sábado, 19 de outubro de 2019

POLÍTICA - O JN é uma gracinha.

DESNUDANDO A MÍDIA

Eliara Santana: JN naturaliza Brasil desigual, 104 milhões sobrevivem com R$ 413 por mês


18/10/2019 - 15h01

por Eliara Santana*
Jornal Nacional sempre usou muito bem o silenciamento como política editorial
Silenciamento não é censura, é uma estratégia sutil, inteligente e muito bem elaborada de manipulação.
É um conceito discutido por Eni Orlandi (muitíssimo bem, aliás) e já falei sobre ele algumas vezes aqui. O esquema é mais ou menos assim:
 X    <––– ACONTECIMENTO –––>   Y                                                         
Há um acontecimento que não pode ser totalmente negligenciado pela imprensa.
Ele não pode ser “censurado” numa sociedade pretensamente democrática. Mas, ele pode ser “silenciado”, ser dito de outro modo.
Então, o jornal diz X daquele acontecimento para não ter de dizer Y, toca em alguns aspectos para não focar em outros, diz UMA coisa para não dizer OUTRAS.
A forma do dizer, o “tom” escolhido para pintar o acontecimento vai “domesticar” o sentido, o significado, direcionando a percepção dos espectadores e formatando as sensações (incômodo, otimismo, raiva).
Num exemplo concreto, vamos tomar o caso da desigualdade, o assunto que ressurge após os dados alarmantes divulgados pelo IBGE no dia 16.
A edição do JN não ignorou o tema, nem era possível fazê-lo, mas  trabalhou muito bem na construção do silenciamento, dando tons diferentes a uma questão que é gravíssima.
A reportagem foi a nona a ser exibida na edição, vindo depois de outras quatro de economia (com viés bem positivo).
O texto inicial de Bonner apresentou o problema, temporalmente inscrito: “O IBGE mostrou que a desigualdade aumentou no Brasil no ano passado. De toda a renda do país, 40% estão concentrados nas mãos de 10% da população”.
Números que indicam um cenário, mas que não são capazes de dar uma exata dimensão da situação, pois os percentuais são muito mais difíceis de serem compreendidos.
O que significa, claramente, o dado “40% de toda a renda do país”?
Além disso, falar em “aumento” é bem diferente de dizer “bate recorde”.
Como se trata de um assunto muito ruim, então, ele precisa de um colorido para que os efeitos de sentido não sejam tão devastadores para o público.
Assim, a reportagem mostrou que há de fato desigualdade, mas não inseriu o problema numa perspectiva histórica, dos agentes causadores desse estado de coisas, como fruto de uma política econômica que está destruindo o país.
Tampouco mostrou os números que poderiam dar a dimensão da inaceitável e vergonhosa situação do Brasil:
104 milhões de brasileiros vivem com 413 reais por mês
10,milhões de brasileiros vivem com  51 reais por mês
60,4 milhões de brasileiros vivem com 269 reais por mês
Imaginem o efeito para os espectadores, no cenário de uma economia que não decola, se a primeira chamada do JN, na voz de Bonner, fosse: “MAIS DE 100 MILHÕES DE BRASILEIROS SOBREVIVEM COM APENAS 413 REAIS POR MÊS”. Só imaginem.
Mas, ao contrário, a reportagem nos mostrou  “gente que faz força, aperta o cinto e não para de sonhar”.
Os trabalhadores ouvidos deram o testemunho de que não desanimam, como se isso fosse o suficiente para acabar com a desigualdade.
Nos depoimentos, a confiança, o otimismo: “Pode estar ruim hoje, ruim amanhã, mas eu estou aqui. Eu vim pra guerra, vim pra vencer”.
Todos prontos para batalhar, todos de alto astral. Ninguém se deixando abater, ninguém triste, pelo contrário.
Ou seja, a desigualdade é transformada num DESAFIO PESSOAL, ela não é um PROBLEMA ESTRUTURAL num sistema capitalista selvagem.
A desigualdade como fenômeno existe na bancada do JN sem responsáveis por ela.
A concentração de renda foi mostrada pelo jornal – com quadros e números para dizer que os mais ricos viram sua renda aumentar 8,3% -, mas os sujeitos que concentram renda não apareceram. Quem são eles?
A desigualdade foi de certa forma dimensionada na edição, foi citada na reportagem, com os números sendo mostrados: a renda do 1% mais rico da população equivale a 33,8 vezes a renda dos 50% mais pobres.
Mas, ela não foi “revelada”, escancarada, construída simbolicamente, traduzida para o público.
Dizer que o Índice de Gini subiu não tem o menor efeito. Números não dizem por si, e a economia não é um tema dominado pelo público. Mas dizer que metade da população sobrevive com 413 reais por mês teria um efeito simbólico enorme.
E a construção silenciada da desigualdade no JN tem diversos elementos interessantes, por exemplo:
1: Os trabalhadores ouvidos e mostrados na tela (com nome no quadro e um sorriso no rosto) recebem de R$ 1200 a R$ 2500 por mês.
Portanto, ninguém que recebe abaixo do salário mínimo. Simbolicamente, o grupo mostrado é mesmo ilustrativo da realidade de desigualdade do Brasil? Por que não entrevistar alguém que sobrevive com  R$ 413 por mês?
2: Ninguém que perdeu o Bolsa Família foi ouvido. Aliás, não há qualquer referência aos cortes nos programas de transferência de renda e ao impacto desses programas.
3: Nenhuma imagem de miséria e pessoas nas ruas foi mostrada. Nenhuma. As imagens mostradas são positivas – de dificuldade, mas de luta.
Para fechar a reportagem, uma mensagem otimista.
A professora aposentada (que acredita que um dia o Brasil vai melhorar) contratou seu Jorge (um senhor que faz carreto e “leva qualquer coisa”) para transportar a geladeira nova.
Seu Jorge, 59 anos, 13 filhos, é descrito pela reportagem como “um brasileiro que encara qualquer desafio para pagar as contas”.
Sorridente, com uma cara muito boa, seu Jorge diz: “Não peço nada a ninguém para sustentar eles, sustento eles com meu suor, graças a Deus” – e a imagem congelada é de braços musculosos fortes e um sorriso pleno no rosto.
Se, portanto, nós brasileiros encaramos qualquer desafio, como o personagem seu Jorge, vamos superar mais esse – não importando se o salário é aviltante, se a diferença entre os maiores e os menores salários é uma vergonha, se os juros bancários são indecentes,  se o lucro dos banqueiros bate recordes, se quem tem helicóptero não paga imposto, se a política econômica é um desastre… nada disso importa, porque nós vamos encarar qualquer desafio e pagar as contas. Assim é o brasileiro, e a desigualdade é apenas um detalhe na nossa história.
Pensando nos efeitos de sentidos e no impacto dessas construções, vamos imaginar que o JN tivesse levado o conceito de “desigualdade” de outra forma para o público.
Poderia, por exemplo, mostrar que num país em que 104 milhões de brasileiros vivem com 413 reais por mês (o que dá R$ 13,76 por dia), os bancos e os banqueiros tiveram um aumento absurdo no lucro, pois os juros bancários no Brasil são os maiores do mundo.
A reportagem poderia ainda mostrar imagens, cenas de miséria, de famílias pegando comida em lixão (o que voltou a acontecer), de pessoas amarguradas procurando emprego, de mães sem comida para dar aos filhos. E o outro lado, dos lugares de muito luxo, do judiciário que acumula auxílio moradia, do aumento da cota para compra em free shop.
Mostrar que os brasileiros “não param de sonhar” não é escancarar o quadro de desigualdade. É modalizar. É pintar a desigualdade com cores aceitáveis – quase como algo que acontece naturalmente no rumo natural de uma sociedade.
É fingir que é normal um país em que 104 milhões de pessoas operam o milagre de sobreviver com 413 reais por mês.
*Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.

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