sábado, 31 de maio de 2008

CINEMA - Pela porta dos fundos.

Neste mundo desigual, onde a maioria dos que foram criados "à semelhança divina" sobrevive condenada à dessemelhança humana, surpreende o olho cinematográfico de Walter Salles. Ele entra pela porta dos fundos, lá onde se encontram os deserdados, os anônimos, os que padecem a vida. Seu mais recente filme, "Linha de Passe", mereceu este ano, em Cannes, o prêmio de melhor atriz concedido à Sandra Corveloni.

Quem é esta atriz, em que telenovela atuou, indaga o público acostumado ao brilho de elencos globais. Em "Linha de Passe", dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, Sandra representa Cleuza, mulher pobre da periferia em luta para salvar os quatro filhos da exclusão social.

Onde está a porta de saída para quem não escolheu a miséria nem teve a sorte de ser premiado pela loteria biológica e nascer entre o terço da humanidade situado acima da linha da pobreza? Se em nosso país a educação escolar figura apenas como direito constitucional e virtual, que outra alternativa decente, fora do futebol, há para um menino de favela?

Formado em Economia na Universidade Católica do Rio e em Comunicação Audiovisual na Universidade da Califórnia, Waltinho tem tudo para ser um cineasta indiferente a dramas sociais. Filho de diplomata e banqueiro, sua família dirige o Unibanco e a CBMM, a maior empresa de nióbio do mundo. No entanto, ele enxerga a realidade pela ótica dos oprimidos, como diria Paulo Freire. Documentarista por formação, seu enfoque ficcional centra-se no lado avesso da vida, como fez Chaplin em seus filmes de humor.

Em "Central do Brasil" (1998), descreve a saga de uma nordestina (Fernanda Montenegro) que, em luta pela própria sobrevivência, redatora de cartas ditadas por analfabetos, se dedica aos cuidados de um menino órfão (Vinicius de Oliveira). É uma obra sobre a solidariedade, cujos vínculos costumam ser mais fortes entre quem não tem outra coisa a dar senão a si mesmo. O filme mereceu 55 prêmios internacionais.

Em "Abril Despedaçado" (2001), Salles retorna à aridez nordestina para retratar a cultura política fundada na espiral da violência, no conflito entre o desejo e a autoridade, o sonho e o poder.

Em "Diários de Motocicleta" (2004), ele traz à tela a exuberante paisagem andina da América do Sul em contraste com a precária sobrevivência de povos secularmente explorados, entre os quais a hanseníase parece ser, mais que uma doença, uma chaga social. Essa realidade, e não propriamente as lições de um marxismo acadêmico, moldou o compromisso ético e a utopia libertária do jovem Ernesto, mais tarde conhecido como Che Guevara.

Na arte, o talento consiste em associar forma e conteúdo. E essa é uma característica da filmografia de Walter Salles. Sua obra ficcional é calcada na realidade, sem, no entanto, ceder ao didatismo nem cair no proselitismo. Ele não pretende denunciar as mazelas de um sistema fundado na primazia do capital e não na dignidade humana, nem exaltar o precoce heroísmo do jovem Che. Sua lente desvela a realidade, arranca o véu, confunde nossos (pré)conceitos, faz emergir poesia no sofrimento, coragem na desesperança, ternura no desamor.

"Guernica", de Picasso, ressoa mais alto que todos os manifestos já escritos contra o nazifascismo. "A metamorfose", de Kafka, e "Lavoura arcaica", de Raduan Nassar, fazem da arte da metáfora algo inalcançável pelos tratados de psicologia dedicados à análise do autoritarismo.

Em matéria de conteúdo, a arte jamais supera a vida. Esta sempre surpreende. Diante dessa evidência, o risco é o artista se refugiar na ilusória ilha da linguagem que se basta, seja ela literária ou cinematográfica. A mais criativa e original característica humana – a linguagem – é sempre um eco hermenêutico. Fala-se de algo ou de alguma coisa. Traduz um gesto, um objeto, uma idéia, um sonho.

Numa cultura cindida pela desigualdade social, malgrado o consumo universal do entretenimento televisivo, perdura a diferença e a divergência entre pontos de vista. São sempre pontos de vista a partir de um ponto – seja o da porta da frente, seja o da porta dos fundos. É nessa brecha que a arte irrompe e transfigura-nos olhos, sentimentos, emoções e valores frente ao real. A escolha decorre inevitavelmente da postura moral e ética do artista. Eis o mérito de Walter Salles.

Frei Betto recebe hoje, 30 de maio, em Tarragona, Espanha, o Prêmio Ones Mediterrâneo, outorgado por seu empenho em prol da preservação ambiental e da cultura solidária.
Fonte: Correio da Cidadania, texto do Frei Betto.

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