Tenho saudades do Fla-Flu entre PT e PSDB. Pronto falei
Ou: como o ódio de classe a Lula e ao PT levou a centro-direita a fazer um movimento suicida –e nefasto ao país
17 de agosto de 2020, 22h45
No dia 11 de fevereiro de 2004, em jantar com jornalistas no Palácio da Alvorada, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva vaticinou que o Brasil estava caminhando para um bipartidarismo semelhante ao que existe em outros países. “O caminho natural é ter bipartidarismo, dois ou três partidos, como na Alemanha, na Inglaterra”. Isso, segundo Lula, produziria partidos mais “ideológicos” e menos “fisiológicos”.
Estou cada dia mais convencida de que foi um erro criar na população a falsa ideia de que a polarização era um problema, facilitando o caminho para que uma terceira força, que estava nas sombras, se impusesse
A reação à percepção de Lula foi imediata. “Esse negócio de Lula falar em bipartidarismo é esquisito, até perigoso num país como o nosso. Dois partidos nos EUA é uma coisa. No Brasil outra bem diferente”, escreveu uma colunista. “Sem essa de bipartidarismo.”
Lula ganhara a eleição em 2002 com 61,27% dos votos válidos, e em todos os Estados do país, com uma única exceção: Alagoas, terra do rival do petista em 1989, quando perdeu para Fernando Collor. Os alagoanos preferiram José Serra, do PSDB. Na época, pouca gente reclamou do mapa inteiramente vermelho com um tracinho azul. Estava todo mundo feliz, raro momento de trégua.
É a partir de 2006, pós-escândalo do mensalão, que a chamada “bipolarização” começa. De um lado do ringue, em vermelho, o PT. Do outro lado, em azul, o PSDB. Com a forte oposição da Globo e dos jornalões, tradicionalmente ligados ao tucanato, os petistas perderam o apoio nos Estados do Sul, parte do Centro-Oeste e em São Paulo. Mas Lula ainda ganhou de Geraldo Alckmin por 60,85% a 39,17%.
Quatro anos depois, com Dilma Rousseff, a coisa se acirra e a tal “divisão” do país se mostra definitiva. Dilma ganha de José Serra por menos de 7 pontos percentuais, em 2010, e por menos de 4 pontos para Aécio Neves em 2014. E o discurso de que o bipartidarismo era “perigoso” para o país que vimos no início deste texto ganha força total. “A polarização é nociva”, “a polarização é ruim”, “o Fla-Flu não é bom para o Brasil”… Quantas vezes você não ouviu ou leu análises assim?
Em 2018, saímos finalmente da polarização entre o PT e o PSDB e o Brasil melhorou em quê? Eu, que nunca reclamei do Fla-Flu, estou cada dia mais convencida de que foi um erro criar na população a falsa ideia de que a polarização era um problema, facilitando o caminho para que uma terceira força se impusesse. Poderia ter sido Marina Silva ou Ciro Gomes, mas a “terceira via” que emergiu da onda de ódio imposta ao PT “para acabar com a polarização” foi desastrosa: tiraram das sombras uma parcela da sociedade brasileira que estava adormecida, ou pelo menos silenciada. E o mapa da vitória ganhou a cor verde-oliva de Bolsonaro.
PT e PSDB têm sua parcela de culpa nessa tragédia porque foram adversários desleais. O PT errou a mão no embate, ao se utilizar dos marqueteiros como uma espécie de doping, sobretudo em 2014, quando a candidatura de Marina foi bombardeada com acusações que não eram propriamente “do jogo”. Mas o PSDB fez pior, porque, aproveitando a metáfora com o futebol, tinha do seu lado o juiz ladrão e a emissora dona dos direitos de transmissão da partida –pense num jogo onde todos os comentaristas torciam apenas para um dos times. E ainda por cima sabotou o resultado, recorrendo ao “tapetão” para desestabilizar e por fim derrubar uma presidenta legitimamente reeleita.
Tivessem pensado mais no Brasil e menos no poder, PT e PSDB teriam mantido o debate num nível melhor, e consequentemente fortalecido a polarização que havia, democrática, civilizada, positiva para consolidar nossa jovem democracia. Eu tenho amigos tucanos, com quem durante todos estes anos travava discussões acaloradas durante a campanha, mas que depois da eleição seguia a amizade, algo impensável em relação aos seguidores de Jair Bolsonaro. Não tenho amigos bolsominions, e sei que muitos tucanos tampouco querem proximidade com essa galera.
Tenho amigos tucanos, com quem travava discussões acaloradas na campanha, mas depois seguia a amizade, algo impensável com os seguidores de Bolsonaro. Não tenho amigos bolsominions, e sei que muitos tucanos tampouco querem proximidade com essa galera
Entre o PT e o PSDB, escolhíamos com base em projetos. Quem se inclinava mais pela economia aberta, pelo mercado, em favor das privatizações, escolhia o PSDB; quem queria mais justiça social e um Estado forte, escolhia o PT. Eram impensáveis discussões bisonhas sobre quem queria a volta do AI-5 ou quem considerava a tortura de seres humanos algo defensável.
Ao investir no ódio de classe a Lula, ao PT e à esquerda como estratégia para voltar à presidência, o PSDB e sua parceira, a mídia, fizeram um movimento suicida –e nefasto ao país. A aposta destes setores era que, implodindo as instituições, os tucanos voltariam ao poder. Erraram feio: os tucanos encolheram ao patamar de menos de 5% dos votos na última eleição, e quem cresceu foi o conservadorismo, que hoje se beneficia das instituições alquebradas.
Em vez da disputa entre centro-direita e centro-esquerda que tínhamos, o que existe agora é a disputa entre a extrema direita, o fundamentalismo religioso, o moralismo histérico, e o restante de nós que apoiamos a democracia, a Constituição e o Estado laico. Isso sim é uma “divisão” preocupante, “perigosa” para o Brasil. Atualmente não temos segurança nem se haverá eleições em 2022.
Vista com os olhos de hoje, a polarização não era ruim para o país. O fim dela, sim. Sinto saudades do Fla-Flu entre o PSDB e o PT, confesso. Pronto falei. Talvez seja o caso de, todos nós, darmos um passo atrás, tentarmos reconstruir de alguma forma essa configuração que ficou para trás. Mas será que a centro-direita está disposta a retomar o caminho desvirtuado ou continuará a se unir a Bolsonaro em nome da agenda econômica de Paulo Guedes?
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