segunda-feira, 6 de maio de 2024

Análise de um genocídio lucrativo.

 

Análise de um genocídio lucrativo

Palestina é vítima de uma colonização bélica. Exportação de armas está aquecida e vários países, como EUA e Alemanha, alimentam o terror, sem penalizações. Mas as ruas de todo mundo começam a questionar a conivência do Ocidente com os crimes de Tel Aviv…

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Somos todos colonizados. É uma triste constatação, embora real. Por mais poder econômico tenha determinado país, ele estará submetido a alguma pressão maior, interna ou externa. O exemplo dos Estados Unidos, que se autoproclama o país mais democrático no mundo ocidental, apresenta fortes rachaduras no tecido social, que estão crescendo. As alianças que os governos dos países assumem vinculam sua política e afetam suas decisões internas e sua população. Embora haja uma representatividade formal pela delegação da vontade popular, os representantes nem sempre cumprem as propostas de sua eleição. Parte importante da política envolve o orçamento e sua aplicação, oriundos dos tributos dos contribuintes. E o povo acompanha pouco os fatos políticos e nem tem acesso aos bastidores onde atuam as forças dos lobbies de grupos. Mas, em casos extremos, o povo se organiza e reage.

A colonização pode ser evidente sob a estratégia política adotada pelos governos. A grande imprensa transmite as notícias e na sua apresentação exerce o poder de formar a opinião pública. Quando nessas transmissões trabalha para acobertar privilégios, está colonizando as ideias. O atual sistema neoliberal/globalização econômica representa em si a colonização de países, de povos e seus segmentos. A liberdade individual é limitada pelas condições adversas impostas pelo sistema onde a crescente concentração de renda criou pirâmides de riqueza e de poder em seu topo, em detrimento da crescente vulnerabilidade da maioria em sua base. A financeirização do lucro das atividades econômicas contribuiu essencialmente na concentração do capital financeiro retirando o impulso de setores produtivos mais importantes. Junto ao capital financeiro o braço armado do capitalismo neoliberal exerce seu lobby e cria alianças convenientes entre alguns países fornecedores e exportadores de armas.

Nos últimos seis meses da grave situação atual de assassinato de milhares de civis palestinos pelas forças de Israel, crescem reações no Parlamento de vários países contra o envio de armas e também nos Estados Unidos contra o gasto de mais verbas em ajuda financeira e militar para aquele país. O confronto das ideias desafia a narrativa de “democracia”. Surgem mistificações e versões de narrativas, de significados, para defender determinadas pautas e criar condenação pública. No caso, o lobby do governo de Israel insiste em criar deturpação em termos. Ilan Pepe, historiador israelense, distingue bem o significado de “antisionismo”, que é crítica à política do Estado de Israel, inclusive na ação avassaladora contra os civis palestinos -, enquanto “antissemitismo” é perseguição racial contra judeus, sendo este termo abolido nas manifestações de modo geral e claramente pelos intelectuais, inclusive judeus. A forma de reação das forças de segurança dos governos perante as críticas e ao direito de manifestação e de expressão, acompanha esses desvios de interpretação e revela os embates pela democracia real em alguns países: é sintomática a reação policial mais violenta em países que mais exportam armas.

O Stockholm International Peace Research Institute – SIPRI (Instituto de Estocolmo para a Paz Mundial) é um instituto internacional independente, criado em 1966, dedicado a implementar a paz e faz investigações sobre conflitos, armamento, controle de armas e desarmamento. O SIPRI atualizou em março de 2024 a base de dados sobre transferências de armas abrangendo a maioria dos países de todos os continentes. Protagonizando o atual momento, os Estados Unidos lideram os gastos militares (US$ 877 bilhões em 2022) e Israel está no 14º lugar (em 2022 US$ 23,4 bilhões, 4,5% do PIB, US$ 522 bilhões) i(CNN, 2022).

Sobre este Relatório, Christoph Hasselbach (2024)ii, correspondente estrangeiro e analista de política internacional do jornal DW, escreveu que o negócio de armas rende cada vez mais (DW, 2024). Entre 2019 e 2023, os dez principais países exportadores de armas são: EUA (42,0%), França (11,0%), Rússia (11,0%), China (5,8%), Alemanha (5,6%), Itália (4,3%), Reino Unido (3,7%), Espanha (2,7%), Israel (2,4%) e Coreia do Sul (2,0%). As exportações de armas pelos Estados Unidos aumentaram 17% para 107 países diferentes; Alemanha está em quinto lugar sendo o Oriente Médio seu principal destino. Os maiores fornecedores de armas para Israel são: EUA 65,60%; Alemanha 29,70%, e Itália 4,70% (SIPRI – transferências de armas 2013-2023 (Ibrahim, 2024)iii. O mercado aglutina interesses políticos.

A política de transferência de armas convencionais dos EUA(United States Conventional Arms Transfer Policy) insere-se no contexto dos objetivos da sua política externa, conforme o “National Security Memorandum/NSM-18, EUA”iv, de 23/02/2023, Seção 1: “Os objetivos de política externa e de segurança nacional dos Estados Unidos são mais bem alcançados se se facilitarem as transferências de armas para agentes de confiança que as utilizem de forma responsável e que partilhem os interesses dos Estados Unidos. Esta política reconhece que, quando não é utilizado de forma responsável, o material de defesa pode ser utilizado para violar os direitos humanos e o direito humanitário internacional, aumentar o risco de danos a civis e prejudicar os interesses dos Estados Unidos”. No texto, sob Seção 2, estão nomeados alguns países concorrentes estratégicos dos EUA: “Assegurar que as forças armadas dos Estados Unidos mantenham vantagens tecnológicas sobre os adversários atuais e potenciais e promover a vantagem comparativa dos Estados Unidos sobre os nossos concorrentes estratégicos, incluindo a Rússia e a China”. (sublinhei)

São dados a corroborar a opinião de Pepe Escobar, jornalista investigativo brasileiro, independente, e correspondente de várias publicações internacionais, a respeito da política externa e bélica dos EUA, ao afirmar que: “na cabeça dessa plutocracia, manter a hegemonia militar é intimamente ligado com manter a hegemonia financeirav(Escobar, @pepecafe).

Os próprios lobbies de grandes corporações ou de países junto a outros governos representam ações colonizadoras do país onde atuam, pois visam impor o poder de seu interesse. Em geral, esses lobbies são conhecidos por entidades ou por jornalistas que se dedicam a essa investigação e escapam ao controle da população.

O ataque do braço armado do Hamas a vários pontos do sul de Israel levantou uma questão histórica perante o mundo. Conforme descreveu Jeremy Bowen, editor internacional da BBC sobre o Oriente Médio desde 1989 e autor de livro sobre a regiãovi, “Israel foi pego de surpresa pela operação mais ambiciosa que o Hamas já lançou a partir de Gaza. (…) O Hamas violou o muro que separa Gaza de Israel em vários lugares no ataque transfronteiriço mais sério que Israel enfrentou em mais de uma geração” (reportagem de 7/10/2023). Diante das afirmações do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, previa uma forte reaçãoe isto, de fato, aconteceu. No mesmo dia, Bowen reportava que Israel tentava retomar controle de áreas atacadas pelo Hamas e buscar reféns. Mostrava um mapa da Faixa de Gaza e de Israel com as incursões do Hamas no território israelense.vii

As narrativas da grande imprensa foram imediatas, unilaterais, repetitivas e careciam de uma cobertura mais profunda com dados de contrainformação. A imprensa alternativa procurava se inteirar dos fatos e os profissionais da imprensa na Faixa de Gaza tentavam passar informações do local dos fatos; no entanto, muitos profissionais foram assassinados pelas Forças de Defesa de Israel, apesar da identificação visível: “Imprensa”.

Algumas reações imediatas do mundo ocidental condenavam a ação do grupo Hamas, do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell; do primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak; presidente francês, Emmanuel Macron, da ministra de Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock; da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. O presidente dos Estados Unidos Joe Biden reafirmou o expresso apoio a Israel: “O apoio da minha administração à segurança de Israel é sólido e inabalável“.

A reação imediata das Forças de Defesa de Israel (FDI) foi avassaladora, mas seguiu matando milhares de palestinos civis, ultrapassando os limites de reação aos ataques do Hamas de 7 de outubro. Contra essa violência, os advogados do Center for Constitutional Rights – CCR emitiram um sério alerta ao Presidente Joe Biden, ao Secretário de Estado Antony Blinken e ao Secretário da Defesa Lloyd Austin num extenso documento. Katherine Gallagher, advogada sénior da CCR e representante legal das vítimas na investigação pendente do Tribunal Penal Internacional na Palestina, falou ao jornal The Intercept: “Os bombardeios em massa de Israel e a negação de alimentos, água e eletricidade são calculados para destruir a população palestina em Gaza (…). As autoridades americanas podem ser responsabilizadas por sua incapacidade de impedir o genocídio de Israel, e também por cumplicidade, incentivando-o e apoiando-o materialmente.” (Speri, 2023)viii.

Josep Borell, já citado, diante dos abusos das forças de defesa e da intransigência do primeiro ministro Netanhahu de Israel em suspender os ataques aos palestinos civis, declarou no Parlamento Europeu em Bruxelas, Bélgica, em 18 de março de 2024, que: “Gaza era, antes da guerra, a maior prisão a céu aberto. Hoje é o maior cemitério a céu aberto. Um cemitério para dezenas de milhares de pessoas e também o cemitério para muitos dos mais importantes princípios da lei humanitária”. (Reels, surya.a.m, áudio original)

Em parte de seu Relatório (25/3/2024), a Relatora Especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967, Dra. Francesca Albanese, sob o título Anatomia de um Genocídio, reporta a definição de genocídio, pela Convenção sobre Genocídio, como “qualquer um dos atos [especificados] cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal.” Explicitou no relatório dados revoltantes: o exército israelita usou mais de 25.000 toneladas de explosivos (o equivalente a duas bombas nucleares) em inúmeros edifícios, destruindo bairros inteiros e infraestruturas essenciais, muitos identificados como alvos pela Inteligência Artificial; munições não guiadas (“bombas burras”) e bombas “bunker buster” de 2000 libras em áreas densamente povoadas e “zonas seguras”; as vítimas: por dia, nas primeiras semanas, cerca de 250 pessoas, incluindo 100 crianças; matou milhares de outras pessoas que fugiam por rotas indicadas por Israel, 125 jornalistas, 340 médicos e profissionais de saúde, além de professores acadêmicos.ix Entre as Conclusões: “A natureza e a escala avassaladoras do ataque de Israel a Gaza e as condições de vida destrutivas que infligiu revelam a intenção de destruir fisicamente os palestinos enquanto grupo. O presente relatório considera que existem motivos razoáveis para crer que foi atingido o limiar que indica a prática dos seguintes atos de genocídio contra os palestinos em Gaza: matar membros do grupo; causar lesões corporais ou mentais graves a membros do grupo; e infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física total ou parcial. Os atos genocidas foram aprovados e concretizados na sequência de declarações de intenção genocida emitidas por altos responsáveis militares e governamentais” (item 93).

Apesar da situação extrema de falta de alimentos e de medicamentos na Faixa de Faza, o lobby dos Estados Unidos e de Israel dificultou a saída da “Flotilha da Liberdade”.x Além da pressão dos Estados Unidos e da Alemanha sobre o governo da Turquia, por último o governo de Israel pressionou Guiné-Bissau a retirar sua bandeira em algumas das embarcações, criando impedimento burocrático de cumprimento das leis internacionais de navegação marítima de país responsável pela embarcação. Segue a busca para outro país assumir esta responsabilidade. O bloqueio de Israel para mais uma ajuda humanitária para a Faixa de Gaza fortalece a conclusão da Dra. Albanese de que o Estado de Israel comete atos de genocídio contra os palestinos.

O lobby das armas é um colonizador muito forte como suporte bélico do capitalismo enfurecido: atropela os valores humanos e as convenções internacionais. Perdem a razão e a proposição da doutrina Biden de garantir a democracia ocidental diante de seu apoio ao genocídio cometido pelo governo de Israel. O inconformismo contra esta situação gerou inúmeras manifestações organizadas por segmentos da população em vários países armamentistas, exigindo a interrupção do envio de armas para Israel, e nas manifestações por estudantes de grandes universidades dos EUA acrescentou a pauta de cessar investimentos das universidades em empresas de fomento de guerra de Israel.

Cresce a percepção da promiscuidade, sob o manto de democracia, do aparelhamento da máquina pública de países e mesmo em atividades universitárias com o lobby dos interesses dos colonizadores pelas armas. Estamos num momento histórico do atual paradigma de democracia, pela falta de transparência e pelo desgaste dos discursos, e que exige maior envolvimento coletivo. Será que estamos preparados?


Nota:

i CNN, Israel investe US 23 bilhões em aparato militar, o equivalente a 4,5 do PIB do país em 2022. https://www.cnnbrasil.com.br/economia/israel-investe-us-234-bilhoes-em-aparato-militar-o equivalente-a-45-do-pib-do-pais-em-2022/

ii HASSELBACH, Christoph. “Relatório SIPRI: Negócio de armas rende cada vez mais”. DW, 12/3/2024.https://www.dw.com/pt-002/relat%C3%B3rio-sipri-%C3%A1frica-importa-menos-armas-mas-neg%C3%B3cio-global-rende-mais/a-68499365

iii IBRAHIM, Soha. Os números da guerra em Gaza que completa 6 meses. BBC News Arabic, 6 abril 2024 https://www.bbc.com/portuguese/articles/clwe05xqjxno

iv Memorandum on United States Conventional Arms Transfer Policy, 23/02/2023. https://www.whitehouse.gov/briefing-room/presidential-actions/2023/02/23/memorandum-on-united-states-conventional-arms-transfer-policy/

v ESCOBAR, Pepe. “Qual é a essência da política externa dos EUA?” Shorts @pepecafe.

vi BBC News Brasil. Israel tenta retomar controle de áreas atacadas pelo Hamas e busca reféns; o que se sabe até agora. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c517xedpr9no.

vii BOWEN, Jeremy. “Como foi o mais surpreendente ataque do Hamas contra Israel”, BBC. 7 de outubro de 2023. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw9v3rxdj94o. Os lugares nomeados no mapa: Ashkelon, Ponto de Checagem Erez, Sderot, Base Militar Nahal Oz, Base Militar Reím, Ofakim, e a distância de 5 km a contar da fronteira da Faixa de Gaza.

viii SPERI, Alice. The INTERCEPT. Going All-In for Israel May Make Biden Complicit in Genocide. 19/10/2023. https://theintercept.com/2023/10/19/israel-gaza-biden-genocide-war-crimes/

ix COMMISSION ON HUMAN RIGHTS UNO. ALBANESE, Francesca. Anatomy of a Genocide. Report of the Special Rapporteur on the situation of human rights in the Palestinian territories occupied since 1967, Francesca Albanese, A/HRC/55/73 Human Rights situation in Palestine and other occupied Arab territories, Unedited version, 25/3/2024.No Relatório: “Milhares de pessoas foram mortas por bombardeios, por franco-atiradores ou em execuções sumárias; milhares de outras foram mortas enquanto fugiam através de rotas e em áreas declaradas “seguras” por Israel. As vítimas incluíam 125 jornalistas e 340 médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde (quatro por cento do pessoal de saúde de Gaza), estudantes, acadêmicos, cientistas e seus familiares. (…) Um quarto da população de Gaza pode morrer de problemas de saúde evitáveis no espaço de um ano”.

x “Flotilha da Liberdade” composta por várias embarcações, que iria sair do porto de Istambul, na Turquia, com destino a Gaza, onde mil voluntários de 30 países iriam zarpar e levar seu apoio, sua ajuda profissional e, quem sabe arriscando suas vidas, entregar 5,5 toneladas de alimentos e medicamentos essenciais para o povo palestino, carente de tudo.

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