quinta-feira, 1 de outubro de 2020

POLÍTICA - "Adoeceu de Bolsonaro".

 *ADOECEU DE BOLSONARO*

(Fernando Tenório)
Estava conversando com um paciente que é militar sobre o isolamento social e as dificuldades de quem - como ele - mora sozinho. Lá pelas tantas, perguntei ao homem como estava fazendo para manter contato com os amigos e ele respondeu:
*- Não tenho tido contato com meus amigos.*
- Mas é importante manter alguma relação com as pessoas próximas, manter essa solidão em todos os âmbitos pode não fazer bem - retruquei.
*- Aí que mora a minha questão, pois eu já não os reconheço mais. Não sei se são tão próximos.*
- Como assim?
*- Adoeceram de Bolsonaro, cara. Não sei se você votou nesse homem, mas ele entrou na cabeça das pessoas feito doença.* Lá no trabalho virou uma coisa estranha. Ele parece ser um familiar das pessoas. Elas o defendem com unhas e dentes. O que ele fala vira verdade de forma instantânea.
O rapaz continuou falando sobre as dificuldades de estar em um meio no qual não se reconhece, afirmando que evita dar seus posicionamentos no ambiente militar:
*- A minha resistência é o silêncio.* Não pode falar de política nas forças armadas, no entanto se for para falar bem do Bolsonaro, pode. Então lá eu não me pronuncio. *Eu reconheço quem pensa parecido comigo pelo silêncio. Quem cala não consente nesse caso.* Quem cala não foi infectado por essa doença.
- E você trata isso como doença por quê?
- Porque, como em algumas doenças mentais, não há argumento lógico que dê conta. *Eu tentei conversar com amigos, parentes e todos ficam agressivos quando confrontados com as contradições.* Parece um transe coletivo.
Continuamos conversar e eu falei que ele deveria ter outros amigos além do trabalho. Foi quando o militar sorriu laconicamente e disse:
*- Estou cercado por todos os lados.* Meus amigos de adolescência foram feitos na igreja evangélica que eu frequentava desde a infância. Quer dizer, que eu ainda frequento. Todos doentes de Bolsonaro também.
- E como se deu isso?
- O pastor de lá, sempre foi um cara do bem, e assumiu o voto no atual presidente e foi reproduzindo ‘fake news’ nos grupos, postando coisas que abalavam a nossa fé. *Foi adoecendo e adoecendo outros. Ficou duro, rígido, odioso e beligerante.* Fez arminha com a mão no culto.
- Sério?
- Sério. Cada vez ele inflamava uma parcela da igreja com as notícias falsas. Eram tantas que cada pessoa ou grupo ia se identificando com uma. Não demorou para que a simpatia ao Bolsonaro fosse menor do que o ódio a quem se dizia progressista, de esquerda, feminista... *Muita gente votou por ódio e isso não dá em boa coisa.* Eu entrei nesse lugal de ser odiado por ser "esquerdista", simplesmente por não ter contraído essa "doença".
- E você se posicionou?
- Eu tentei e em alguns grupos trouxe informações verdadeiras conflitando com as do pastor, mas logo fui retirado da liderança da banda da igreja e excluído de alguns grupos. Ninguém me procurou. Senti o peso do que é ter um pastor contra você. *Fui sendo evitado pelas pessoas, meus amigos começaram a me ver como um perigo.*
- Mas você ainda frequenta?
- Não sei dizer direito. Hoje vou mais pela força do hábito e pela culpa. Desde quando uma das salas foi liberada para um grupo sobre terraplanismo pudesse debater, vi que ali não era o lugar de amor que eu idealizei a vida toda. *Eu fiquei decepcionado não com Deus, mas com o que fazem em nome dele. Aí silenciei e não participo mais da coletividade que era o que me dava a noção de pertencimento. Eu vou, oro sozinho, e volto pra casa.*
Tentei fugir daquele discurso duro e que não deixava margem para apontamentos e provoquei:
- Seus pais frequentam essa igreja também. Você os encontra? E sua família também adoeceu de Bolsonaro?
- Essa é a minha maior tristeza. Meu pai adoeceu e levou minha mãe junto.
- Como foi isso?
- Meu pai era meu maior orgulho. Começou a vida como engraxate e foi para vida militar. Sujeito boa praça que chegava aqui nos botecos no subúrbio e era amado. Torcedor do Bangu, fazia uma fé no bicho, tinha papo sobre tudo. Era da igreja, mas sabia fazer críticas e vivia feliz.
- Era?
- Sim. Ele adoeceu de Bolsonaro em 2018 e virou o avesso do que era. Ficou triste, com uma linguagem toda estereotipada de "esquerdalha", “esquerdopata”, "globolixo", "volta AI-5". *Virou um zumbi e não questiona nenhuma conduta do cara.* Compartilha tudo que chega contra a esquerda, PT, Lula ... Não importa se é verdade, ele já vai postando ou compartilhando sem nenhuma crítica. Eu não consigo mais conversar com ele. Esse é o único assunto. Perdeu alguns amigos e só vive nos grupos bolsonaristas de Whatsapp e virou um ditador em casa. Foi por isso que fui morar sozinho.
- E sua mãe?
- Era uma senhora bondosa. Gostava muito de ir à igreja e fazer caridades. Todo mundo gostava dela, porém virou aquelas coroas que vai de verde e amarelo para Orla de Copacabana pedir a volta da ditadura militar. Uma professora que pede a volta da ditadura. Logo ela que sofre com uma em casa...
O paciente seguiu falando que *as vezes não reconhecia as pessoas que ele jurava conhecer tão bem.* Do nada, começou a chorar e disse:
*- Eu só queria meus pais, meus amigos e minha igreja de volta. Eu queria que essa doença passasse de uma vez e a gente pudesse voltar a conversar sobre tudo. Eu queria poder discordar sem me sentir mal ou odiado por isso.* Eu queria gritar um gol do Bangu com meu pai, fazer uma feijoada com a minha mãe ou fazer um som com meus amigos. Eu queria trabalhar sem medo de ser perseguido por meu silêncio diante do ufanismo da maioria. *Vai demorar, mas estou esperando que eles voltem desse transe.*
Tá tudo tão triste!
(Fernando Tenório é psicanalista, professor adjunto do Departamento de Psicologia da PUC)
Via Neri Perruda

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