quarta-feira, 27 de julho de 2011

CARTA DE UMA BRASILEIRA NA NORUEGA.

''A Noruega é o país cor de rosa, lembram?'' Carta de uma brasileira na Noruega

“Se existe uma coisa boa nisso tudo é que os racistas de plantão precisarão repensar um pouco a frase 'nem todo muçulmano é terrorista, mas todo terrorista é muçulmano' e outras posturas. As pessoas precisam entender que o problema não é a religião”. O comentário é de Renata Barros, designer, residente em Oslo, em carta publicada pelo portal da Época, 26-07-2011.

Eis a carta.

Queridos amigos

Queria agradecer pelos emails carinhosos que recebemos, pelas ligações, pelo amor que vocês mandaram de todos os lugares. Vocês não imaginam o quanto isso é importante, independentemente de bomba, de malucos, de tristeza, mas principalmente quando a gente se sente tão frágil numa situação como esta. Aqui a coisa anda meio casca, todo mundo ainda tentando entender, digerir o que aconteceu.

A Noruega é o país cor de rosa, lembram? Ninguém aqui é acostumado a ter medo. Ninguém tem medo de ser assaltado, não tem medo de ter seu espaço privado invadido, de sofrer violência. E o tal Anders detonou uma bomba enorme que destruiu 4 ou 5 prédios de ministérios, conseguiu ter o sangue frio de assassinar 68 adolescentes que, provavelmente, estavam se sentindo seguros por estar tão longe.

As histórias que lemos na mídia, os relatos dos adolescentes que sobreviveram são chocantes, tristes, apavorantes. Meninos e meninas de 16, 18 anos que se fingiram de mortos debaixo dos corpos de seus amigos, os que se barricaram dentro de uma casa e viam pela janela seus amigos serem assassinados. Todas as noites, quando vou dormir, essas imagens ficam passando pela minha cabeça. É tudo tão absurdo! Que mundo é este?

Eu não acredito em guerra. Não daria minha vida por causa alguma. Já tive discussões intermináveis com amigos que trabalham no Exército sobre a importância da guerra quando necessária para se manter a paz. Eu entendo, logicamente, mas acho que é porque não consigo ir pro macro da guerra, para mim cada pessoa é um universo enorme de outras pessoas e a vida é preciosa demais. Uma ou 76 pessoas mortas, cada uma delas tem pai, mãe, amigos, trabalho, um mundo de amor do lado. Acho chocante que inocentes percam a vida por um motivo estúpido, por uma causa da qual eles são tão alheios, que eles não escolheram, nunca escolheriam.

O louco passou nove anos escrevendo um manifesto, que contém mais de mil e quinhentas páginas. Calculou tudo perfeitamente. Começou a tratar seu corpo como uma máquina. Estudou a quantidade exata de esteroides que não o deixariam ter medo, sem diminuir a potência e viciar seu corpo. Citou as verduras e legumes que precisou comer para contrabalançar o uso dos remédios.

Explicou com detalhes a facilidade (e que facilidade!) que teve para fazer a bomba. Previu tudo. Inclusive o atual momento. De acordo com seu documento, o massacre é apenas um meio para que ele consiga se tornar um “mártir”, alguém com “um palanque para o mundo”. E, de fato, o assassino pediu que seu julgamento fosse a portas abertas. Um certo dilema para um país que sempre prezou pela liberdade dos direitos: deixamos ele conduzir o seu plano e respeitamos o seu direito de cidadão, ainda que arriscando que outros malucos se inspirem? Ou fechamos a porta, ignoramos seus direitos e impedimos que este louco fale com mais gente? Ainda bem que fecharam a porta, sob o argumento oficial de que ele dizia ter cúmplices do lado de fora.

Apesar de todo seu cálculo, o plano do assassino tem uma falha. Ela reside justamente num ponto: esse moço é psicopata e não entende, de fato, a realidade. Ele acredita que o que fez foi cruel, mas necessário, ele acredita que iniciará uma revolução, que a matança será entendida, será replicada. Em seu manifesto, ele diz que o momento mais difícil pelo qual ele passará será quando for pego. Ele “precisa não se curvar, não se enfraquecer”.

Sinceramente, acredito – e espero – que ele não consiga inspirar mais pessoas e, pelo contrário, talvez faça alguns extremistas de direita repensar sua responsabilidade e influência sobre mentes doentias. A propósito, um dos bloggers no qual ele se inspirou – e que cita várias vezes no manifesto – fez ontem uma declaração pública de que o atirador é um “psicopata violento”. O editor de um dos sites de extrema direita no qual ele era um participante ativo deu uma declaração pública de que, mesmo com o direito de liberdade de expressão, talvez seja importante que sites assim tenham algum tipo de edição, ou cuidado, pelo menos.

Se existe uma coisa boa nisso tudo é que os racistas de plantão precisarão repensar um pouco a frase “nem todo muçulmano é terrorista, mas todo terrorista é muçulmano” e outras posturas. As pessoas precisam entender que o problema não é a religião. O problema é o extremismo. Então sem essa de dizer: “ah, o cara é cristão!” O cara é muitas coisas, mas foi a loucura que o fez cometer os atentados. Infelizmente, tolerância, busca por entendimento, paciência, nesses nossos tempos, são ouro.

Eu estava a quatro quarteirões da bomba, meu prédio chacoalhou, janelas quebraram nos primeiros andares. Eu achei que o prédio fosse desabar, desci as escadas na maior velocidade do mundo. Muito estranho ver um pânico coletivo, pessoas correndo, chorando, ninguém entendendo o que acontecia. Deixa a gente se sentindo desabrigado, desprotegido.

Mas problema pequeno, o meu. Tenho alguns dos meus queridos perto de mim, e todo dia de manhã deito por alguns minutos entre meu marido e minha filha e sinto o maior amor do mundo. Falo com meus pais e minhas irmãs e sinto tudo de bom. Vejo o que meus amigos fazem e me encho de orgulho. Recebo o carinho dos daqui também e me sinto sortuda e feliz.

Tudo isso me faz querer escolher os problemas reais. Deixar o que não importa de lado.

Beijos a todos



Fonte:IHU

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