quinta-feira, 24 de abril de 2014

ECONOMIA - A vaca, a opulência e a miséria.


   

A vaca, a opulência e a miséria

Ignacio Ramonet denunciou que uma vaca europeia recebe 4 euros diários de subvenção enquanto uma pessoa na África vive com menos de 1 euro por dia!


José Carlos Peliano (*)
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Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, denunciou que uma vaca europeia recebe 4 euros diários de subvenção enquanto uma pessoa na África  vive com menos de 1 euro por dia! Um escândalo que o levou a concluir que vale mais ser uma vaca europeia que um ser humano africano.

Nesse mundo marcadamente desigual, de fato, vale mais ser muitos outros caprichos da sociedade opulenta do que passar fome e viver à míngua. A dignidade humana perdeu o valor em contraste com as veleidades, prazeres e interesses do lucro pelo lucro, pela acumulação e pela riqueza.

Não que uma vaca não possa ver subsidiada para garantir uma adequada produção de leite para os europeus diante exatamente das vicissitudes dos diferentes mercados, condições climáticas e do panorama dos preços relativos estabelecidos.

Também a priori nada a opor que um africano não possa viver com menos de 1 euro por mês se esta quantia lhe garanta uma sobrevivência igualmente adequada na situação econômica do país em que viva.

Se e somente se essas disparidades entre indivíduos, países e regiões sejam acompanhadas e julgadas com humanidade e justiça nas mais diversas situações de vida. O que infelizmente não é o que acontece mundo afora. Entre a vaca e o africano passa um oceano de injustiças, desigualdades, opulência e miséria. O que falta de um lado necessariamente é o que sobra no outro.

Simples assim. A opulência de um país é o retrato da miséria do outro no mundo antes mercantilizado e hoje globalizado desde a produção até o consumo passando pelos direitos de posse e propriedade. A penúria que assola um país é a opulência que é acumulada noutro. O que distingue o ser humano da barbárie, seja esta primitiva ou contemporânea, é que a vida é inegociável, mas a riqueza não é.

Cada unidade produzida de bem ou serviço em qualquer parte do mundo já traz embutida a marca da desigualdade. O que sobra no produto de lucro é o que faz falta ao desempregado para conseguir ocupação, ao faminto para não ter de roubar uma galinha (e uma ação parar no Supremo), ao doente que não tem recursos para comprar medicamento. O capitalismo não existe sem lucro, mas ele é que separa os que têm e os que não têm. Ele é quem dá a forma e o tamanho da desigualdade. Quanto maior o lucro num quadro de desigualdade mais a desigualdade impera, se alastra, convulsiona.

Em texto anterior foi sugerido por nós um indicador para refletir ao mesmo tempo a riqueza e a desigualdade de um país. Uma simples relação entre magnitudes do Produto Interno Bruto (PIB) e de uma medida de desigualdade (coeficiente de Gini). A ideia é a de indicar o quanto de desigualdade equivale a um quanto de riqueza. Em outras palavras, numa determinada sociedade com relações sociais e de produção estabelecidas e vigentes quanto de desigualdade é gerada por unidade de produto ou riqueza. Abaixo informações que ilustram o indicador face aos comentários realizados até aqui.

As informações se referem ao produto e à desigualdade no Brasil e nos Estados Unidos por anos selecionados e em números índices. As fontes foram o IBGE e o Bureau of Labour Statistics. Os anos são 2001, 2005, 2009 e 2012. Os dados do produto são do PIB e os da desigualdade do coeficiente de GINI. Para o Brasil os números índices obtidos para o PIB foram 100; 113,2; 131,0 e 157,6 e para os coeficientes de GINI foram 100; 95,3; 92,8 e 91,0. Para os Estados Unidos 100; 112,2; 114,8 e 123,1 e 100; 100; 105,5 e 102,8 respectivamente.

Os valores do PIB e os números do GINI foram tomados a partir de 2001, ano em que se fixou como base de comparação, daí numerando-o com 100, um número índice a partir do qual os demais anos se referenciam. A relação final obtida, o indicador GINI/PIB, reflete o quanto de desigualdade medida pelo coeficiente de GINI equivale a uma unidade de produto medida pelo produto interno bruto. Se se quiser o indicador pode ser interpretado para uma compreensão mais fácil como o quanto de desigualdade é desencadeada ou gerada por unidade de produto de um país em determinado período de tempo.

Os indicadores GINI/PIB obtidos foram: Brasil – 100; 84,2; 70.8 e 57,7, e para os Estados Unidos – 100; 89,1; 91,9 e 83,5.

Em boa parte da década passada, a relação GINI/PIB decresce mais no Brasil do que nos Estados Unidos. Ou seja, para cada unidade de produto menos desigualdade foi gerada aqui no país do que no solo americano. Esse decréscimo, no entanto, se deveu mais ao aumento do PIB em todo o período do que à redução correspondente da desigualdade. O produto veio crescendo mais que a queda anual na desigualdade.

De todas as formas, a queda da desigualdade no Brasil equivaleu a três vezes mais a queda ocorrida nos Estados Unidos. Um bom resultado para nós muito embora essa queda tenha se dado a partir de magnitudes mais altas do GINI aqui do que lá – enquanto aqui em 2012 o GINI chega a 0,50 lá não passa de 0,38.

Enquanto isso, o crescimento do PIB no Brasil supera o dos Estados Unidos em duas vezes e meia no período praticamente decenal. É claro que não foi a redução do lucro aqui que permitiu a queda na desigualdade como a teoria identifica. No capitalismo essa iniciativa fica muitas vezes na mão do estado através das transferências de renda aos mais pobres e necessitados via tributos. No caso do Brasil foram os recursos pagos por impostos que puderam ser transferidos para programas sociais que ajudaram a melhorar as rendas dos mais pobres além de permitirem a entrada deles no mercado, fosse em ocupações novas fosse no acesso ao consumo.

O Brasil conseguiu a proeza de passar pelo período de 2001 a 2012 com a evolução de indicadores de riqueza e desigualdade em melhor situação que a dos americanos. É um marco na história dos dois países e em especial do nosso que viveu por muitos anos tendo os Estados Unidos como modelo de cultura, consumo e produção. O caminho ainda é longo para se atingir aqui os níveis de produção e desigualdade dos americanos, mas as bases estão lançadas e já começam a dar bons resultados.

(*) Economista

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