Paulo Moreira Leite
Pesquisa do Núcleo de Estudo da Violência, da Universidade de São Paulo, mostra que diminuiu o número de brasileiros que condena o uso da tortura para a obtenção de provas.
Em 1999, quando se fez um levantamento semelhante, esse número era de 71,2%. Hoje, a condenação é de 52,5%.
Num país que acabou de formar uma Comissão da Verdade para investigar crimes de direitos ocorridos no regime militar, eu acho essa revelação muito preocupante mas menos surpreendente do que parece.
A experiência universal ensina que o destino da tortura se explica pelo destino do torturador. Enquanto a tortura não for denunciada, investigada e punida, o torturador será aceito, protegido e tolerado. Não há escapatória.
Num país que teve um passado vergonhoso de tortura durante o regime militar, a experiência de anos recentes foi uma só.
Se havia a esperança de apurar, investigar e até punir crimes cometidos em nome do Estado, a realidade foi uma decepção.
A cada denúncia de tortura entrava em operação uma grande maquina de impunidade, criando brechas para se bloquear toda investigação.
Todos os esforços dos militares para manter o passado em segredo foram bem sucedidos. Sequer seus arquivos foram abertos.
Quando o ministro da Defesa José Viegas pediu informações sobre mortos e desaparecidos aos comandantes militares, a resposta foi que os arquivos tinham sido destruídos. Mas não se perguntou por quem, quando, por que. Foi uma destruição burocrática, automática, disseram.
Uma vez, em Brasília, tentei apurar como era possível destruir um material tão importante, tão precioso. Diziam que era isso mesmo. O Estado tem normas para guardar documentos que, salvo determinação em contrário, são incinerados depois de alguns anos e ninguém pode fazer nada.
Imagino a cena: um recruta passa nos arquivos da ditadura, atas do Alto Comando, decisões ministeriais, ordens cifradas que podem esclarecer muita coisa, e carrega processos, ordens, denúncias, gritos, dores, cadáveres, para o lixo – como se fosse integrante de uma simpática e inofensiva equipe de garis que garante a limpeza de nossas cidades.
Todos procuradores que tentaram levar um torturador para o banco dos réus foram vencidos.
Pior. De uns tempos para cá, não foram só os velhos aliados da ditadura que saíram a campo para exigir que os crimes cometidos em nome do Estado fossem esquecidos. O próprio Supremo Tribunal Federal declarou que aceitava a interpretação da Lei de Anistia, segundo a qual o perdão dos torturadores estava assegurado.
Convertidos a um neo-conservadorismo de última hora, políticos que fizeram oposição ao regime militar hoje assumem uma posição de esquecimento e tolerância em relação a antigos carrascos.
A pesquisa reflete essa situação. Criou-se um ambiente de tolerância e aceitação.
Por motivos que tem relação direta com nossa desigualdade estrutural, o país nunca discutiu a tortura a presos comuns.
Mas fez a discussão sobre presos políticos, que envolvem pessoas de certo prestígio, que foram aos jornais e contaram dramas e tragédias. Muitos receberam o devido reconhecimento social. Alguns foram até glorificados.
Tudo isso poderia ter contribuído para se avançar num debate necessário: o que fazer com a tortura e com o torturador. Não adiantou.
Sabe por que? Porque até hoje asseguramos ao crime de tortura uma impunidade única e absoluta.
Um corrupto precisa esconder-se, disfarçar o caixa 2, colocar bens em nome de laranjas e mesmo assim corre o risco de ser apanhado.
Um garoto que é apanhado com maconha na bolsa pode ser levado para a delegacia e ouvir humilhações. O sujeito que roubar um pacote de macarrão num supermercado pode até responder a processo.
Se for pobre e preto, pode ser torturado. Hoje, aqui, agora, em 2012. Com oposição de pouco mais de 50%, diz a pesquisa.
Os torturadores sequer devem dar explicações sobre seus atos. Não são chamados a contar o que sabem. Estão acima de tudo, inclusive do regimento militar, que proíbe a tortura.
A própria presidente da República, uma das mais populares da história, passou 20 dias na porrada e não sabemos quem fez isso!
Essa é a questão.
Eu tinha uns 20 anos, em pleno regime militar, quando assisti a uma cena trivial e, ao mesmo tempo, inesquecível. Estava num elevador, quando entraram duas pessoas, comentando os fatos do dia. Os jornais comentavam que algumas pessoas tinham sido presas e encaminhadas para a Oban. Não lembro quem eram os presos mas não esqueço o diálogo:
– Você viu? Pegaram aquela turma…
– É..hoje a noite o pau vai comer. Vai ter gente que vai tomar uma surra…
Não. Não havia indignação naqueles olhares nem naquelas vozes. Apenas indiferença, ódio. Era o mundo em que vivíamos.
Alguém se atreve a dizer qual será o resultado da próxima pesquisa, em 2020?
Com a palavra, a Comissão da Verdade.
Em 1999, quando se fez um levantamento semelhante, esse número era de 71,2%. Hoje, a condenação é de 52,5%.
Num país que acabou de formar uma Comissão da Verdade para investigar crimes de direitos ocorridos no regime militar, eu acho essa revelação muito preocupante mas menos surpreendente do que parece.
A experiência universal ensina que o destino da tortura se explica pelo destino do torturador. Enquanto a tortura não for denunciada, investigada e punida, o torturador será aceito, protegido e tolerado. Não há escapatória.
Num país que teve um passado vergonhoso de tortura durante o regime militar, a experiência de anos recentes foi uma só.
Se havia a esperança de apurar, investigar e até punir crimes cometidos em nome do Estado, a realidade foi uma decepção.
A cada denúncia de tortura entrava em operação uma grande maquina de impunidade, criando brechas para se bloquear toda investigação.
Todos os esforços dos militares para manter o passado em segredo foram bem sucedidos. Sequer seus arquivos foram abertos.
Quando o ministro da Defesa José Viegas pediu informações sobre mortos e desaparecidos aos comandantes militares, a resposta foi que os arquivos tinham sido destruídos. Mas não se perguntou por quem, quando, por que. Foi uma destruição burocrática, automática, disseram.
Uma vez, em Brasília, tentei apurar como era possível destruir um material tão importante, tão precioso. Diziam que era isso mesmo. O Estado tem normas para guardar documentos que, salvo determinação em contrário, são incinerados depois de alguns anos e ninguém pode fazer nada.
Imagino a cena: um recruta passa nos arquivos da ditadura, atas do Alto Comando, decisões ministeriais, ordens cifradas que podem esclarecer muita coisa, e carrega processos, ordens, denúncias, gritos, dores, cadáveres, para o lixo – como se fosse integrante de uma simpática e inofensiva equipe de garis que garante a limpeza de nossas cidades.
Todos procuradores que tentaram levar um torturador para o banco dos réus foram vencidos.
Pior. De uns tempos para cá, não foram só os velhos aliados da ditadura que saíram a campo para exigir que os crimes cometidos em nome do Estado fossem esquecidos. O próprio Supremo Tribunal Federal declarou que aceitava a interpretação da Lei de Anistia, segundo a qual o perdão dos torturadores estava assegurado.
Convertidos a um neo-conservadorismo de última hora, políticos que fizeram oposição ao regime militar hoje assumem uma posição de esquecimento e tolerância em relação a antigos carrascos.
A pesquisa reflete essa situação. Criou-se um ambiente de tolerância e aceitação.
Por motivos que tem relação direta com nossa desigualdade estrutural, o país nunca discutiu a tortura a presos comuns.
Mas fez a discussão sobre presos políticos, que envolvem pessoas de certo prestígio, que foram aos jornais e contaram dramas e tragédias. Muitos receberam o devido reconhecimento social. Alguns foram até glorificados.
Tudo isso poderia ter contribuído para se avançar num debate necessário: o que fazer com a tortura e com o torturador. Não adiantou.
Sabe por que? Porque até hoje asseguramos ao crime de tortura uma impunidade única e absoluta.
Um corrupto precisa esconder-se, disfarçar o caixa 2, colocar bens em nome de laranjas e mesmo assim corre o risco de ser apanhado.
Um garoto que é apanhado com maconha na bolsa pode ser levado para a delegacia e ouvir humilhações. O sujeito que roubar um pacote de macarrão num supermercado pode até responder a processo.
Se for pobre e preto, pode ser torturado. Hoje, aqui, agora, em 2012. Com oposição de pouco mais de 50%, diz a pesquisa.
Os torturadores sequer devem dar explicações sobre seus atos. Não são chamados a contar o que sabem. Estão acima de tudo, inclusive do regimento militar, que proíbe a tortura.
A própria presidente da República, uma das mais populares da história, passou 20 dias na porrada e não sabemos quem fez isso!
Essa é a questão.
Eu tinha uns 20 anos, em pleno regime militar, quando assisti a uma cena trivial e, ao mesmo tempo, inesquecível. Estava num elevador, quando entraram duas pessoas, comentando os fatos do dia. Os jornais comentavam que algumas pessoas tinham sido presas e encaminhadas para a Oban. Não lembro quem eram os presos mas não esqueço o diálogo:
– Você viu? Pegaram aquela turma…
– É..hoje a noite o pau vai comer. Vai ter gente que vai tomar uma surra…
Não. Não havia indignação naqueles olhares nem naquelas vozes. Apenas indiferença, ódio. Era o mundo em que vivíamos.
Alguém se atreve a dizer qual será o resultado da próxima pesquisa, em 2020?
Com a palavra, a Comissão da Verdade.
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