dos guardas de segurança que estava no mesmo avião, falando em condições de anonimato, disse ao Washington Post, logo após o evento, que a versão dos EUA era "pura mentira". Seu chefe de segurança pessoal, Frantz Gabriel, confirmou também que você foi raptado aquela noite pelos próprios militares americanos. Em quem devemos acreditar? Bem, para mim é muito simples. Você está lidando com um país que estava disposto e pronto para, diante das Nações Unidas e do mundo inteiro, fabricar alegações sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. Eles estavam prontos para mentir sobre questões de importância global. Não surpreenderia que eles fossem capazes de pegar um punhado de pessoas para dizer as coisas que precisavam ser ditas no Haiti, num pequeno país sem grande importância estratégica. Eles tinham seu pessoal, seus recursos, seu modo de fazer as coisas. Eles apenas executaram o plano. Isso é tudo. Foi tudo parte do plano. Eles disseram que não podiam enviar os soldados da Força da Paz para ajudar a estabilizar a situação, mas, assim que você saiu, as tropas chegaram rapidinho. O plano estava perfeitamente claro. Eu tenho ainda duas últimas questões. Em agosto e em setembro de 2005. No correr das eleições que se deram, finalmente, em fevereiro de 2006, havia muita discussão no Fanmi Lavalas sobre como deveriam proceder. No final, a maioria dos militantes da base apoiou seu antigo companheiro, seu "irmão gêmeo" René Préval, mas alguns membros da direção do partido optaram por se apresentarem como candidatos eles mesmos; outros estavam mesmo prontos para apoiar a candidatura de Marc Bazin. Foi uma situação confusa, uma situação que levou grande pressão sobre a organização, mas você manteve-se em silêncio. Em uma ditadura, as ordens vêm de cima para baixo. Numa organização democrática, o processo é mais dialético. Os pequenos grupos ou células que nós chamamos os "ti fanmis", são parte do Fanmi Lavalas, eles discutem, debatem, expressam-se, até que uma decisão coletiva apareça dessa discussão. É assim que a organização funciona. Obviamente nossos opositores irão sempre clamar: "Ditadura! Ditadura! É Aristide que está dando as ordens". Mas as pessoas que são próximas da organização sabem que essa não é nossa prática. Nós não temos nenhum histórico de situação em que alguém vem e dá ordens sem discussão. Eu lembro que quando nós tivemos que escolher os futuros candidatos do Fanmi Lavalas às eleições, em 1999, as discussões na fundação [a Fundação Aristide para a Democracia] frequentemente prolongavam-se noite à dentro. Delegações vinham de toda parte do país, e membros dos núcleos de base argumentavam a favor ou contra. Frequentemente não era fácil chegar a um acordo, mas era assim que o processo funcionava. Então, quando chegou o momento de decidir sobre o novo candidato à presidência, no ano passado [2005], eu estava confiante de que as discussões iriam se dar do mesmo modo, ainda que naquele estágio muitos membros da organização houvessem sido mortos e muitos mais estavam desaparecidos, no exílio, ou na prisão. Eu não fiz nenhuma declaração, de um jeito ou de outro, sobre o que eles deveriam fazer ou a quem apoiar. Eu sabia que eles tomariam a decisão certa do seu próprio jeito. Muitas coisas que eu decidi, enquanto presidente, foram, na verdade, decididas desse modo: a decisão não partia de mim, e, sim, deles. Foi com essas palavras que eu falei. As decisões que nós tomamos emergiram através de um processo genuinamente coletivo. As pessoas são inteligentes e sua inteligência frequentemente surpreende. Eu sabia que os senadores do Fanmi Lavalas que decidiram apoiar Bazin logo iriam confrontar-se com a verdade, mas eu não sabia quando isso iria acontecer, já que a verdadeira decisão vinha do povo, da base, e não do alto. Ninguém poderia prever isso, a alguns meses de antecedência. Nunca duvide da inteligência do povo, seu poder de discernimento. Eu dei uma ordem para apoiar Bazin ou oporem-se a Bazin? Não, eu não dei ordem alguma, qualquer que seja. Eu confiei na adesão para chegar à verdade. É claro que a organização é guiada por certos princípios, e eu chamei a atenção para alguns deles, então. Na África do Sul, em 1994, poderia haver eleições justas se Mandela ainda estivesse na prisão, se Mbeki estivesse ainda no exílio, se os outros membros da ANC estivessem na clandestinidade? A situação no Haiti nesses últimos anos é muito semelhante: não poderia haver eleições justas antes que os prisioneiros fossem libertados, antes que os exilados fossem autorizados a voltar, e assim por diante. Eu estava pronto para falar sobre isso, como uma questão de princípio geral. Mas ir além disso, e declarar apoio a esse ou aquele candidato, a essa ou aquela linha de ação, isso não cabe a mim dize-lo. Como você vê o futuro? O que vai acontecer agora? Pode haver mudança, de fato, no Haiti, sem que se encare diretamente a questão de privilégios de classe e poder, sem procurar-se um modo de superar a resistência da classe dominante? Nós devemos enfrentar essas questões, de um jeito ou de outro. A condição sine qua non para isso é, sem nenhuma dúvida, a participação do povo. Uma vez que o povo possa verdadeiramente participar do processo democrático, então seria capaz de encontrar um meio aceitável de continuar. De qualquer modo, o processo é irreversível. Ele é irreversível em nível mental, no nível da consciência do povo. Membros dos setores pobres da sociedade haitiana agora têm uma experiência em democracia, de uma consciência coletiva, e eles não aceitarão mais a imposição de um governo ou um candidato. Eles demonstraram isso em fevereiro de 2006, e eu sei que eles continuarão a demonstrá-lo. Eles não aceitarão a mentira no lugar da verdade, como se fossem tão estúpidos para não perceber a verdade entre os dois. Tudo recai, no final, no princípio que todo "moun se moun" - cada pessoa é uma pessoa, cada pessoa é capaz de pensar por si mesma, quer você aceite isso ou não. Aqueles que não aceitam isso, quando olham para os negros do Haiti - consciente ou inconscientemente, é isso que eles vêem: vêem pessoas que são muito pobres, muito grosseiras, muito ignorantes, para pensarem por si sós. Eles vêem pessoas que precisam de outros para tomar decisões sobre elas. É uma mentalidade colonial, de fato, e essa mentalidade está ainda muito disseminada em nossa classe política. Isto é também uma projeção: eles projetam sobre o povo os sentimentos de sua própria fraqueza, sua própria desigualdade sob os olhos do senhor. Então, sim, para mim, há um caminho à frente, e ele tem que passar pelo caminho do povo. Mesmo que não tenhamos ainda instituições e estruturas democráticas viáveis, já existe uma consciência democrática coletiva, e isso é irreversível. Fevereiro de 2006 mostra o quanto já conquistamos, mostra em que ponto estamos na via da democracia, mesmo depois do golpe, mesmo depois de dois anos de violência feroz e repressão. O que permanece incerto é o tempo que isso irá demorar. Nós podemos avançar rapidamente se, através de mobilizações, o povo encontre interlocutores dispostos a escutar, a dialogar com eles. Se não encontrá-los, isso vai levar mais tempo. De 1992 a 1994, por exemplo, havia pessoas do governo americano que estavam dispostos a ouvir, pelo menos um pouco, e isso ajudou a fazer avançar o processo democrático. Depois de 2000, nós tivemos que negociar com um governo americano diametralmente oposto ao predecessor, e tudo se arrastou demoradamente, ou passou a retroceder. A questão é quanto tempo vai demorar. O problema real não é somente haitiano, ele não se encontra dentro do Haiti. É um problema para o Haiti que é localizado fora do Haiti! As pessoas que controlam isso podem acelerar as coisas, segurá-las, ou bloqueá-las completamente, como quiserem. Mas o processo em si, o processo democrático no Haiti, continuará de uma maneira ou de outra. Ele é irreversível. É assim que eu entendo a questão. Quanto ao que vai se passar agora ou daqui para frente, isso está incerto. As variáveis desconhecidas que eu mencionei antes continuam fortes, e muito depende de como irão reagir aqueles que controlam os meios de repressão, em casa ou no estrangeiro. Nós ainda precisamos desenvolver novos meios de reduzir e, possivelmente, eliminar nossa dependência em relação às potências estrangeiras. Qual seu próximo passo pessoal? Eu sei que você ainda espera retornar ao Haiti o mais cedo possível. Há algum progresso nesse sentido? Quais são suas próprias prioridades agora? Sim, de fato: a última declaração de Thabo Mbeki sobre isso data de fevereiro [de 2006]. Ele disse que não via qualquer razão particular pela qual eu não pudesse voltar para casa, e isso permanece assim. É claro que se trata também de avaliar o momento mais oportuno, a segurança e a estabilidade da situação. O governo da África do Sul nos acolheu como convidados, e não como exilados. Por ajudar-nos tão generosamente eles dão sua contribuição à paz e estabilidade no Haiti. E uma vez que as condições sejam favoráveis, nós voltaremos. Assim que René Préval julgar que é o momento oportuno, voltarei. E eu estou pronto para voltar amanhã. Pelos olhos dos seus adversários você representa ainda uma grande ameaça política? Criminosos como Chamblaim e Philippe estão livres para patrulhar as ruas, ainda agora, mas eu devo permanecer no exílio porque alguns membros da elite acham que represento uma grande ameaça? Quem é a verdadeira ameaça? Quem é culpado e quem é inocente? Repetindo, ou nós vivemos numa democracia ou não. Estaríamos nós respeitando a lei ou não. Não há justificativa legal para bloquearem meu retorno. Isso é quase cômico: eu fui eleito presidente, mas fui acusado de ditador por pessoas anônimas que não representam ninguém e, no entanto, têm o poder de me expulsar do país e de retardar ou bloquear meu retorno [risos]. Em todo caso, assim que eu possa retornar o medo dessas pessoas irá evaporar-se como a neblina, pois não tem consistência. Elas não têm mais consistência que tinham as ameaças de ação legal contra mim, as quais foram finalmente abandonadas semana passada, assim que até mesmo os advogados americanos encarregados de processar o caso deram-se conta que a coisa toda era vazia, que não havia nada ali. Você não tem algum plano futuro de desempenhar algum tipo de papel na política? Frequentemente me colocam essa questão, e minha resposta permanece a mesma. Para mim é bastante claro. Há diferentes modos de servir ao povo. Participar da política do estado não é a única maneira. Antes de 1999 eu servia ao povo, do lado de fora das estruturas do estado. Minha primeira vocação era o ensino, uma vocação que eu nunca abandonei, eu ainda tenho um compromisso com ela. Uma das grandes realizações de nossa segunda administração foi a construção da Universidade de Tabarre, que foi construída inteiramente sob embargo, mas que, em infra-estrutura, tornou-se a maior universidade do Haiti (depois de 2004 ela foi ocupada pelas tropas estrangeiras). Eu adoraria voltar a lecionar, eu pretendo permanecer ativo em educação. No que concerne à política, eu nunca tive qualquer interesse em tornar-me um líder político "vitalício". Isso foi Duvalier: presidente vitalício. De fato, é assim que a maior parte dos partidos políticos no Haiti ainda funciona: eles servem aos interesses de um indivíduo particular, de um pequeno grupo de amigos. Frequentemente não passa de meia dúzia de pessoas agrupadas em torno de seu chefe vitalício. Não é assim que uma organização política deveria funcionar. Uma organização política é composta de seus membros, ela não é o instrumento de um só homem. É claro que eu gostaria de ajudar a fortalecer a organização. Se eu puder ajudar na formação de seus membros, se eu puder acompanhar a organização em seu desenvolvimento, então eu ficaria contente em servi-la. Fanmi Lavalas necessita ter mais disciplina interna; o processo democrático precisa de partidos políticos funcionando corretamente, partidos no plural. Assim, eu não dominarei ou dirigirei o partido, isso não é meu papel, mas vou contribuir no que puder. Depois de todos esses longos anos de luta e depois dos acontecimentos dos últimos anos, qual seu balanço geral sobre a situação? Você está desanimado? Otimista? Eu não estou desanimado. Você é professor de filosofia, então me permita formular minha resposta em termos filosóficos. Você sabe que nós podemos pensar as categorias do ser, seja em termos de potencial, seja em termos de ação, em potência ou em ato. Essa é uma distinção aristotélica familiar: o ser pode ser potencial ou atual. Enquanto permanecer potencial, você não pode tocá-lo, confirmá-lo. Mas é, portanto, existe. A consciência coletiva do povo haitiano, sua mobilização para a democracia, essas coisas podem não ter sido ainda inteiramente atualizadas, mas elas existem, elas são reais. Isso é o que me sustenta. Eu sou sustentado por esse potencial coletivo, a potência desse ser potencial coletivo [ser coletivo em potência]. Esse poder não tem sido ainda atualizado, ele não tem sido ainda efetivado na construção de escolas suficientes, de mais hospitais, de mais oportunidades, mas essas coisas virão. O poder é real. É o que anima a caminhada em frente. |
Carlos Augusto de Araujo Dória, 82 anos, economista, nacionalista, socialista, lulista, budista, gaitista, blogueiro, espírita, membro da Igreja Messiânica, tricolor, anistiado político, ex-empregado da Petrobras. Um defensor da justiça social, da preservação do meio ambiente, da Petrobras e das causas nacionalistas.
sábado, 6 de fevereiro de 2010
HAITI - Até que enfim foram entrevistar o Aristide.
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