Carlos Augusto de Araujo Dória, 82 anos, economista, nacionalista, socialista, lulista, budista, gaitista, blogueiro, espírita, membro da Igreja Messiânica, tricolor, anistiado político, ex-empregado da Petrobras.
Um defensor da justiça social, da preservação do meio ambiente, da Petrobras e das causas nacionalistas.
Chile, 1973: A morte como prato frio, uísque e salgadinho
Memória de um revolucionário brasileiro. Asilado na embaixada mexicana, o pavor não passa – pela própria sorte, mas também a de um povo cujo futuro escorre pelas mãos. Murais políticos são apagados. Ouvem-se tiros esparsos. O avião decola
Sempre aprendi que devemos agradecer sobretudo pelo que nos é dado de mão beijada. Antes que o embaixador se levantasse, falei-lhe, no meu melhor castellano, que, em nome de minha esposa e meu, agradecia imensamente a ele e ao governo colombiano pelo refúgio solidário que recebíamos. Sorrindo, ele disse que, caso quiséssemos agradecer ao governo colombiano, teríamos que deixar o prédio e nos dirigir a duas ou três casas mais acima, por onde havíamos passado. Ali era a embaixada do México! Respondi-lhe imediatamente que não, obrigado, quase gritando, !Y que viva Zapata!
A residência era a moradia oficial do embaixador Gonzalo Martínez Corbalá, então com 45 anos, amigo pessoal de Salvador Allende, homem de coragem e decisão, que não negou refúgio a ninguém que bateu nas portas do México, garantindo a liberdade, a vida e o caminho do exílio mais ou menos amargo para quase oitocentos desesperados, não poucos com suas famílias.
Meses mais tarde, após partir o último refugiado, da sua residência e da embaixada, Gonzalo Martínez Corbalá abandonou Santiago e o governo mexicano suspendeu as relações com Chile, durante toda a era pinochetista. Ao contrário, durante o longo período da ditadura, as embaixadas do Brasil, sob o tacão dos generais, assim como a da China, sob o comando do “Grande Timoneiro”, mantiveram relações fraternas com a ordem terrível, após manterem as portas fechadas durante o golpe.
Nara chegou no dia seguinte de nossa entrada, após estabelecer notícias conosco, para que facilitássemos sua entrada – segundo ela se lembra.
A moradia era ampla, um pequeno palacete, e estava já literalmente entupida – talvez cinquenta ou mais pessoas. Havia uma grande sala, com lareira e um piano, volta e meia tocado por algum refugiado. Em uma pequena sala havia uma televisão, em preto e branco, transmitindo notícias controladas pelo golpismo. Além disso, um ou dois quartos e, certamente, os aposentos do embaixador, de sua família e outras dependências em que não circulávamos.
Havia chilenos, argentinos, uruguaios e outros latino-americanos. Brasileiros, poucos. Era um grupo desigual, com ex-militantes, funcionários da UP e sei lá mais o quê. A solidariedade fazia-se às vezes faltar. Os quartos foram adonados pelos ocupantes. As filas dos banheiros eram enormes. Quatro ou cinco se enxugavam com a mesma toalha. Dormíamos pelo chão, bem atapetado, em cima de mesas. Creio que havia aquecimento central. As cadeiras e sofás eram guardados com zelo e cedidas com cara feia para alguém de idade ou crianças. Mas vi companheiras abrir as malas e dar peças de roupa a desconhecido necessitado.
Dois brasileiros organizaram uma “ação” e “expropriaram” algumas garrafas da adega do embaixador. Minha recriminação recebeu olhares perplexos. As discussões eram raras. Em geral, comentava-se que tudo estava perdido, antes de começar o golpe. Comunista chileno afirmava que o golpe fora devido à radicalização propiciada pelos esquerdistas.
Novos refugiados chegavam, a conta-gotas. Vi Gustav Harald Edelstam, embaixador da Suécia, alto, magro, vestido de negro, entrar na peça grande trazendo consigo o dirigente camponês trotskista Hugo Blanco, que escapara de condenação à morte no Peru, de onde fora deportado, em 1970. A imprensa golpista chilena pedia então sua cabeça.
Os não chilenos eram em parte “militantes armados” exilados no Chile. Estabeleci relações com dois simpáticos montoneros politicamente não muito ilustrados. Em uma roda, um deles, enorme, sempre alegre, e muito rústico, declarou que odiava os homossexuais. – Se vejo um “maricón”, o fodo sem pena! Um brasileiro franzino levantou-se dizendo: – Me retiro, antes que o companheiro, em abstinência, salte sobre o mais fraco de nós! O montonero recebeu um tapa na nuca do seu companheiro que não parava de rir. Perplexo, deixava compreender que não entendia por que ríamos.
A concentração de esquerdistas refugiados no Chile oferecia a possibilidade para a direita de assassinar centenas de dirigentes e “guerrilheiros” esquerdistas. Muito logo se organizaria a Operação Condor de extermínio, coordenada pelo imperialismo, com a participação do Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai.
O embaixador Gonzalo Martínez Corbalá organizou a pronta retirada dos estrangeiros, temendo invasão dos grupos paramilitares fascistas, sob as ordens dos militares. Em fins de setembro, notificou que os estrangeiros viajariam para o México. Teríamos ficado de sete a dez dias na residência diplomática. Um ônibus parou junto ou no pátio da casa. Diria sem certeza que era amarelo e que entramos por uma porta traseira.
Seríamos umas duas dúzias, incluindo a Sandra, a Nara, a mim e ao Hugo Blanco. O ônibus fez uma ou duas paradas – uma delas certamente na Embaixada mexicana, onde embarcaram diversos outros refugiados, entre eles, alguns dos brasileiros enviados para Santiago, em troca do embaixador da Alemanha, sequestrado em 11 de julho de 1970, no Rio de Janeiro.
Antes de embarcar, um oficial mexicano, bigodudo, grande e um pouco gordo, com duas enormes pistolas, teria dito que não temêssemos, ele cuidaria de nós. Se não me falha a memória, viajou conosco ao lado do motorista, junto à porta do ônibus. A viagem até ao aeroporto foi dilacerante. Era noite ou madrugada. Se escutava os tiros esparsos, dos militares ou, não raro, de franco-atiradores que esperavam a noite para disparar contra as forças golpistas. Não havia quase ninguém nas ruas.
Imitando os mexicanos, formara-se no Chile brigadas de jovens que pintavam murais nos muros, sobre múltiplos temas – o trabalho, o programa da UP, acontecimentos internacionais. A brigada do Partido Comunista se chamava Ramona Parra (BRP) e a dos socialistas, Elmo Catalánde (BEC). MAPO, Esquerda Cristã, MIR pintavam alguns muros, mais raramente, sem igual qualidade.
A BRP era a mais organizada e de obras gráficas superiores. Elas eram também conhecidas pela violência sectária contra os militantes da esquerda revolucionária, tendo assassinado o estudante mirista Arnoldo Rios, em Concepción, em dezembro de 1970, com dois tiros. Passando pelas ruas viam-se os antigos e belos murais cobertos rapidamente com tinta branca, início da tentativa encanzinada de apagamento impossível da tradição de luta chilena.
O ônibus entrou no aeroporto. Descemos e tivermos que passar por central de identificação, onde não mostramos nenhum documento, já que sob a proteção do Estado mexicano. Talvez alguma lista tenha sido entregue pela embaixada. Alguns dos refugiados sequer documentos tinham.
Lembro-me que jovens oficiais ou suboficiais da Força Aérea avançaram em direção a dois companheiros nossos, querendo registrá-los. O nosso guardião mexicano, de grandes bigodes, avolumou-se, se pôs em posição de tiro e disse qualquer coisa que não ouvi. Fantasiando, diria que rosnou: – Ni cagando, gringos! Os golpistas recuaram e passamos tranquilo. Creio que embarcamos, outra vez, até a porta do avião, com o nosso anjo Pancho Villa na porta do ônibus.
Entramos e sentamos. Mais tarde, disseram-me que era o Caravelle da Presidência de México. Talvez. O certo é que cinco aviões mexicanos fretados teriam levados os refugiados de Santiago. Comecei a me sentir, finalmente, mais tranquilo.
Seriam poltronas de quatro pois, além da Sandra, estava ao meu lado um brasileiro e sua companheira. O jovem suava às bicas. Tentei aclamar o medroso. Disse-lhe que não temesse, que já estavam fechando as portas do avião. Respondeu-me, sempre assustado, que cagava pros milicos fascistas. Tinha era medo de andar de avião! Mais tarde fiquei sabendo que participara com destaque e coragem de diversas ações militares no Brasil.
O avião levantou voo. Não quis olhar pela janelinha. Respirei tranquilo mas o vazio na barriga que sentia desde o 11 de setembro não desapareceu. E não desapareceria por longos meses. Mesmo passando o medo de ser preso, de ser torturado, de morrer, era certo que algo tivera fim em mim com o ruir do país em que decidira passar o resto de minha vida, pois jamais me sentira e sentiria tão vivo e realizado como ali, entre um povo que segurava o destino com as duas mãos.
O avião subiu, estabilizou. O comandante liberou o cinto de segurança. Algumas pessoas se levantaram para ir a toalete. E, tranquilo, relaxei ainda mais, esparramando-me na poltrona. E, subitamente, perplexo, me deparei com quadro que Nara, ontem, por WhatsApp, definiu, com pertinência, de “surreal”. Pelos corredores avançavam lindas lindas e jovens aeromoças, com elegantes chapeuzinhos e uniformes azul e vermelho, creio, com bandejas de copos de whisky, conhaque, vinho, e bandejas de delicados salgadinhos e doces. Tudo do bom e ótimo.
Não pude deixar de pensar que alguém estava nos gozando.
Trump, em minoria, tentará melar as eleições, recorrendo a milícias armadas. Mas a economia está na lona, a covid devasta o país e espalha-se, entre a juventude, a crítica ao capitalismo. O Império, em transe, enfrenta uma eleição decisiva
Publicado 30/10/2020 às 22:38 - Atualizado 30/10/2020 às 22:52
Noam Chomsky, entrevistado por C.J. Polychroniou, no Truthout| Tradução por Simone Paz Hernández
Embora ainda seja muito cedo para prever algum resultado da eleição presidencial de 3 de novembro nos eUA, Donald Trump vai ficando pra trás nas pesquisas nacionais, enquanto faz truques eleitorais sujos na esperança de derrotar o desafiante democrata, Joe Biden. Grande parte da esperança de vitória de Trump reside em sua campanha de “lei e ordem”, que promove mentiras sobre fraudes por correspondência a fim de desacreditar preventivamente os resultados eleitorais se eles forem a favor de Biden. Nesta entrevista exclusiva para o Truthout, Noam Chomsky discute o significado nacional e internacional da recusa de Trump em se comprometer com uma “transição pacífica do poder” e sua confiança em teorias da conspiração.
Noam, a quase duas semanas das eleições norte americanas mais importantes da história recente, a campanha de Trump continua a repetir a mensagem de “lei e ordem” — velha tática política na qual os líderes autoritários sempre confiaram para fortalecer seu controle sobre as pessoas e sobre o país — mas se recusa a aceitar uma “transição pacífica do poder”, se perder para Biden. Qual a sua opinião sobre esses assuntos?
O recurso à “lei e à ordem” é normal, quase reflexivo. Já a ameaça de Trump de se recusar a aceitar o resultado da eleição, não. É algo novo em democracias parlamentares estáveis.
O simples fato de essa contingência estar sendo discutida revela a eficácia da bola de demolição de Trump para minar a democracia formal. Podemos nos lembrar que Richard Nixon, não exatamente reconhecido por sua integridade, tinha alguma razão para supor que a vitória na eleição de 1960 havia lhe sido roubada devido a maquinações do Partido Democrata. Ele não questionou os resultados, colocando o bem-estar do país acima da ambição pessoal. Al Gore fez o mesmo em 2000. A ideia de que Trump possa colocar qualquer coisa acima de sua ambição pessoal — até mesmo se preocupar com o bem-estar do país — é ridícula demais para ser discutida.
Certa vez, James Madison disse que a liberdade não é protegida por “barreiras de pergaminho” — ou seja, por palavras no papel. Em seu lugar, as ordens constitucionais pressupõem boa-fé e certo compromisso, embora limitado, com o bem comum. Quando isso se esvai, é porque migramos para um mundo sócio-político diferente.
As ameaças de Trump são levadas muito a sério, não apenas em extensos comentários na mídia e jornais convencionais, mas até mesmo dentro dos círculos militares — que podem ser compelidos a intervir, como ocorre nas pequenas ditaduras, cujo modelo é o mesmo de Trump. Um exemplo marcante é uma carta aberta enviada ao mais alto oficial militar do país, o presidente do Joint Chiefs General, Mark Milley, por dois comandantes militares aposentados, mas muito renomados: os tenentes-coronéis John Nagl e Paul Yingling. Eles advertem Milley: “O presidente dos Estados Unidos está subvertendo nosso sistema eleitoral de forma ativa, e ameaça permanecer no cargo, desafiando a nossa Constituição. Em alguns meses, você terá que escolher entre desafiar um presidente fora da lei ou trair seu juramento constitucional” que exige defender a Constituição contra todos os inimigos, “estrangeiros e domésticos ”.
Hoje, o inimigo hoje é doméstico: um “presidente sem lei”, continuam Nagl e Yingling, que “está montando um exército privado capaz de frustrar não apenas a vontade do eleitorado, mas também as capacidades da aplicação da lei comum. Quando essas forças colidirem em 20 de janeiro de 2021, os militares dos EUA serão a única instituição capaz de defender nossa ordem constitucional”.
Com os republicanos do Senado “reduzidos a suplicantes” e tendo abandonado quaisquer resquícios de integridade, o general Milley deveria estar preparado para enviar uma brigada da 82ª Divisão Aerotransportada para dispersar os “homenzinhos verdes” de Trump, aconselham Nagl e Yingling. “Se você se mantiver em silêncio, será cúmplice de um golpe de Estado.”
É difícil de acreditar, mas o próprio fato de tais pensamentos serem expressos por vozes sóbrias e respeitadas — e ecoados por todo o mainstream — é razão suficiente para se preocupar profundamente com as perspectivas da sociedade estadunidense. Raramente cito o correspondente sênior do New York Times, Thomas Friedman, mas quando ele pergunta se poderia ser esta a nossa última eleição democrática, ele não está se juntando a nós, “homens selvagens a postos” — para citar o termo de McGeorge Bundy aplicado àqueles que não se conformam automaticamente com a doutrina aprovada.
Enquanto isso, não devemos ignorar como os líderes do “exército privado” de Trump demonstram seu fervor, em seu já usual terreno de implantação: o cruel deserto do Arizona — para o qual os EUA, desde Clinton, têm enviado pessoas miseráveis, que fogem da destruição que nós mesmos causamos em seus países. Esquivando-nos, assim, de nossa responsabilidade legal e moral de oferecermos a eles uma oportunidade de asilo.
Quando Trump decidiu aterrorizar Portland, no Oregon, ele não enviou os militares, provavelmente com o receio de que eles se recusassem a seguir suas ordens — como acabara de acontecer em Washington, DC. Enviou paramilitares, os mais ferozes deles: a unidade tática BORTAC, da Patrulha de Fronteira, que goza de liberdade e “rédea solta” para acabar com os “malditos da terra”.
Imediatamente, depois de cumprir as ordens de Trump em Portland, o BORTAC voltou aos seus passatempos regulares, destruindo um frágil centro de assistência médica no deserto, onde voluntários tentam fornecer ajuda médica, ou até mesmo água, a pessoas desesperadas que conseguiram, de alguma maneira, sobreviver.
Não satisfeito com este feito, o BORTAC logo voltou a suas tarefas. Talvez, quem vem enfrentando o exército particular de Trump queira saber um pouco mais sobre ele. Aqui vai um trecho de um relatório oficial da cena, oferecido pela organização humanitária No More Deaths:
Após o pôr do sol de ontem, no dia 5 de outubro, a Patrulha de Fronteira dos EUA entrou na estação de ajuda humanitária No More Deaths, em Byrd Camp, com um mandado federal, para realizar o segundo ataque noturno em dois meses. Os voluntários foram retidos por três horas, enquanto doze pessoas que estavam recebendo cuidados médicos, comida, água e abrigo contra o calor de mais de 38º Celsius foram apreendidas.
Desde a operação anterior, ocorrida em 31 de julho, a Patrulha de Fronteira recusou em várias ocasiões uma reunião com os voluntários para discutir acordos compartilhados anteriores, que defendiam o direito de fornecer ajuda humanitária. O chefe do setor de Tucson enviou aos representantes do No More Deaths uma carta formal afirmando essa recusa.
Numa grande exibição de força armada, a Patrulha de Fronteira baixou no campo com um tanque blindado, drones, um helicóptero e muitos veículos identificados e não identificados. Agentes, armados com rifles de assalto, perseguiram e aterrorizaram aqueles que recebiam cuidados, enquanto o helicóptero flanava baixo sobre eles, espalhando poeira e detritos, tornando quase impossível enxergar. A Patrulha de Fronteiras destruiu janelas, destroçou portas e destruiu infraestrutura e suprimentos. Isso ocorreu depois de ter vigiado pesadamente o acampamento e de ter patrulhado seu perímetro, criando um ambiente antagônico para os que recebem auxílios, desde a note de 3 de setembro.
Esses são os elementos profissionais do exército privado de Trump, apoiados pelas milícias armadas, que defendem doutrinas da supremacia branca — e que o FBI e o Departamento de Segurança Interna, consideram a maior ameaça doméstica dos EUA, aumentando drasticamente os crimes relacionados ao terrorismo durante os anos de governo Trump, de 20% em 2016, para quase 100% em 2019.
São essas as forças que poderiam defender a “lei e a ordem”, se, de fato, o comando militar resolver ser “cúmplice de um golpe de Estado”. Parece inimaginável, mas não inconcebível, infelizmente.
Enquanto isso, Trump e seus companheiros republicanos trabalham horas extras para implementar sua estratégia de minar a eleição ou de desacreditá-la, se tudo der errado, preparando o cenário para um possível golpe.
De modo geral, na campanha de Trump não serão poupados esforços para desmantelar as estruturas democráticas e, assim, manter o atual presidente no poder
Talvez exista algum consolo no fato de não estarmos sozinhos. Outras grandes democracias também estão ruindo, caindo nas mãos de líderes com traços fascistas, quando não assumidos ideologicamente fascistas mesmo (muitos, incluindo grandes estudiosos do fascismo, consideram esta caracterização de Trump como muito caridosa).
A maior democracia do mundo, a Índia, passou a ser dirigida por um predador da mesma estirpe de Trump, Narendra Modi, que vem destruindo a democracia secular indiana e transformando o país em uma cruel etnocracia, enquanto aproveita para esmagar a Caxemira.
A democracia mais antiga do mundo, a Grã-Bretanha, ainda nem chegou perto do trabalho de demolição de Trump, mas seu primeiro-ministro, Boris Johnson, está tentando entrar para o clube. Sua decisão de fechar o Parlamento para poder forçar sua versão do Brexit, rapidamente derrubada pela Suprema Corte, causou indignação nos círculos jurídicos britânicos, com acusações de que ele estaria minando a presunção de boa fé na qual a ordem constitucional britânica se baseou por séculos. Desde então, ele passou a violar o direito internacional — de forma assumida, mas apenas “um pouquinho” — revertendo uma cláusula crucial do acordo ao qual ele acabara de chegar com a UE, que agora processa a Grã-Bretanha justamente por essa violação.
Podemos acrescentar, também, a segunda maior democracia do hemisfério ocidental, comandada por um clone de Trump que tenta, de todas as formas possíveis, imitar seu modelo — por exemplo, procurando demitir qualquer um que investigue a corrupção e suposta criminalidade que o cerca, e que também envolve sua família. [Jair] Bolsonaro foi impedido pela Suprema Corte. Os EUA foram mais longe no caminho da autocracia. Quando os inspetores-gerais encarregados de supervisionar a má-fé do executivo seguiram o mesmo curso, o ditador da Casa Branca simplesmente os despediu. Ele conseguiu fazer isso sem um pio do Senado Republicano, que instituiu esse esforço para proteger o público, agora “reduzido à condição de suplicante”.
Talvez seja mera coincidência, mas há uma correlação notável entre os esforços dos líderes em demolir a ordem democrática e a agilização do massacre de suas próprias populações pela COVID-19. A classificação atual de casos e mortes, relatada pelo autoritário South China Morning Post (Hong Kong), é, a partir do topo:
Estados Unidos: 7.551.428 casos; 211.844 mortes
Índia: 6.835.655 casos; 105.526 mortes
Brasil: 5.000.694 casos; 148.228 mortes
Muito distante deles, são seguidos por uma democracia estelar, a Rússia: com 1.253.603 casos e 21.939 mortes. Enquanto outros são deixados em seu rastro.
Obviamente, este não é o quadro completo. É importante levar em consideração as taxas de mortalidade e outras variáveis. Mas o quadro geral e a correlação são difíceis de ignorar.
O que acontece hoje nos EUA, Índia e Brasil, não deixa de evocar memórias do início dos anos 1930 — no meu caso, amargas memórias pessoais. Uma característica comum é a adoração fanática do Líder Máximo por seus fiéis seguidores. Mas existe uma diferença curiosa. Mussolini e Hitler tinham algo a oferecer para seus adoradores: reformas sociais, um lugar ao sol. Trump esfaqueia-os pelas costas com praticamente todas as ações legislativas e executivas, e prejudica seriamente os EUA na arena internacional. O mesmo vale para seus camaradas da Índia e do Brasil.
O compromisso de Trump em causar o sofrimento máximo à população americana é impressionante de se ver. Vai muito além de seus crimes mais colossais: correr em direção ao abismo da catástrofe ambiental e aumentar drasticamente a ameaça de guerra nuclear. Em muito menos formas, mais uma vez, nenhum esforço é poupado na hora de causar graves danos ao público.
Vamos nos limitar apenas à pandemia — a menor das graves crises que a humanidade enfrenta. Existe um consórcio internacional, o Covax, trabalhando para facilitar a busca de vacinas por meio de esforços cooperativos e dar pelo menos alguma consideração aos problemas de distribuição, garantindo que vacinas potenciais e outros tratamentos estejam disponíveis para aqueles que mais precisam deles — e não monopolizados pelos ricos.
O destruidor-chefe sempre tem um pretexto: neste caso, a desculpa é a Organização Mundial da Saúde (OMS) estar envolvida; e a OMS serve a Trump como bode expiatório, enquanto ele se debate para desviar a atenção de seu massacre de dezenas de milhares de americanos.
Para além da crueldade característica na busca do interesse próprio, a sua abstinência significa que os americanos serão privados das vacinas se elas forem desenvolvidas em outro lugar — talvez, na China; que, de acordo com alguns relatos, pode estar na liderança.
Assim como em 2003, após a epidemia de SARS, os cientistas agora nos alertam para uma nova pandemia de coronavírus, provavelmente mais grave do que esta. Já discutimos antes como Trump desmantelou as proteções que existiam contra a pandemia atual, deixando os Estados Unidos particularmente despreparados. Agora, ele está buscando resolutamente o mesmo curso, e não apenas se retirando da Covax.
Atualmente, países do mundo inteiro estão participando de uma Cúpula da Biodiversidade da ONU, “para tentar retardar a rápida destruição da natureza pela humanidade”. A autoridade da ONU que lidera a convenção, Elizabeth Maruma Mrema, enfatiza que evitar outra pandemia é um alvo crucial. Ela adverte que, se quisermos evitar outra COVID, “temos que agir… ou conservamos e protegemos a natureza e sua biodiversidade, ou ela nos fará sofrer como agora.”
Mais uma vez, Trump nos ajuda fazendo mais do mesmo: recusando-se a participar.
A mídia também está ajudando neste caso. Os dois minutos citados no NPR podem ter esgotado a cobertura, como sugere uma pesquisa rápida.
Enquanto isso, a “destruição da natureza pela humanidade” prossegue rapidamente. Um importante estudo do Jardim Botânico Real de Kew, sobre a destruição da biodiversidade, descobriu que “Dois quintos das plantas do mundo estão em risco de extinção… Estamos ignorando o tesouro potencial das espécies selvagens, que oferece combustíveis, alimentos e medicamentos potenciais para a humanidade, como afirma o cientista preservacionista Colin Clubbe”.
Este estudo ganhou apenas 3 minutos de divulgação na BBC. Afinal de contas, temos que respeitar as prioridades.
A abordagem de Trump para as convenções e iniciativas internacionais, é simples: se eu não as criei, destruam-nas, alegando que são o pior negócio da história. Mas se eu o criei, é “o negócio do século”, a maior conquista da qual temos memória. E com sua câmara de eco da mídia e de suplicantes do Congresso, ele pode se safar. Coitado do país — e do mundo.
É verdade que os métodos de Trump estão chegando em algum lugar. Às vezes, acenar com o bastão traz resultados. Quando os EUA abordaram o Conselho de Segurança da ONU para exigir que renovassem as duras sanções contra o Irã, eles se recusaram com quase total unanimidade, até a Grã-Bretanha foi contrária. Mas não faz diferença. O secretário de Estado, Pompeo, ao melhor estilo Mussolini-Hitler, voltou ao Conselho de Segurança depois, para informar que as sanções da ONU já haviam sido renovadas.
Pompeo instruiu seus servos do Conselho de Segurança: “Os Estados Unidos tomaram essa ação decisiva, porque, além do fracasso do Irã em cumprir seus compromissos com o JCPOA, o Conselho de Segurança falhou em estender o embargo de armas da ONU ao Irã”. É claro que essa desobediência não podia ser tolerada pelo Adorado Líder mundial.
De maneira mais ampla, o governo Trump vem firmando com força a Internacional Reacionária chefiada por Washington, a única iniciativa geoestratégica que pode ser detectada no caos administrativo. Os principais membros são os parceiros de Trump, Modi e Bolsonaro. No Oriente Médio, eles se juntaram ao general al-Sisi do Egito, o “ditador favorito” de Trump, que levou o Egito a novas profundezas de desespero. E, é claro, as ditaduras do Golfo, chefiadas pelo estimável Mohammed bin Salman, responsável pelo assassinato brutal de Khashoggi como um de seus crimes menores. Outro membro bem-vindo é Israel, que agora mal esconde sua tendência para a extrema-direita. A recente formalização das relações tácitas entre Israel e as ditaduras do Golfo encontra seu lugar natural neste sistema. Também há outros membros, como a democracia iliberal húngara de Viktor Orbán; e, esperando nos bastidores, figuras interessantes como o italiano Mario Salvini, que celebra o afogamento de milhares de miseráveis no Mediterrâneo, não sem as contribuições da Itália para o registro genocida da Europa.
Pelo lado bom, agora, a Internacional Reacionária de Trump é combatida pela nova Internacional Progressista, que cresceu a partir do movimento Sanders nos Estados Unidos, e de uma contraparte europeia, o DiEM25 — um movimento transnacional que busca preservar e fortalecer o que é de valor na União Europeia, enquanto supera suas graves falhas. Também, atraiu uma ampla gama de representantes do Sul Global. Sua primeira conferência internacional acaba de acontecer na Islândia, da qual o primeiro-ministro é membro. Embora, obviamente, não tenha os recursos de violência e riqueza da internacional reacionária, tem a promessa de se tornar um representante do povo na guerra global de classes que está em andamento para determinar os contornos do mundo pós-pandêmico.
Como é típico entre líderes autoritários, Trump depende fortemente do uso e da promoção de teorias da conspiração; aparentemente, completamente ciente do fato de que estas intensificam a polarização política. Por que as teorias da conspiração prosperam na política e o que elas significam para a realidade política dos Estados Unidos no final da segunda década do século XXI?
Uma razão pela qual as teorias da conspiração florescem, é que as pessoas querem explicações, às vezes por curiosidade intelectual, outras vezes por razões mais pessoais e, com frequência, dolorosas. Isso é particularmente verdadeiro quando as coisas desmoronam. E tem acontecido de várias maneiras.
Considere o desastre neoliberal dos últimos 40 anos. Sua essência foi anunciada desde o início com muita clareza, tanto por Thatcher e Reagan, como por seu guru econômico Milton Friedman: Não há sociedade; os indivíduos têm de enfrentar as devastações do mercado sozinhos, sem defesa, certamente sem sindicatos — que, inclusive, deveriam ser destruídos. Os governos são o problema, prejudicados pelo fato de serem parcialmente responsivos ao público. Portanto, as decisões devem ser transferidas para mãos privadas, ou seja, o setor corporativo. E as corporações devem se dedicar exclusivamente ao auto-enriquecimento — não é um princípio da economia, mas um julgamento ético.
Existem outras nuances, mas esta é a essência. Juntando esses princípios, não é difícil tirar algumas conclusões sobre as possíveis consequências.
A Rand Corporation acaba de lançar um estudo sobre a escala dos efeitos (dificilmente inesperados). Eles estimam uma soma de $ 47 trilhões de dólares, “transferida” das classes média e trabalhadora para os super-ricos, desde a era Reagan-Thatcher-Friedman. “Roubo” pode ser um termo mais preciso.
A Rand considera como super-ricos os 10% mais ricos. Isso é enganoso. É de forma esmagadora uma fração minúscula desses. Os 0,1% do topo viram sua parcela da riqueza do país dobrar desde Reagan, para 20%.
Isso é apenas uma parte dessa história sombria, amplificada pelo radical programa de globalização e anti-trabalho de Clinton, pela austeridade pós-Thatcher, pelo resgate de Obama aos perpetradores da crise imobiliária e, também, sua rejeição à legislação para ajudar as vítimas, entre tantas outras variáveis.
Não deveria nos surpreender que a epidemia de “mortes por desespero” (suicídios, overdoses de opiáceos, etc.) que assolou os EUA, principalmente entre homens brancos em idade produtiva, esteja agora começando a assombrar a Grã-Bretanha. Nem que grande parte do mundo seja consumido pela raiva, ressentimento e desprezo pelas instituições. Isso oferece um território fértil para demagogos e vigaristas — às vezes, como Trump, altamente qualificados — que podem desfilar como salvadores da pátria e do povo, enquanto agem servilmente para seus opressores. Com ampla ajuda do sistema de informação, eles podem desviar a atenção das fontes de descontentamento popular para os bodes expiatórios padrão, explorando preconceitos e medos já arraigados. Nem há necessidade de explicar mais uma vez como isso é feito.
É num clima desses que as teorias da conspiração tendem a florescer.
Existem outros fatores a serem considerados. O mundo real é complexo. Escolha qualquer evento de sua preferência e até mesmo os relatos mais sólidos terão muitas pontas soltas, coincidências estranhas, características inexplicáveis. É por isso que os cientistas fazem experimentos, abstraindo-se radicalmente dos fenômenos observados. Novamente, isso encoraja teorias da conspiração.
Além disso, algumas das teorias podem até ter alguma validade. Adam Smith estava conscientemente exagerando quando declarou que “Pessoas do mesmo ramo raramente se encontram, mesmo que para festejar ou se divertir, mas quando ocorre, a conversa sempre termina em uma conspiração contra o público, ou em algum artifício para aumentar os preços”. Porém, ele não estava inventando uma fantasia. Isso acontece o tempo todo. Algumas dessas escapadas estão bem documentadas. Em muitos outros casos, há motivos para suspeita.
Só para citar um exemplo atual, a séria e respeitável emissora nacional alemã Deutsche Welle entrevistou recentemente o proeminente cientista político norte-americano Norman Ornstein, do American Enterprise Institute, sobre algumas ações curiosas envolvendo Trump, o Deutsche Bank e a Suprema Corte dos Estados Unidos.
Citando as palavras introdutórias:
O explosivo relatório do New York Times sobre a situação tributária do presidente dos EUA, Donald Trump, levantou algumas questões incômodas para o maior credor da Alemanha, o Deutsche Bank; a saber: por que o Deutsche Bank emprestou ao Sr. Trump 2 bilhões de dólares, quando outros bancos, incluindo todos os bancos estadunidenses, não se mostraram dispostos a fazê-lo? E embora o Deutsche Bank possa estar gerenciando os empréstimos, não podemos dizer esta noite quem ou o que está por trás desse dinheiro. Em outras palavras, não sabemos a quem pertence a dívida do presidente dos EUA, Donald Trump. E para aumentar o enigma está o papel desempenhado pelo filho de um ex-juiz do Supremo Tribunal Federal. Justin Kennedy, filho do ex-juiz Anthony Kennedy, era chefe de divisão e o contato de Trump no Deutsche Bank. Kennedy estava próximo do então futuro presidente, enquanto continuava a lhe emprestar dinheiro.
Outra parte do quebra-cabeça, como Ornstein elabora, é a aposentadoria prematura do juiz Kennedy, voto decisivo no Tribunal, permitindo que Trump nomeasse o jovem de extrema-direita Brett Kavanaugh, protegido de Justin Kennedy, para substituí-lo.
“A ótica parece péssima”, conclui Ornstein, solicitando uma investigação no Estado de Nova York, e não nos promotores federais, que agora já estão nos bolsos dos representantes legais de Trump, no que alguma vez foi conhecido como o Departamento de Justiça.
Em suma, em um pântano fétido, as teorias da conspiração florescem e algumas podem acabar tendo uma influência considerável no mundo que os sistemas de poder estatal e privado criaram.
Depois de “A República das Milícias”, de Bruno Paes Manso, fica difícil acreditar que será possível mudar o Brasil em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político a partir das urnas de 15 de novembro
Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi morta, em março de 2018.
O livro, construído partir de entrevistas com autoridades penitenciárias e policiais, além de lideranças do PCC e de associações comunitárias, pretendia ser um alerta para os pressupostos da política de segurança pública que, na previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia do ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.
O livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos sobre o crime organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento em massa de São Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de gerência da cúpula da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos índices paulistas de homicídio.
Um mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso sentiu-se atropelado pela história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da República. Com a eleição de Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar a pensar em outro livro. Desta vez, para contar como a cultura da violência miliciana, travestida em apelo da lei e da ordem, havia se transformado na expectativa majoritária de redenção do eleitorado nacional.
O resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro” (Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com entrevistas em profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades policiais, lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma sensibilidade aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do Rio em contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de duas décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Até então, sua incursão de mais fôlego no Rio havia sido durante a cobertura que fizera, para “O Estado de S. Paulo”, da intervenção policial no Morro do Alemão durante o governo Sérgio Cabral, em 2007. Nas pesquisas para o livro foi descobrindo um clientelismo que, ao contrário daquele que observara em São Paulo, não havia enfrentado a concorrência do sindicalismo industrial ou das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. É ao entrar em Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio, que o autor encontra a chave para entender o fenômeno exportado para o resto do Brasil com a eleição de 2018.
Fora da caixinha dos estereótipos, encontra uma comunidade em tudo diferente da Copacabana decadente em que costumava se hospedar. Vê uma comunidade barulhenta, jovem, com letreiros chamativos a anunciar de médicos a lojas de lingerie e restaurantes de sushi. A pujança mostrava o dinheiro posto em circulação pelas milícias, que, em parceria com a polícia, se tornara donas de parte dos negócios despojando receita do poder público e das grandes empresas de gás, luz, transporte e internet sem precisar desperdiçar com armamentos como nas favelas comandadas pelo tráfico.
A comunidade é parte da jurisdição do 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio, o mesmo em que o sargento Fabrício Queiroz e o capitão Adriano da Nóbrega se conheceram. O livro reconstitui a ficha criminal que construíram juntos sob a proteção da família Bolsonaro e do Tribunal de Justiça do Rio.
Bruno Paes Manso descreve uma Rio das Pedras marcada pelo coronelismo dos imigrantes nordestinos, apesar de o primeiro chefe local se chamar Octacílio Bianchi e o maior beneficiário político da propagação de seu modelo de empreendedorismo ser um paulista de Eldorado que levou seus modos bandeirantes para a Presidência da República.
Foi 1964 que deu às comunidades milicianas seu DNA. Com o golpe, a violência e a tortura policial se aproximaram dos porões da ditadura e, juntos, enterraram a utopia de nação que o Rio encarnava, com a sofisticação da bossa nova e a genialidade do samba de morro. O livro escolhe o capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras em 1962, como símbolo da aliança entre bicheiros e policiais endossada pelo regime.
Guimarães era protegido de oficiais envolvidos com o terrorismo de Estado que marcaria a derrocada do regime. Com o planejamento de explosões em Agulhas Negras e numa adutora da capital fluminense, o capitão Jair Bolsonaro se filiaria a esta linhagem. Com a abertura, a entrada do insubordinado capitão na política se daria pela legitimação dos crimes da polícia. “Em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além do limite em nome do ‘cidadão de bem’”, diz Bruno.
As milícias, porém, não se beneficiaram apenas da proteção e das condecorações dos Bolsonaro, mas da vista grossa que lhe fizeram todos os governantes do Rio, de Leonel Brizola a Moreira Franco, passando pelo ex-prefeito Cesar Maia, que fez de Rio das Pedras um curral de votos para a eleição do seu filho, Rodrigo, hoje presidente da Câmara dos Deputados.
Com as Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas pelo ex-governador Sérgio Cabral, o tráfico foi expulso da zona sul, para limpar o cenário da Copa e da Olimpíada. Nesse período, também se espraiaram as associações entre traficantes e milicianos. Esta sociedade prosperou com o propósito de combater o Comando Vermelho, organização nascida no presídio de Ilha Grande do convívio entre presos comuns e políticos na década de 1970.
A explosão da violência causada por esses conflitos e a busca do governo Michel Temer por uma marca positiva levou à intervenção militar no Rio, marcada, logo no seu primeiro trimestre, pelo assassinato de Marielle Franco. Bruno Paes Manso levanta as hipóteses para o crime sem cravar em nenhuma delas – provocação aos militares para mostrar quem manda no Rio, reação às denúncias da vereadora contra a violência policial e retaliação ao então deputado estadual, hoje na Câmara dos Deputados, Marcelo Freixo. O deputado teve uma atuação desabrida na Assembleia Legislativa, da CPI das Milícias aos esquemas, comandados pelos caciques locais do MDB, de distribuição de propinas de empresários de transportes.
A única aposta do autor é no poder do jogo de dissimulações envolvidas, que passa até mesmo por telefonemas forjados entre suspeitos que se sabiam grampeados para incriminar inimigos. Foi a reação de um deles, Orlando Curicica, miliciano preso por homicídio e associação criminosa, que levou à prisão de Élcio Queiroz e Ronnie Lessa. A partir dos relatórios a que teve acesso, Bruno Paes Manso descreve as manobras contra a elucidação do crime que ruma para mil dias sem a prisão de seus mandantes.
A chegada ao Palácio da Guanabara de Wilson Witzel, outro paulista emigrado para o Rio pelo sonho de uma carreira nas Forças Armadas, reincorpora à polícia civil e militar, com status de secretarias, personagens afastados desde os governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.
A queda de Witzel, que, de aliado, virara desafeto da família Bolsonaro, e a posse do vice, Claudio Castro, promove alguns desses personagens. Alan Turnowski, por exemplo, passa de braço direito a secretário de Polícia Civil, com o apoio da família do presidente da República. Em outro depoimento de Curicica ao qual o repórter Allan de Abreu, da revista “Piauí”, teve acesso, Turnowski e o atual secretário da Polícia Militar, Rogério Figueredo, são detalhadamente acusados de ligação com as tiranias paramilitares que ocupam a cidade. Ambos negaram as imputações à revista.
O pacote de rearranjos acordados entre o novo governador do Rio e os Bolsonaro ainda passa pela substituição do procurador-geral do Ministério Público do Rio, José Eduardo Gussem, cujo mandato acaba em dezembro. É Gussem quem tem, em grande parte, garantido a autonomia da investigação do esquema de rachadinhas no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. A negociação que está em jogo na substituição de Gussem por um nome de interesse da família presidencial passa pelo atendimento das demandas do governador em relação à Superintendência da Receita Federal e à Polícia Federal.
A presença de Castro no governo do Estado é a blindagem com a qual a família Bolsonaro conta como anteparo à ascensão do ex-prefeito Eduardo Paes (Democratas) ou da delegada Marta Rocha (PDT), que substituiu Turnowski na chefia da Polícia Civil, em 2011. Paes e Marta aparecem nas pesquisas como os mais cotados para o lugar do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente. É cedo para dizer se a ascensão de um ou outro à Prefeitura levará o DEM ou o PDT, dois anos depois, ao Palácio da Guanabara. Os grupos políticos de ambos pagaram pedágio às milícias quando estiveram no poder, mas não exerceram o poder em nome delas.
Como mostrou o Mapa dos Grupos Armados do Rio, 57% da área da cidade está hoje sob domínio das milícias. Esse avanço se deu ao longo de um governo federal que flexibilizou o porte e afrouxou o controle de comercialização e sob administrações locais que lhes franquearam espaços.
A República das Milícias, retratada por Bruno Paes Manso, chegou ao poder com Bolsonaro, mas o extrapola. Está entranhada no dia a dia das comunidades, dos serviços de transporte público às licenças de construção, cujos despachantes, nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras, serão definidos pelas urnas em 15 de novembro. Depois de ler o livro, fica difícil acreditar que seja possível mudar o país em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político.
"O Brasil regrediu a 1968, depois a 1964, e agora a 1936: Viva la muerte!”, escreve Maria Rita Kehl, psicanalista, jornalista, escritora e autora, entre outros livros, de Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (Boitempo), em artigo publicado originalmente na revista Socialismo & liberdade, Nº. 30.
“É noite. Sinto que é noite/ não porque a treva descesse/ (bem me importa a face negra)/ mas porque dentro de mim/ no fundo de mim, o grito/ se calou, fez-se desânimo// Sinto que nós somos noite/ que palpitamos no escuro/ e em noite nos dissolvemos/ Sinto que é noite no vento/ noite nas águas, na pedra/ E de que adianta uma lâmpada?/ E de que adianta uma voz?” – (Carlos Drummond de Andrade, “Passagem da Noite”, em A rosa do Povo, 1943-45).
Nós, humanos, nos acostumamos com tudo
Melhor: com quase tudo. Há vida humana adaptada ao frio doÁrtico e ao sol doSaara, à mata Amazônica ou o que resta dela assim como às estepes russas. Há vida humana em palacetes e palafitas, em academias de ginástica e UTIS de hospital. E o pulso ainda pulsa. Há pessoas sequestradas por psicopatas durante décadas, há meninas e meninos estuprados pelo tio ou pelo patrão da mãe. Sem coragem de contar, porque podem levar a culpa pelo crime do adulto. E o pulso ainda pulsa.
Mas o Brasil – tenham dó! – tem caprichado no quesito do horror já faz tempo. Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante mais de trezentos anos! E depois da abolição naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados: jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer. Pensem bem: o fazendeiro que explorava a mão de obra de, digamos, dois mil escravizados, ao se ver obrigado a pagar um salário de fome (até hoje?) aos que se tornaram trabalhadores livres, iria fazer o quê? Ficar no prejuízo? Claro que não.
Decidiram forçar ainda mais o ritmo de trabalho de uns duzentos ou trezentos mais fortes e mandar os outros para o olho da rua. Sem reparação, sem uma ajuda do governo para começar a vida, sem nada. Daí que naturalizamos também um novo preconceito: os negros são vagabundos. Quando não são ladrões. Ou, então, incompetentes. Não são capazes de aproveitar as oportunidades de progredir, acessíveis a todos os cidadãos de bem.
Até hoje moradores de rua, pedintes e assaltantesamadores (os profissionais moram nos Jardins ou em Brasília) são identificados pelos vários tons de pele entre bege e marrom. É raro encontrar um louro entre eles. O mesmo vale para os trabalhadores com “contratos” precários: todos afrodescendentes. Achamos normal. A carne mais barata do mercado é a carne preta. Para não cometer injustiças, nesse patamar estão também muitos nordestinos que chegaram à região Sudeste como retirantes de alguma seca. Às vezes acontece alguma zebra e um deles vira presidente da República. Cadeia nele.
Naturalizamos duas ditaduras, que se sucederam com intervalo democrático de, apenas, 19 anos entre elas. Daí que naturalizamos as prisões arbitrárias também. “Alguma ele fez!” – era o nome de uma série satírica do grande CarlosEstevão, na seção Pif Paf da antiga revista Cruzeiro. A legenda era o comentário covarde de pessoas de bem, que observavam um pobre coitado apanhando da polícia ou arrastado pelos meganhas sem nenhuma ordem (oficial) de prisão. Naturalizamos a tortura também, para sermos coerentes. Afinal, ao contrário dos outros países do ConeSul, fomos gentis com “nossos” ditadores e seus escalões armados. Não julgamos ninguém. Quem morreu, morreu. Quem sumiu, sumiu. Choram Marias e Clarices na noite do Brasil.
Daí que naturalizamos também – por que não? – que nossas polícias, findo o período do terror de Estado, continuassem militarizadas. Como se estivessem em guerra. Contra quem? Oras: contra o povo. Mas não contra o povo todo – alguns, nessa história, sempre foram menos iguais que os outros. Os pobres, para começar. Entre eles, á claro, os negros. Esses elementos perigosos para a sociedade, cujos antepassados não vieram para cá a passeio. Aprendizes do período ditatorial prosseguiram com as práticas de tortura nas delegacias e presídio. De vez em quando some um Amarildo. De vez em quando um adolescente infrator é amarrado num poste, pela polícia ou por cidadãos de bem.
Tolerantes, mas nem tanto
Mas calma aí, nem tudo se admite assim, no jeitinho brasileiro: que uma presidenta mulher tenha sido eleita em 2010 já foi uma grande concessão. Pior, uma presidenta vítima de tortura no passado – bom, se ela não nos lembrar disso a gente pode deixar pra lá. Mas a coisa vai além: uma presidenta mulher, vítima de tortura no passado, que resolve colocar em votação no Congresso – e aprovar! – a instauração de uma Comissão da Verdade??? Aí também é demais.
Por isso mesmo achamos normal que um capitão reformado (alguma ele fez?) tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando, durante uma audiência pública, o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período. Parece que isso se chama quebra de decoro parlamentar, mas os colegas do provocador não quiseram ser intolerantes. “Brasileiro é bonzinho”, como dizia uma personagem representada por KateLyra no antigo programa Praça da Alegria.
Por isso, também achamos normal que a tal presidenta, que provocou os brios das pessoas de bem ao instaurar uma comissão para investigar crimes de lesa humanidade praticados naquele passado esquecido, tenha sofrido impeachment no meio do segundo mandato. Seu crime: “pedaladasfiscais”. Parece que antes de virar crime essa era uma prática comum e, às vezes, até necessária, e se constitui em antecipações de pagamentos por parte de bancos públicos para cobrir déficits do tesouro, reembolsáveis mais adiante.
Não é muita regalia para um filho de retirantes, torneiro mecânico, líder sindical? Um que tentou três vezes e se elegeu na quarta, com uma prioridade na qual até então ninguém tinha pensado: tirar o Brasil do mapa da fome… Que pretensão. Pior é que, durante algum tempo, conseguiu a façanha com a aprovação de uma lei que instituiu o Bolsa Família – essa, cujo usufruto, aliás, algumas famílias devolviam ao Estado, em prol de outros mais necessitados, tão logo conseguiam abrir um pequeno negócio, como um pequeno salão de beleza, um galinheiro, uma videolocadora…
Algumas dessas famílias chegaram a cometer o grande abuso de comprar passagens aéreas para visitar seus parentes espalhados pelo Brasil. As pessoas de bem às vezes reagiam. Não foi só uma vez que, na fila de embarque, ouvi o comentário indignado – esse aeroporto está parecendo uma rodoviária! Esse horror de conviver com pobres dentro do avião nunca foi naturalizado.
Além disso, o tal presidente persistente, por meio do Ministro da Educação, Tarso Genro, conseguiu aprovar pelo ProUni um programa de bolsas para alunos carentes. Entre estes, muitos trabalhavam na adolescência para ajudar as famílias e tinham menos tempo para estudar do que os candidatos das classes médias e altas. Outra lei provocativa foi a que instituiu as cotas para facilitar o acesso às universidades de jovens de famílias descendentes de escravizados.
Ana Luiza Escorel, professora da UFRJ, contou uma vez em conversa informal que os cotistas, no curso ministrado por ela, eram com muita frequência os mais empenhados. Faz sentido: a oportunidade de fazer um curso superior faria uma diferença muito maior na vida dos cotistas do que dos filhos das classes médias e altas. Esse mundo está perdido, Sinhá! Diria Tia Nastácia, que Emília chamava de “negra beiçuda” (credo!) nos livros de MonteiroLobato.
Então, em 2018…
… naturalizamos, por que não?… as chamadas fake news. Até hoje, em alguma discussão política com motoristas de táxi – esses disseminadores voluntários ou involuntários de notícias falsas – eu me exalto quando o sujeito não quer nem ouvir que eu conheço o Fernando Haddad desde que ele era apenas o jovem estudante de Direito, filho de um comerciante de tecidos. Foram 80 diferentes fakenews contra ele e sua candidata a vice,Manuela d’Ávila, na 1ª semana depois do 1º turno. A série das mentiras começou com um suposto apartamento de cobertura num prédio de alto padrão – o que não seria crime algum, se comprado com dinheiro obtido pelo morador. Só que o apartamento em que a família Haddad morava na época era de classe média, não de alto padrão. A mentira seguinte era a posse de uma Ferrari – com motorista!
Se fosse verdade, seria uma ostentação pra lá de brega. Segue o circo de horrores: acusação de estupro de uma criança de doze anos; de ter em seu programa de governo o projeto de lançamento de um “kit gay” (?) nas escolas e de instituir “mamadeiras de piroca” (?) nas creches públicas. Por fim, a pior das notícias: o candidato do PT teria baseado seu projeto de governo num decálogo leninista em defesa da guerrilha. Hein??? Foi o coroamento de uma sequência de absurdos que só não foram cômicos porque o Judiciário deixou passar impune … e nos condenou a um final trágico.
Aqui estamos, pois. O tal apologista da tortura se tornou presidente do país. No segundo ano de seu mandato, apandemia de coronavírus chegou ao Brasil. O machistaintrépido, que afirmou ter tido uma filha mulher depois de três filhos homens porque fraquejou, achou que uma boa medida em prol da saúde de seus governados seria insultar o vírus. Começou por chamar o dito cujo de gripezinha. Para provar que estava com a razão, compareceu e continua a comparecer a manifestações de apoiadores sem usar a máscara protetora. Continua a fazer essas aparições demagógicas semanais, com chapéu de cowboy (hein?), cuspindo perdigotos amorosos entre os eleitores. O narcisista só consegue olhar o outro pela lente de sua autoimagem. Se ele teve o vírus e nem foi hospitalizado, por que essa frescura de máscaras e luvas? Coisa de boiola.
E os que não têm pão? Que comam bolo…
E já que ninguém está olhando, que tal liberar as florestas para o agronegócio? A Amazônia arde, o Pantanal queima. O vice-presidente também faz pouco caso. Para um governo cujo Ministro da Saúde recusou a entrega de remédios para populações indígenas, os incêndios na mata onde várias etnias vivem e de onde tiram seu sustento são uma espécie bem-vinda de fogo amigo. A Amazônia, maior bioma do mundo, não se regenera quando incendiada. O que não virar pasto um dia vai produzir um matinho secundário mixuruca. Amazônia, nunca mais? A economia, ou melhor, o lucro do agronegócio, tem segurado a moral da tropa governamental.
Por outro lado, a inexistência de políticas públicas para amparar os milhões de trabalhadores desempregados e comerciantes falidos atingidos pela pandemia tem despejado diariamente milhares de brasileiros para morar nas ruas. OsR$ 600 responsáveis pelo aumento da aprovação do presidente evitam que alguns morram de fome. Os que já estão nas ruas não têm como se cadastrar para receber o auxílio. A situação dessas famílias é agravada pelo fato de que, durante o lockdown, pouca gente circula na rua.
Agora, aqueles que já sofriam a humilhação de ter de suplicar por uma moeda ou uma xícara de café com leite para aquecer o corpo, já não têm mais nem a quem pedir. As ruas, na melhor das hipóteses, estavam quase desertas porque muita gente respeitava o isolamento social. Agora, quando em São Paulo o surto deu uma pequena recuada, os “consumidores” voltaram a circular, mas com medo até de olhar nos olhos do morador de rua faminto. Contornam seus corpos sem olhá-los nos olhos: para se pouparem de algum mal-estar moral? Ou será que de fato não os veem?
Por uma razão ou por outra, devemos admitir que, sim, naturalizamos o horror. Com o lockdown é mais fácil ficar em casa e não olhar para o que se passa além da porta. É um dever cívico. A não ser… a não ser quando a moçada se cansa e resolve lotar as praias. Ou apostar tudo numa balada animadíssima, cheia de gente num lugar fechado – dançando, compartilhando copos de cerveja, gritando, soltando e aspirando perdigotos. O Brasil regrediu a 1968, depois a 1964, e agora a 1936: Viva la muerte!