COMO FOI O DIA DO JULGAMENTO DE LULA NA AUDITORIA MILITAR, 36 ANOS ATRÁS
Ricardo Kotscho Comments 27 Comentários
Para entender um pouco melhor o significado da operação montada em torno do julgamento de Lula em Porto Alegre, sitiada por terra, água e ar pelos órgãos de segurança, é preciso recuar bastante no tempo.
De onde vem esta identificação do ex-metalúrgico e ex-presidente da República com o que se chamava de “peãozada”, na época das greves na República de São Bernardo, no começo dos anos 1980, e atravessou quase quatro décadas, capaz de mobilizar caravanas vindas de várias partes do país neste janeiro de 2018?
Este não é o primeiro julgamento de Lula que mobiliza as atenções da imprensa daqui e de fora.
Lembrei-me de outro, que aconteceu 36 anos atrás, na Auditoria Militar da avenida Brigadeiro Luis Antonio, em São Paulo, quando os diretores do sindicato que comandaram as greves dos metalúrgicos foram processados pela Lei de Segurança Nacional em plena ditadura.
Hoje, mais de 300 jornalistas brasileiros e de várias partes do mundo já estão em Porto Alegre neste dia que antecede a abertura dos trabalhos da 8ª Turma do TRF-4, que vai julgar o recurso do ex-presidente à condenação a nove anos e meio de prisão pelo juiz Sergio Moro _ e o destino das eleições presidenciais.
Uma das poucas vantagens de ficar velho nesta profissão é ter a lembrança de como foi que as histórias aconteceram desde o começo.
Repórter da Folha na época, fui escalado para fazer a cobertura do primeiro julgamento de Lula, mas aconteceu um imprevisto que me impediu de cumprir a tarefa.
Como a memória já não anda boa, recorro mais uma vez ao meu livro “Do Golpe ao Planalto_ Uma Vida de Repórter” (Companhia das Letras, 2006) para contar como foi.
Para fazer a cobertura do julgamento dos metalúrgicos na Auditoria Militar, marcado para o final de 1981, era preciso providenciar uma credencial especial, distribuída no quartel-general do então II Exército, no Ibirapuera.
Cada jornalista foi recebendo a sua, e a minha vez não chegava. Sem maiores explicações, negaram-me a credencial. Fui perguntar ao chefe da 2ª Seção, o serviço secreto do Exército, responsável pelo credenciamento, o que estava acontecendo.
Sem prestar muita atenção no que eu lhe dizia, o coronel encarregado encerrou logo a conversa: “Não tenho que lhe dar satisfações”. Além de mim, só os correspondentes estrangeiros não foram credenciados.
Com seu jeito pragmático, o chefe de reportagem Adilson Laranjeira, em vez de ficar se lamentando, resolveu pedir credencial para outro repórter e me mandou passar o dia do julgamento em São Bernardo do Campo, para fazer uma “matéria de clima” na cidade.
Fui cedo, direto para a casa de Lula, pensando em tomar um café com Marisa. Ao chegar lá, descobri que ninguém tinha ido à Auditoria Militar. Os advogados acharam melhor que os metalúrgicos fossem julgados à revelia.
Repórter é como goleiro: tem que ter sorte. Horas depois, quando os outros jornalistas souberam do paradeiro de Lula e dos demais sindicalistas denunciados pela Justiça Militar, eu já havia colhido um rico material _ e naquele dia acabei vivendo, sem querer, minha primeira experiência como assessor de imprensa.
É que Lula e os advogados não queriam falar com os repórteres aglomerados no portão, e me pediram que conversasse com eles.
Fiz um breve relato sobre quem se encontrava na casa, o que estavam fazendo e tal, mas deixei a melhor parte para a minha matéria, claro, publicada com o título “Aqui em casa cada um sabe o que fazer”.
Durante a madrugada, o telefone não parara de tocar, reclamou Marisa, que só foi dormir depois das duas da manhã.
Ás sete horas, os dois já estavam de pé e, aos poucos, a casa foi se transformando num cenário paralelo ao da Auditoria Militar, com a chegada de vários dos personagens mais importantes.
Quando a fome bateu, por volta das duas da tarde, resolveram fazer uma “vaquinha” para comprar feijoada num bar próximo, já que Marisa não tivera tempo de preparar o almoço.
As cinco marmitas desapareceram rapidamente, e Lula, o principal acusado no julgamento, dormiu no chão, apesar de toda a bagunça ao seu redor.
Misturavam-se naquela modesta sala a voz do senador italiano Armelino Milani, a do correspondente do Washington Post, a dos repórteres da televisão alemã e a da peãozada de forte sotaque nordestino.
Por falar em peãozada, voltando ainda um pouco mais no tempo, lembrei-me também de uma reportagem que escrevi para a edição especial do caderno Folhetim sobre a “República de São Bernardo”, publicada com o título “A terra dos peões”.
Um trecho daquela matéria explica bem a resiliência de Lula, aos 72 anos, pronto para enfrentar novo julgamento, desta vez num tribunal civil:
“Decretaram intervenção no sindicato, prenderam Lula e outros líderes, fecharam o estádio de Vila Euclides, sitiaram o Paço Municipal, transferiram a tropa de choque e o comando da PM para a praça da Igreja da Matriz _ e a greve continuou.
Proibiram a passeata do 1º de Maio _ e a passeata saiu. Jogaram água e bombas, soltaram os cães pastores e vibraram cassetetes _ e a peãozada resistiu com paus e pedras.
Ameaçaram durante mais de um mês com cadeia, desemprego e fome _ e a cada assembléia respondia-se com um grito uníssono: “A greve continua!”.
Agora, a palavra de ordem mudou para “Eleição sem Lula é fraude!”.
Vida que segue.
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