Guilherme Estrella: Desde FHC estratégia é enfraquecer a Petrobras
De acordo com Estrella, com Fernando
Henrique Cardoso, a Petrobras foi deixada de lado para benefício de
empresas estrangeiras. O ex-presidente teria sido o principal
responsável por "reduzir em 40% a presença da Petrobras na procura de
novos campos de petróleo, limitando as pesquisas da empresa e
favorecendo a entrada das multinacionais".
Em 2002, no último ano do governo FHC,
“os blocos exploratórios da Petrobras eram suficientes para companhia
manter sua atividade apenas até 2008. Pensando aonde poderíamos estar,
se essa visão fosse mantida, é difícil imaginar o destino da companhia.
Com certeza, seria uma empresa menor e mais frágil”.
“Só para dar uma ideia. Em 2002,
investimentos em pesquisa ficavam em US$ 110 milhões. Hoje, se encontram
em US$ 1,1 bilhão. O lucro líquido foi de R$ 8,1 bilhões em 2002. Em
2013, passava de US$ 23 bilhões. Nós tínhamos 11 bilhões de barris em
reservas. Hoje, são 16,5 bilhões. Se aquelas condicionantes fossem
atendidas, vários blocos já sob domínio da Petrobras já teriam sido
devolvidos a ANP em agosto de 2003”.
“Lula rompeu com as políticas
neoliberais que estavam em vigor e reconstruiu o lugar Petrobras em
nosso desenvolvimento. A partir daí, estávamos a um passo do pré-sal",
lembrou Estrella.
Na entrevista, o ex-diretor da Petrobras
traça um importante panorama histórico da companhia e explica como
algumas ações estratégicas permitiram a recuperação da Petrobras e a
descoberta do pré-sal.
Nas críticas ao fim da exigência de que a
Petrobras seja operadora única em todos os projetos, Estrella diz que é
justamente essa condição que pode tornar a estatal uma das principais
empresas do mundo no setor e incentivar o desenvolvimento nacional.
“É o operador que decide a tecnologia de
construção de poços e de produção de óleo e gás. Este trabalho oferece
uma extraordinária oportunidade de pesquisa e desenvolvimento para todo
tipo de inovações tecnológicas e operacionais. O pré-sal brasileiro
encontra-se a mais de 2000 metros de profundidade de mar. É a última
fronteira geológica disponível para a produção de óleo e gás. A empresa
que opera suas atividades será imensamente beneficiada, pois tudo passa
por sua mão. Ela define a engenharia de projetos e de operação dos
grandes sistemas de produção submarina. Também toma decisões sobre o
trabalho no fundo do mar, a coleta e transporte até as unidades
flutuantes, navios ou plataformas. São dimensões de amplo espectro, que
representam o grande saldo de conhecimento para o futuro, para os novos
mercados e novas oportunidades”.
Do Clube da Engenharia
Depoimento histórico de Guilherme Estrella
Em entrevista exclusiva, o escritor e
jornalista Paulo Moreira Leite, em longa conversa com o geólogo
Guilherme Estrella, ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobras
(2003/2012) e conselheiro do Clube de Engenharia, produziu um documento
inédito da história recente do país. O material, já publicado em quatro
partes, segundo Moreira Leite, poderá ter continuidade em novos
capítulos.
O Clube de Engenharia divulga, a seguir,
as partes 1 e 2: O pré-sal é nosso, com o relato de Estrella sobre o
quadro político no qual se deu a descoberta do pré-sal e Projeto Serra
entrega o filé mignon, que, conforme esclarece Moreira Leite, entre
outras questões Estrella “discute por que a Shell interrompeu
perfurações no meio do caminho, na área onde mais tarde a Petrobras
encontrou o pré-sal”.
Pela riqueza de informações e fatos
divulgados por alguém que, como protagonista, conhece esse capítulo da
história nacional como ninguém, o Clube de Engenharia dá início hoje à
publicação da série.
Leia, a seguir, as duas partes iniciais da entrevista de Guilherme Estrella.
PARTE 1
Estrella: o pré-sal é nosso
Por Paulo Moreira Leite, editor em Brasília do jornal Brasil 247
Líder da equipe que chegou às reservas
do pré-sal, hoje alvo de um projeto de abertura ao capital estrangeiro
em discussão no Congresso, o geólogo Guilherme Estrella afirma que o
fator político foi decisivo para uma descoberta com impacto relevante
para o país e as novas gerações. “Lula rompeu com as políticas
neoliberais que estavam em vigor e reconstruiu o lugar Petrobras em
nosso desenvolvimento. A partir daí, estávamos a um passo do pré-sal,"
diz ele, na primeira parte de uma entrevista exclusiva ao 247. Estrella
também acusa o governo Fernando Henrique de "reduzir em 40% a presença
da Petrobras na procura de novos campos de petróleo, limitando as
pesquisas da empresa e favorecendo a entrada das multinacionais."
BRASIL 247 – Como explicar a descoberta de pré-sal brasileiro?
GUILHERME ESTRELLA - Há
fatores econômicos, pois envolve investimentos pesados. Também é
preciso ter um bom conhecimento da área a ser explorada, com uma
pesquisa geológica de qualidade. Mas o fator político foi decisivo.
247 - Por que?
GUILHERME ESTRELLA – No
período que transcorreu entre a reforma neoliberal da Constituição de
1988, com a consequente quebra do monopólio e a instalação do regime de
concessão internacional, havia uma política não escrita mas praticada
pelos governos do PSDB. Consistia em reduzir em 40% a presença da
Petrobras nos trabalhos de engenharia e pesquisa. A razão disso era
clara: pretendia-se estimular empresas estrangeiras a investir no
Brasil. Estou convencido de que não era um comportamento casual, fruto
de uma decisão de momento, mas uma decisão de caráter estratégico.
247 – E como se fazia isso?
GUILHERME ESTRELLA – Impunha-se
duas condicionantes a Petrobras. A primeira, era diminuir a
participação da empresa nas licitações de blocos exploratórios
promovidas pela Agencia Nacional do Petróleo, ANP. Disputando menos
blocos, a empresa tinha menos áreas para pesquisar e explorar. A segunda
consequência é que, na prática, essa situação obrigava a Petrobras a
atuar apenas na bacia de Campos, então responsável por 80% da produção
brasileira. Eram condicionantes gravíssimas para a empresa e para o
Brasil.
247 – E por que?
247 – E por que?
GUILHERME ESTRELLA – Vamos
lembrar o que acontecia em 2002, último ano do governo Fernando
Henrique Cardoso. Naquele momento, os blocos exploratórios da Petrobras
eram suficientes para companhia manter sua atividade apenas até 2008.
Pensando aonde poderíamos estar, se essa visão fosse mantida, é difícil
imaginar o destino da companhia. Com certeza, seria uma empresa menor e
mais fragil. Só para dar uma ideia. Em 2002, investimentos em pesquisa
ficavam em US$ 110 milhões. Hoje, se encontram em US$ 1,1 bilhão. O
lucro líquido foi de R$ 8,1 bilhões em 2002. Em 2013, passava de US$ 23
bilhões. Nós tínhamos 11 bilhões de barris em reservas. Hoje, são 16,5
bilhões. Se aquelas condicionantes fossem atendidas, vários blocos já
sob domínio da Petrobras já teriam sido devolvidos a ANP em agosto de
2003.
247 – Qual era o outro efeito grave dessas condicionantes?
GUILHERME ESTRELLA –
Num fato elementar do setor de E & P da nossa indústria , os campos
de petróleo e ou gás natural perdem produção de modo acentuado após
cinco anos. Em média, a perda pode chegar a 10% ao ano. Podemos imaginar
o que isso iria significar para a Petrobras: uma situação,
absolutamente fora de controle, da perda de sustentabilidade nos dez
anos seguintes. Era um quadro de risco que estava começando em 2002.
247 – O que aconteceu então?
GUILHERME ESTRELLA – Logo
depois da posse, o presidente Lula rompeu com a política neoliberal que
estava em vigor, e que gerava uma relação perigosa de dependência
externa. Numa decisão impecável, do ponto de estratégico, que foi
ficando clara em inúmeros pronunciamentos, ele mudou a mensagem que
vinha do governo. Mais uma vez de forma não escrita, dizia que a
Petrobras iria reassumir sua posição de principal condutora do setor
petrolífero, voltando a participar de forma concreta na retomada do
desenvolvimento industrial brasileira.
247 – Sabemos que essa postura foi bem recebida dentro da empresa. Por que?
GUILHERME ESTRELA –
Não poderia ser de outra forma. Estávamos falando em investir fortemente
nos blocos que, na situação anterior, deveriam ser devolvidos a ANP já
em agosto. Foi assim que descobrimos em Santos os campos de Uruguá e
Tambaú, de petróleo. Também encontramos o campo de gás de Mexilhão.
247 – Não era Mexilhinho?
GUILHERME ESTRELA – Nunca
foi. Esse termo depreciativo em relação a Petrobras e seus
funcionários, foi uma fruto de uma crítica precipitada, de quem estava
impaciente para condenar a nova orientação política da empresa. Na
verdade, era uma avaliação em cima dos primeiros resultados da
exploração, quando se colhe uma amostra parcial, incerta, que deve ser
confirmada ou desmentida mais adiante. Estava totalmente errada. Com o
tempo, revelou-se que Mexilhão era, simplesmente, o maior campo de gás
natural já descoberto em território brasileiro.
247 – O efeito da nova postura do governo Lula foi imediato, então?
GUILHERME ESTRELLA – Sim.
Com essas três descobertas foi possível confirmar a existência de um
"sistema petrolífero" na bacia de Santos. Até então, ela ficara relegada
ao segundo plano nas prioridades exploratórias da Petrobras. Isso
porque, sem investimentos em novas pesquisas, parecia conter, numa área
de extensão gigantesca, um único e pequeno campo de gás natural,
descoberto pela Shell, ainda no período dos contratos de risco da década
de 1970. Na bacia do Espírito Santo foi descoberto o Campo de Golfinho,
de óleo leve (de menor custo de refino) e muito gás. Foram abertas,
assim, perspectivas exploratórias muito interessantes naquela bacia
sedimentar, logo acima de Campos. Até então, ela era considerada não
atrativa para as atividades da empresa. Tanto assim que a decisão de
fechar a unidade de E&P, em Vitória, já estava tomada.
247 – Qual a importância dessa nova postura para a descoberta do pré-sal?
GUILHERME ESTRELLA – A
partir deste momento, estávamos a um passo do pré-sal. Não vamos nos
enganar. A base de qualquer avanço de envergadura consiste em aproveitar
oportunidades exploratórias criadas pela competência técnica e
geocientífica de uma companhia. Por essa razão é correto dizer que tudo o
que veio depois significou o coroamento das decisões estratégicas de
2003. Seguindo nesta direção, na licitação da ANP daquele ano a
Petrobras foi bastante agressiva. Arrematou inúmeros blocos, dentro e
fora da bacia de Campos, persistindo na tendência que permitiu recompor a
forte posição exploratória da companhia a longo prazo.
247 – Como as concorrentes estrangeiras reagiram a essa postura?
GUILHERME ESTRELLA – Um
fato importante da licitação de 2003, que marcou uma virada
estratégica, é que a área corporativa da Petrobras havia costurado
alianças de participação com empresas estatais e também privadas
estrangeiras. Mas, num ato conjunto, totalmente inesperado, elas
simplesmente nos comunicaram, às vésperas da licitação, que não estavam
mais interessadas nas alianças anteriores.
247 – O que isso queria dizer?
GUILHERME ESTRELLA – Em
meu entendimento, foi uma clara reação contra o governo Lula. Elas
demonstraram que as decisões já tomadas não atendiam seus interesses.
Diante disso, a reação da Petrobras foi a de aumentar a agressividade na
licitação. Isso permitiu a recomposição de nossa carteira exploratória,
agora 100% Petrobras, para os anos vindouros.
PARTE 2
Estrella: projeto Serra entrega o filé mignon
Na segunda parte de seu depoimento ao
247, o diretor aposentado da Petrobras, Guilherme Estrella, recorda o
papel de Lula na criação de regras do pré-sal, inclusive a condição da
Petrobras como sua operadora única, centro dos questionamentos ao
projeto de José Serra, em tramitação no Congresso. Líder da equipe que
encontrou o pré-sal, Estrella diz que é justamente a posição de
operadora única que pode garantir que a Petrobras se transforme numa das
principais produtoras mundiais de petróleo.
247 – Nós sabemos que entre
2007 e 2010, quando o governo Lula criou e depois conseguiu aprovar as
regras do pré-sal no Congresso, o bicho pegou justamente na hora em que
se garantiu a condição da Petrobras como operadora única, com
participação obrigatória mínima de 30%. É justamente este ponto que o
projeto de José Serra pretende modificar. Qual a importância dessa
decisão?
GUILHERME ESTRELLA –
Para entender: é o operador que decide a tecnologia de construção de
poços e de produção de óleo e gás. Este trabalho oferece uma
extraordinária oportunidade de pesquisa e desenvolvimento para todo tipo
de inovações tecnológicas e operacionais. O pré-sal brasileiro
encontra-se a mais de 2000 metros de profundidade de mar. É a última
fronteira geológica disponível para a produção de óleo e gás. A empresa
que opera suas atividades será imensamente beneficiada, pois tudo passa
por sua mão. Ela define a engenharia de projetos e de operação dos
grandes sistemas de produção submarina. Também toma decisões sobre o
trabalho no fundo do mar, a coleta e transporte até as unidades
flutuantes, navios ou plataformas. São dimensões de amplo espectro, que
representam o grande saldo de conhecimento para o futuro, para os novos
mercados e novas oportunidades.
247 – Como se tomou a decisão de garantir a Petrobras como operadora única?
ESTRELLA – O governo
sofreu pressões de todos os lados. Na própria Petrobras, um grande
contingente de técnicos não conseguia vislumbrar a extraordinária
oportunidade para o desenvolvimento nacional que a condição de operadora
única representa. Havia a mesma dúvida em diversos níveis do governo
federal. E é claro que já ocorriam pressões diretas das partes
interessadas em mudar as regras a seu favor. Isso explica o email de
agosto de 2009, quando a gerente no Brasil de uma petrolífera
norte-americana, escreveu a seus superiores nos EUA. Alertava que o
pré-sal era uma grande ameaça aos interesses das empresas
norte-americanas mas chamava a atenção para o fato de que se o candidato
a presidente José Serra vencesse as eleições em 2010, aquele marco
seria revogado. Convém lembrar que não foi a única manifestação neste
sentido. Naquela época, recebi a visita de um cônsul dos Estados Unidos,
em meu gabinete, falando do interesse de empresas de seu país em
participar do pré-sal. Ouvi um mesmo apelo de um executivo que visitei a
trabalho no Texas.
247 – O que aconteceu de lá para cá?
ESTRELLA – Até aqui
soubemos resistir a todas as pressões. Tanto a postura do presidente
Lula, como a votação do Congresso, que aprovou a legislação adequada,
garantiram à Petrobras as condições de realizar um processo de
desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro, autônomo, em
benefício da sociedade, da população e de empresas genuinamente
brasileiras. Em cada área de competência, todos tiveram a oportunidade
de se mostrar capazes em escala mundial. A prova está na produção. Num
prazo relativamente curto, em junho a produção do pré-sal brasileiro
fechou em 1,2 milhão de barris por dia, número recorde, que já
representa quase metade da produção total do país.
247 – Ao lado do então
presidente da Petrobras, Sergio Gabrielli, o senhor participou de
discussões com o presidente Lula, em 2007, quando se confirmou a
existência do pré-sal. Como foi?
ESTRELLA – É preciso
lembrar o que estava acontecendo no mercado mundial de petróleo naquele
momento para se ter uma ideia da importância da discussão que fazíamos
em Brasília. O Iraque havia sido invadido, ocupado e destruído. A causa,
como o planeta inteiro sabia, era a crescente dependência energética da
Europa do petróleo e gás da Rússia, e dos Estados Unidos em relação ao
Oriente Médio. Neste cenário energético desesperador para as nações
hegemônicas ocidentais, obrigadas a mobilizar a OTAN e a realizar uma
guerra, o Brasil aparece do outro lado do Atlântico, tirando da cartola a
maior província petrolífera descoberta em 50 anos em todo o planeta.
Pode-se imaginar o tipo de pressão que passamos a receber.
247 – Quais pressões foram essas?
ESTRELLA – Por suas
características, a descoberta do pré-sal exigia uma mudança no sistema
de exploração em vigor no país até então. O velho sistema de concessão
precisava ser substituído pelo sistema de partilha, caso contrário o
Brasil deixaria de receber os maiores benefícios da descoberta que
acabava de ser feita.
247 – O que precisava mudar?
ESTRELLA – Sabemos que o
regime de concessão só é conveniente em situações de risco, onde quem
procura petróleo não pode saber o que vai encontrar após a perfuração.
Em compensação, quando encontra o que procura, as regras lhe garantem a
propriedade integral da área. Mas estava claro, na primeira exposição
feita ao presidente, com base numa área chamada de "Picanha Azul",
porque tinha a forma de carne para churrasco, que não havia risco algum.
Era um caso de risco exploratório zero. Neste caso, de risco zero, o
regime de concessão deixava de ser interessante. Também precisávamos
garantir que a Petrobras se tornasse a operadora única do pré-sal, em
função dos benefícios envolvidos. Não eram, no entanto, decisões
politicamente simples nem fáceis.
247 – Por que?
ESTRELLA – A simples
perspectiva de que estávamos a tratar de uma província petrolífera
imensa, em termos mundiais, não era aceita por todos, mesmo na
Petrobras. Havia o receio de que, com todas as limitações que o
conhecimento da geologia apresenta – lida-se com dados indiretos, que
devem ser interpretados – poderia ser muito arriscado para o governo
tomar decisões desse porte. Além disso, queríamos fazer uma mudança de
legislação que equivale a retirar a propriedade de grandes reservas
técnicas das grandes empresas privadas internacionais, que são, mundo
afora, as responsáveis técnicas por se apropriarem de reservas de
petróleo e gás natural para abastecer seus países sede e lhes
garantirem, estrategicamente, segurança energética nacional.
247 – Qual foi a reação a isso?
ESTRELLA – Estamos
falando de uma mudança de enorme significado geopolítico, de abrangência
mundial. Quando a descoberta do pré-sal brasileiro foi tornada pública,
em meados de 2007, a quarta frota da Marinha de guerra norte-americana
foi reativada para atuar no Atlântico Sul, num sinal contundente de que a
nação hegemônica ocidental havia inserido o Brasil e sua gigantesca
descoberta entre seus interesses estratégicos.
BRASIL 247 – O que se passou a seguir?
ESTRELLA – Lula estava
decidido a retirar a Picanha Azul da 9ª rodada de licitações da ANP,
marcada para o segundo semestre. Era necessário retirar os 41 blocos de
uma licitação cuja abrangência já era formalmente conhecida, pelo edital
já publicado. Apesar da posição do presidente, havia resistências
internas. O argumento é que aquilo poderia ser interpretado como uma
"quebra de regras já estabelecidas com o setor petrolífero mundial" e
que poderia haver "retaliações" por parte das empresas petroleiras
estrangeiras no sentido de não mais investir no Brasil. Era este o
debate. Em nada muito diferente daquilo que vemos hoje, como sabemos.
247 – O que Lula fez?
ESTRELLA – Nós,
geólogos, engenheiros, pesquisadores, antevíamos a possibilidade do
pré-sal ser a viga mestra da energia necessária para o desenvolvimento
do país. Era o que conseguíamos enxergar. O Lula, num estalo, bolou o
fundo social a ser abastecido com abundantes recursos financeiros para
saúde, educação, emprego e moradia, sem falar em ciência e tecnologia.
247 – Como o senhor entende o projeto elaborado pelo Serra?
ESTRELLA – Ele retira
da Petrobras a responsabilidade de atuar como operadora única do pré-sal
brasileiro. Cria o "direito de escolha", outorgando a empresa a decisão
de participar ou não dos consórcios formados nos leilões da ANP para
disputar os blocos do pré sal.
247 – O que isso significa?
ESTRELLA – O projeto
fere a essência do marco regulatório na medida em que o abrangente leque
de oportunidades de pesquisa e desenvolvimento pode ser transferido
para outra empresa, certamente estrangeira, pois não há empresa de
capital nacional com porte e capacitação para a atividade. O que se quer
é mudar uma situação que vai selar a Petrobras como a mais competitiva e
competente empresa petrolífera do planeta.
247 – A importância do pré-sal é tão grande assim?
ESTRELLA – Estamos
falando do filé mignon da indústria de petróleo mundial. Tanto é assim
que, com base nos resultados obtidos pela Petrobras no Brasil, a Exxon
norte-americana conseguiu um acordo para se tornar operadora única do
pré-sal em Angola. Ninguém vai dizer que a regra que vale para a Exxon
não é boa para a Petrobrás, certo?
247 – Do ponto específico do Brasil, qual a desvantagem em deixar de ser operadora única?
ESTRELLA – Na prática, significa renunciar a uma oportunidade – quem sabe única – de desenvolvimento tecnológico industrial sustentado.
247 – Um dos mistérios do
pré-sal consiste em saber o que aconteceu com a Shell: como é que um dos
gigantes privados do petróleo mundial, que chegou tão perto do pré-sal,
perdeu uma oportunidade dessas?
ESTRELLA – Realmente a
empresa anglo-holandesa operou um bloco exploratório sob o regime de
concessão, na mesma área onde mais tarde a Petrobras descobriu o campo
de Libra. A diferença estava no conhecimento que a empresa possuía sobre
a área. Ela tinha como objetivo fazer pesquisas nos reservatórios acima
da camada de sal, que na bacia de campos são os principais produtores.
Ao atravessar essa seção geológica, decidiu interromper a perfuração,
dar o bloco como testado e devolver a área a ANP.
247 – Como isso foi possível?
ESTRELLA – Minha
interpretação pessoal é que ocorreram dois fatores. Ao contrário da
Petrobras, a Shell desconhecia as reais possibilidades daquele "sistema
petrolífero" que produziu praticamente todo o petróleo e gás natural
descoberto na extensa costa brasileira, em particular na bacia de
Campos, até então a maior produtora. Também deve ter considerado os
altos custos de prosseguir a perfuração. Sem poder avaliar o enorme
potencial que poderia ser encontrado imediatamente abaixo de uma espessa
camada de sal, decidiu não testá-lo.
247 – Pode-se concluir alguma coisa desse episódio?
ESTRELLA – É possível
fazer várias reflexões. A primeira é lembrar que a atividade de explorar
e produzir petróleo não é um negócio para banqueiros. Envolve grandes
investimentos, alto risco e a possibilidade de grandes perdas. Quem for
fazer cálculos na ponta do lápis irá concluir que é mais garantido
investir na poupança da Caixa Econômica, em troca daquela modesta
remuneração mensal. Um poço exploratório de petróleo em alto mar não
custa menos de US$ 50 milhões. As chances de sucesso, na média mundial,
são de uma descoberta em cada dez tentativas. É quase uma aventura, o
que reforça a necessidade de investir em pesquisas, que permitem ter um
conhecimento científico real, apoiado em realidades concretas. Essa foi
outra diferença entre a Petrobras e as demais empresas. Nossas pesquisas
sempre nos colocaram à frente em matéria de conhecimento em águas
brasileiras. Os críticos podem não aceitar, mas o pré-sal confirma isso.
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