FONTE: DCM
A história da funcionária da Receita Federal que sumiu com o processo de sonegação da Globo.
A história da funcionária da Receita Federal que sumiu com o processo de sonegação da Globo.
ESTA REPORTAGEM ESTÁ SENDO REPUBLICADA A PROPÓSITO DA CAMPANHA EM QUE A GLOBO ASSUME TER O MONOPÓLIO DA COMUNICAÇÃO NO BRASIL — “100 MILHÕES DE UNS”
Esta é a terceira reportagem da série sobre o processo de sonegação fiscal da Globo. É parte de um projeto de crowdfunding do DCM. As matérias anteriores estão aqui. De onde veio isso, tem mais.
Quando o processo da Globo desapareceu no posto da Receita Federal em Ipanema, no dia 2 de janeiro de 2007, o Leão teve que se mexer.
Uma sindicância interna pegou um bagrinho, a funcionária pública Cristina Maris Ribeiro da Silva, agente administrativa, o cargo mais modesto da carreira na Receita Federal.
Mas, ao identificar Cristina, topou com um esquema de fraude gigantesco. Por trás do bagrinho, estão tubarões do empresariado brasileiro.
Cristina era dona da senha que abre os portões da sonegação e fecha os olhos do Leão. Literalmente.
Retirar o processo da Globo dos escaninhos da Receita foi a ação mais ousada de Cristina. Mas o que a sindicância apurou é que ela tinha uma intensa atividade criminosa, contra os interesses do Fisco.
A sindicância se desdobrou em processos judiciais e Cristina soma, até agora, pelo menos sete condenações, uma delas na ação pelo desaparecimento do processo de sonegação da Globo.
Em praticamente todas as varas federais criminais do Rio de Janeiro, há pelo menos uma condenação com o nome de Cristina, todas ligadas ao Fisco, todas iniciadas depois do desaparecimento do processo da Globo.
Lendo um dos processos, descobre-se, pela informação de uma procuradora da república, que, depois das condenações, Cristina mudou o nome.
Quando flagrada dando sumiço no processo, ela se chamava Cristina Maris Meinick Ribeiro. Hoje, seus documentos trazem o nome Cristina Maris Ribeiro da Silva.
A mudança dificultou a pesquisa que realizei nos arquivos da Justiça Federal, mas, uma vez localizados os processos, o que se descortina é uma história que alguns poderiam entender como assombrosa.
Cristina já foi condenada por emissão de CPFs novos para pessoas com nome sujo na praça. Delito pequeno, comparado ao que fazia no Comprot, o sistema informatizado que registra os dados dos processos físicos em tramitação na Receita.
Ela não tinha poderes para criar novos processos, mas podia modificá-los.
Num processo em que um taxista carioca pedia isenção do IPI para um carro novo, ela mudou os dados da ação. Tirou o nome do taxista, João Pereira da Silva, e colocou o da empresa Cor e Sabor Distribuidora de Alimentos Ltda.
Também alterou a natureza do processo. Em vez da isenção de IPI, passou a constar crédito tributário para a empresa.
A Cor e Sabor Distribuidora de Alimentos, que é a maior fornecedora de quentinhas para os presídios do Estado do Rio de Janeiro, obteve assim declaração de compensação tributária e, em consequência, a certidão negativa de débito, necessária para celebrar contratos com o poder público.
Depois de cinco anos, a homologação da compensação se torna automática, ainda que o processo físico nunca tenha existido, e as informações colocadas no sistema sejam fictícias.
Em outro processo, uma pequena empresa, a Ótica 21, pediu seu reenquadramento no Simples, mas, com a inserção de dados falsos, se transformou num caso de compensação tributária em favor da Cipa Industrial de Produtos alimentares Ltda., dona da marca Mabel.
O Ministério Público Federal denunciou o presidente da empresa, Sérgio Scodro, como mandante do crime e pediu sua prisão preventiva, depois que os oficiais não conseguiram localizá-lo para entregar uma intimação.
A Justiça negou a prisão e, mais tarde, retirou seu nome do processo, por entender que a ação de Cristina não tinha produzido os efeitos pretendidos.
Não foi o que aconteceu no processo em que a Megadata, que faz parte do grupo Ibope, foi denunciada por crime semelhante.
Até o presidente da empresa, Homero Frederico Icaza Figner, sócio da Carlos Augusto Montenegro, foi condenado.
Homero tem o prenome e um dos sobrenomes (Icaza) de um antigo consultor de pesquisas da Globo, o panamenho Homero Icaza Sanchez, conhecido como El Brujo, morto em 2011.
Em 2013, o outro Homero Icaza, também envolvido com o negócio das pesquisas, foi condenado, inclusive pelo artigo 171 (estelionato), juntamente com Cristina.
Porém, um habeas corpus trancou o andamento da ação e um despacho do Tribunal Regional Federal determinou a extinção da punibilidade.
O processo tramitou na Segunda Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro.
No Judiciário, as condenações dos empresários acusados de contratar os serviços de Cristina estão caindo uma a uma, por decisões de tribunais superiores. Já as condenações da ex-funcionária pública se acumulam.
Mas não se pode dizer que o Ministério Público Federal tenha deixado de ser rigoroso com os empresários.
Exceto num caso, o do sumiço do processo de sonegação da Globo.
Os proprietários da emissora nunca foram chamados a depor, e não houve tentativa para apurar o mandante (ou mandantes) do crime.
Lendo o processo, o que se vê é que ela agiu por conta própria, embora a cronologia indique uma ação coordenada para beneficiar a Globo.
No dia 16 de outubro de 2006, o auditor fiscal Alberto Sodré Zile conclui sua investigação e autuou a Globo em mais de 600 milhões de reais, incluindo juros e multa, por sonegar os impostos que deveriam ser pagos na aquisição dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002.
Ao mesmo tempo, ele assina uma representação para que o Ministério Público Federal denuncie os donos da emissora por crimes contra a ordem tributária.
Zile qualifica os responsáveis pelo que ele considera crimes. Dá nome, endereço e número de documento dos irmãos Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho.
No dia 7 de novembro, um advogado da emissora recebe cópia de todo o processo, com a notificação da multa e a representação para fins penais.
No dia 29 de novembro, a emissora apresenta recurso a uma instância superior da Receita.
Num texto de 53 páginas, a defesa da Globo tenta desqualificar o trabalho de Alberto Sodré Zile, mas os três auditores da Delegacia de Julgamento não concordam.
Rejeitam a apelação, no julgamento realizado em dia 21 de dezembro.
No dia 29 de dezembro, o processo volta para o posto da Receita em Ipanema para que, dali, siga para a execução, incluindo o envio para o Ministério Público Federal.
É uma sexta-feira, e Cristina está de férias.
Na terça-feira seguinte, 2 de janeiro, o primeiro dia útil depois da remessa do processo, a agente administrativa vai ao escritório, embora ainda estivesse em período de férias, e sai de lá com dois volumes mais o apenso que compõem o processo.
A Receita abre sindicância para apurar desaparecimento e chega até Cristina.
Com o fim da investigação de caráter administrativo, manda cópia ao Ministério Público, com a comunicação do crime. Os procuradores a republicam a denunciam.
Em janeiro de 2013, Cristina Maris Meinick Ribeiro é condenada.
Mas quem foi o mandante do crime que ela cometeu?
O processo não tem nenhuma indicação de mandante (ou mandantes), embora o maior beneficiário do crime seja amplamente conhecido, a Globo, que paralisou um processo que tinha endereço certo: o Ministério Público Federal.
Em seus depoimentos, Cristina negou que tenha subtraído o processo, apesar dos testemunhos contrários.
Chegou a dizer que nem se lembrava de ter estado no escritório.
Nos processos que Cristina responde por beneficiar sonegadores, o padrão de defesa é o mesmo: seus advogados apresentam receitas médicas, para dizer que ela tomava remédios psiquiátricos e que, se cometeu algum erro, foi “num momento de ausência”.
Os advogados alegam que a ex-funcionária teve síndrome de pânico, mas o laudo médico que juntaram num dos processos é de 2008, posterior à época do crime.
Seus advogados apresentaram extratos bancários para dizer que Cristina não teve vantagem financeira, e informaram que ela vivia “de favor” no apartamento da mãe.
Uma procuradora contestou as informações com o argumento de que o dinheiro poderia estar na conta de outras pessoas. E outras vantagens poderiam estar ocultas.
O apartamento que ela diz ser da mãe é na avenida Atlântica, um dos metros quadrados mais caros do Brasil, e vale, segundo corretores, mais de 4 milhões de reais.
A mãe de Cristina, Vilma Meinick Ribeiro, não é nenhuma milionária.
Em 1971, segundo uma publicação do Diário Oficial da União, era datilógrafa no Ministério da Fazenda.
Por coincidência, um posto equivalente ao que Cristina viria a ocupar na Receita Federal, órgão do Ministério da Fazenda, vinte anos mais tarde e no qual permaneceu por quase trinta anos, até perder o cargo em consequência de uma das sentenças condenatórias.
Eu estive lá e, como era de se esperar, não fui recebido.
Em seu Facebook, Cristina tem uma foto recente, em que aparece num restaurante segurando uma taça. Tem também uma foto de rosto e duas de um cachorrinho.
Apresenta-se como aposentada e não faz nenhuma indicação de que tenha pertencido aos quadros da Receita.
Quem mandou Cristina sumir com o processo de sonegação da Globo?
Algumas pistas podem ser encontradas em outros processos nos quais Cristina aparece e já foi condenada.
O advogado Darwin Reis Martin, que tem escritório de contabilidade e consultoria tributária no centro do Rio, é um nome recorrente nas ações.
Ele aparece em algumas denúncias do Ministério Público Federal como o advogado contratado por empresas que, mais tarde, acabariam se beneficiando da ação fraudulenta de Cristina.
Segundo as denúncias, o papel dele seria fazer mover a mão de Cristina no interior da Receita.
Em um dos casos, Darwin aparece como intermediário entre os empresários Arthur César Menezes Soares e Eliane Pereira Cavalcante, sócios do Grupo Facility.
Em agosto deste ano, Arthur e Eliane foram condenados por fraude no sistema da Receita Federal, juntamente com Cristina.
A condenação de Arthur pela fraude no sistema da Receita ainda não foi publicada no Diário Oficial, mas Arthur se tornou bastante conhecido no Rio de Janeiro depois que o jornal O Globo, em março de 2010, publicou reportagem de uma página em que o chama de Rei Arthur.
Segundo o texto, Rei Arthur, “amigo íntimo do governador Sérgio Cabral”, tinha os maiores contratos com a administração pública estadual, coisa de R$ 1,5 bilhão.
A matéria teve desdobramento, com a notícia de que deputados se movimentavam para criar uma CPI em razão da aparente ilegalidade no aditamento de contratos.
O jornalista Dácio Malta escreveu em seu blog, o “Alguém Me Disse”, que o assunto depois sumiu do noticiário e o jornal publicou uma carta do governo do Estado “maior que a reportagem”, para dizer que as acusações eram infundadas.
O deputado Anthony Garotinho, ex-governador do Rio, inimigo declarado da Globo, escreveu também que Rei Arthur era quem mais se beneficiava das denúncias veiculadas no Fantástico que execravam concorrentes do Grupo Facility, na mesma linha da série atual “Cadê o Dinheiro que Estava Aqui?”.
Essas publicações na internet que vinculam o Rei Arthur à TV Globo são anteriores à descoberta de que, de fato, ambos têm um nome comum na Receita Federal.
Num momento, Cristina Maris insere dados falsos no sistema para ajudar o Grupo Facility. Em outro momento, posterior, faz sumir o processo de sonegação da Globo.
Pode ser tudo coincidência, mas, no que diz respeito à Globo, a investigação parou na funcionária pública. Já o Rei Arthur teve seu nome lançado no rol dos culpados juntamente com o de Cristina.
A segunda instância pode derrubar, como tem feito em outros casos, mas hoje eles estão no mesmo barco, quer dizer, na mesma lista.
A ligação do nome de Cristina Meinick a uma das maiores empresas de comunicação do mundo não teria vindo a público não fosse o advogado Eduardo Goldenberg, carioca da Tijuca.
Ele publicou em sua conta no Twitter a informação de que o processo de sonegação havia desaparecido da Receita.
Goldenberg informou o número do processo e o nome de Cristina, que depois foram parar em blogs e sites da internet.
Não foi a primeira vez que Eduardo constrangeu a Globo.
No ano 2000, durante um festival de música da emissora, ele foi entrevistado ao vivo pela repórter Renata Ceribelli e gritou: “Faz um 12, Brizola!”
Eduardo Goldenberg conta que planejou a cena quando estava em casa, se arrumando para ir ao festival, quando soube que a apresentação de sua amiga Beth Carvalho havia sido vetada pela Globo.
“Ela faria o encerramento do festival, mas tinha começado o horário eleitoral na TV e Beth Carvalho cantava o jingle do ‘Velho’ (é assim que se refere a Brizola).”
A chance de ser entrevistado era uma em alguns milhares, mas, no intervalo da apresentação, Eduardo se viu diante da repórter, que perguntou o que ele achava do festival e estendeu o microfone.
“Faz um 12, Brizola!”.
“A Globo sempre ferrou o Brasil, e não me arrependo do que fiz”, afirma.
Iniciou-se assim uma amizade com Brizola, que quis conhecê-lo. Hoje, quando fala das vezes em que esteve com o ex-governador do Rio, se emociona.
Numa das últimas vezes, numa reunião de amigos, encontrou também Beth Carvalho.
“Foi a única vez que vi o Velho beber e ficar um pouco alterado. Ele até cantou”, recorda.
Brizola, acompanhado por violão, silenciou a todos com os versos “felicidade, foi-se embora e a saudade no meu peito ainda mora…”
Quando fala de como soube do processo da Globo, é um pouco vago. “Eu sabia que existia o processo e, como sou advogado, pesquisei”, afirma.
Eduardo deu outras notícias quentes em seu twitter. Anunciou, em primeira mão, que o senador Aécio Neves havia sido parado numa blitz da lei seca.
Também escreveu que Soninha Francine tinha parentes empregados no governo do Estado de São Paulo.
“Já publiquei coisas a pedido de amigos”, admite. “Se é por uma boa causa, eles sabem que podem contar comigo, e pedem para eu colocar uma notinha”.
Não fosse a sua conta no twitter, Cristina seria apenas uma anônima caminhando pela calçada de Copacabana.
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