Carlos Augusto de Araujo Dória, 82 anos, economista, nacionalista, socialista, lulista, budista, gaitista, blogueiro, espírita, membro da Igreja Messiânica, tricolor, anistiado político, ex-empregado da Petrobras.
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Reflexões para Teoria do Estado Nacional: público e privado
Publicado em 28/07/2022Escrito por Felipe Maruf Quintas e Pedro Augusto PinhoLido 165 vezes
Empresas como Google e Meta coletam informações como ditador algum ousara sonhar
"Quando o professor Souza Lima assumiu a cátedra de Medicina Legal, os exames periciais de corpo de delito já eram usuais no Brasil. Mas foi ele quem desenvolveu o ensino prático em laboratório, e inaugurou o primeiro curso de tanatologia forense, ministrado no necrotério da polícia. Essa matéria estuda a morte e o morto; e também o destino legal do cadáver e os direitos sobre ele. Sobre o destino do Valonguinho, os partidários de Floriano achavam que deveria ser a vala comum, sem maiores complicações. Mas o dr. Souza Lima entendia que aquele era um ser humano especial, por suas características morfológicas e comportamentais; e por isso seu corpo seria fonte importante de estudos, devendo constituir-se em um patrimônio da ciência brasileira" (Nei Lopes, Valonguinho, em Nas águas desta baía há muito tempo Contos da Guanabara, 2017).
A diferenciação entre público e privado é uma das principais questões do pensamento político desde a Antiguidade. Ela é fundamental para delimitar o que é político do que não é, o que diz respeito ao bem comum, a todos, e o que diz respeito apenas a indivíduos ou a grupos específicos. Não se pode entender o conceito de política sem atinar para a distinção entre público e privado, pois a política, por definição, se dá no âmbito do público, diz respeito à organização das formas e modos coletivos de vida para a realização do bem comum.
Na Grécia antiga, da qual herdamos o entendimento de política, a diferenciação entre o público e o privado era da maior importância para a definição da cidadania. Como se sabe, apenas eram cidadãos os homens adultos, nativos e livres. Mulheres, crianças, escravos e estrangeiros estavam excluídos do estatuto de cidadania.
Na democracia ateniense, o espaço público e, portanto, a cidadania, estava restrita a um pequeno número de pessoas, que eram politicamente iguais, enquanto aos demais restava o âmbito privado. A dignidade humana e a capacidade de se fazer ver e ouvir estavam associadas ao pertencimento, ao âmbito comum da polis, enquanto a esfera privada era vista como dimensão inferior de existência. Por isso, os cidadãos eram iguais, não importando as suas posses.
Na era moderna, com o advento do capitalismo liberal, a hierarquia entre o público e o privado se inverteu. Com a primazia da propriedade privada no ordenamento político, a esfera privada passa a ser entendida como o espaço por excelência da dignidade e da liberdade humanas. Como se depreende do Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke, a obra magna do pensamento burguês, cidadão é o proprietário.
A propriedade é o resultado do trabalho corporal e, portanto, uma extensão do próprio corpo, tão inviolável quanto esse, cabendo ao poder político defender a vida, a liberdade e a propriedade, entendidas como coextensivas. Diferentemente da polis grega, na qual a propriedade se subordinava à política e o privado ao público, a partir de Locke, e das transformações históricas contemporâneas a ele, a política se subordina à propriedade, o público ao privado.
A história do capitalismo, porém, não seguiu à risca a doutrina lockeana. O capitalismo, como ensina Fernand Braudel, somente se realiza quando é o Estado que expropria o poder feudal dos aristocratas e acompanha a centralização econômica em grandes firmas que, como ensina Max Weber, no processo de centralização política dos modernos Estados Nacionais capitalistas, expropriam os artesãos e produtores independentes.
A própria ética individualista burguesa, fundamental à transição do feudalismo para o capitalismo e à substituição do ócio cavalheiresco pelo ascetismo aquisitivo, enquanto padrão social de conduta, torna-se descartável na medida em que o alto capital deixa de pertencer a indivíduos e famílias e se socializa na forma de sociedade anônima, separando a administração da propriedade.
O burguês, autossuficiente e dono dos seus meios de subsistência, dotado de gênio individual e empreendedor, de autocontrole, de capacidade prospectiva e de cultura média, é substituído pela burocracia gerencial anônima e por megaespeculadores afoitos e irracionais, cujo comportamento em nada difere de viciados em jogatina.
O capitalismo, monopolista por definição, não conhece, na sua cúpula, distinção entre o estatal e o particular, borrando as fronteiras entre o público e o privado. Sistema político-econômico-ideológico voltado para a acumulação de capital, o capitalismo transforma toda a sociedade à sua imagem e semelhança, fazendo do lucro um imperativo não apenas do ambiente de trabalho, mas de todas as instâncias vitais, das relações entre pais e filhos e maridos e esposas até os processos eleitorais e as manifestações culturais.
Da mesma forma que o privado se torna público, uma vez que o enriquecimento privado se torna a medida de todas as coisas, o público se torna privado, pois aquilo que é comum a todos, desde as redes de água e esgoto até o patrimônio histórico e artístico nacional, passa a ser apropriado por entidades privadas associadas ao poder estatal.
No século 20, a emergência da questão social em vários países impôs mediação pública às relações entre o capital e a sociedade, de modo que o Estado deixou a salvo da influência capitalista amplos setores da vida coletiva, como a educação básica, as redes hospitalares, as infraestruturas de energia e comunicações e certas indústrias estratégicas. Podia-se dizer que o Estado Social delimitou as atividades públicas e deu a elas uma dinâmica distinta das privadas.
Com o neoliberalismo, porém, essas fronteiras foram apagadas, e o que era público foi capturado, com a anuência das autoridades estatais, por fundos de investimentos e gestores de ativos interessados em transformar em capital aquilo que era atividade social, financeirizando os mais ínfimos recônditos da existência humana, seja social ou individual. Mesmo os setores e atividades que permaneceram estatais passaram a funcionar como se privados fossem.
O sentido profundo de privatização não diz respeito somente à simples transferência formal da propriedade do Estado e de cooperativas para grupos financeiros corporativos, mas, principalmente, à modificação da dinâmica e aos objetivos do seu funcionamento, passando a priorizar a capitalização, o lucro, ao atendimento das funções sociais e não-econômicas.
O capitalismo neoliberal é, assim, o capitalismo puro, sem os anteparos coletivos garantidos pelo Estado Social. Enquanto tal, é um sistema totalitário, pois subordina a totalidade das relações sociais a um único princípio, o da lucratividade, eliminando, pela força e/ou pela fraude, tudo aquilo que não se incorpore a essa dinâmica. Não havendo mais um caráter público a ser resguardado e um bem comum a ser realizado, a política passa a ter como objetivo o crescimento dos bens particulares dos grandes proprietários, degenerando na politicagem do toma-lá-dá-cá, em que princípios e valores se tornam moeda de troca para aferição de vantagens pessoais.
Os partidos passam, então, a se assemelhar a diferentes peças de roupa à mostra na mesma loja, disponíveis ao gosto do cliente, no caso o eleitor, que, pagando por uma ou outra, estará dando dinheiro para o mesmo dono. E, para que esta fraude à escolha não se evidencie, há o simulacro de democracia da Constituição dos Estados Unidos da América (EUA), promulgada em 1787 e ratificada dois anos depois pelos 13 estados americanos, com o acréscimo de 1791 e as 27 emendas em toda sua existência, que só elege candidatos que não alterem o mesmo sistema plutocrático de poder, seja também rico ou pobre, branco ou negro, homem ou mulher (até hoje sem representante) para presidência.
Simultaneamente, a esfera privada é dissolvida pela ação invasiva dos grandes conglomerados capitalistas, que, por meio de novas tecnologias, as quais o poder dominante torna necessárias e inescapáveis para as pessoas comuns, aperfeiçoam os sistemas de vigilância e controle tanto em nível coletivo quanto em nível individual.
Hoje, empresas como Google e Meta são capazes de supervisionar e coletar informações íntimas das pessoas de maneira tal que nenhum ditador do passado jamais ousara sonhar. O pesadelo distópico do Grande Irmão não veio pelo comunismo, como receavam os liberais, mas pelo capitalismo neoliberal; não pelo Estado onipotente, mas pelas corporações onipresentes, inclusive dentro do Estado, transformado em correia de transmissão dos seus interesses e desalojado de qualquer conteúdo nacional e popular.
Nos tempos de capitalismo selvagem, a diferenciação entre público e privado torna-se civilizatória, porque significa, acima de tudo, a contenção do poder capitalista e a reorganização da sociedade em bases e termos mais propícios ao desenvolvimento das habilidades e capacidades humanas que não se enquadram na lógica do lucro e da acumulação capitalista.
Distinguir o público e o privado significa rearticular o sentido de bem comum, a ser realizado por uma política de fato nacional, despida de privatismos, de modo que se estabeleça um âmbito comum de ação coletiva estruturada nos marcos da nacionalidade.
Evidentemente não se trata de restabelecer as assimetrias da Antiguidade grega, mas de reelaborar o domínio público em bases solidaristas e humanistas, em que as pessoas valham pelo que são e fazem de si e não pelas circunstâncias em que nasceram.
Também significa restaurar a privacidade perdida com o advento da tecnocracia neoliberal e oferecer aos indivíduos a devida proteção ao que constitui a sua intimidade e subjetividade, sem os controles e manipulações perpetrados pela tecnocracia neoliberal. E mais, impedindo que esses domínios se imiscuam com a política, em submeter as pessoas a servidões de toda espécie. Diferenciar o público e o privado significa, pois, salvar a política e o ser humano das compulsões e distorções do poder ilimitado do capitalismo totalitário financeiro.
A questão que se esconde em roupagens de liberdade, de manifestações de autenticidade e amplitude de escolha, o extremado individualismo, é na verdade do argentarismo contra a própria opção de vida, sufocada pelos recursos das "Open Societies" aos identitarismos.
Créditos: Reprodução / Tribunal de Contas da União
No período anterior a Bolsonaro, entre 2015 e 2018, o rombo foi bastante inferior ao que foi apurado a partir de 2019. Cerca de R$2,6 milhões foram desviados a partir de 15 militares multados pelo TCU.
O general da multa de R$ 600 mil
A maior multa aplicada pelo TCU foi para o general José Rosalvo Leitão de Almeida, quando era assessor especial do Departamento de Engenharia e Construção (DEC) do Exército.
Foi condenado junto de outro general, Paulo Roberto Dias Morales, - além de três coronéis e um suboficial - por terem realizado conluios com empresas que promoveram fraudes e desvios de verbas públicas de convênios firmados entre o DEC e o Departamento Nacional de Infraestruturas de Transporte (Dnit). Segundo relatório do TCU, valores chegam a R$ 17,5 milhões. O General Morales também teve uma multa robusta, de R$440 mil.
Mesmo com a condenação tendo ocorrido em 2019, o general Leitão continuou em sua função comissionada no Ministério da Defesa até o ano passado.
Os casos dos outros dois generais
Além de Morales e Leitão, também foram condenados os generais José Ricardo Kümmel e Gilseno de Souza Nunes Ribeiro.
Kümmel foi pego utilizando recursos destinados para reparar antenas de oito unidades militares para reformar o imóvel onde morava, incluindo áreas de piscina e churrasqueira.
Para Ministro do TCU ouvido pela Folha, o alto número de condenações deverá servir como um recado aos militares que nos anos de governo Bolsonaro aumentaram exponencialmente sua participação no Executivo, incluindo cargos comissionados e destinados a funcionários concursados.
Dia 11 de agosto, a Faculdade de Direito da USP será palco da Defesa da Democracia.
Era quase um folclore, piada, nos últimos anos, o debate sobre a questão do terraplanismo, de que a terra não era redonda. A Carta às Brasileiras e brasileiros em defesa do Estado de Democrático de Direito é a prova maior e definitiva de que a terra é redonda, circular, e ela não gira, capota.
É um documento que vai entrar para história por seu apelo na defesa da Democracia e das instituições, pela garantia das eleições, dos eleitos e dos processos políticos legítimos, com os resultados das urnas respeitados e de que estas são seguras e que em 26 anos de uso nenhuma fraude foi detectada, dando garantia e confiança às eleições, um exemplo de rapidez e eficiência, reconhecido em todo o mundo, menos pelo Bolsonaro.
Não obstante, é importante refletir sobre esses anos selvagens, e perceber que há uma certa ironia (histórica) de que hoje todos nós nos juntemos em defesa do Brasil, uma tentativa de repor o país nos eixos.
Há pouco mais de seis anos, parte dos signatários da Carta estavam assinando manifestos, fazendo atos públicos, artigos, que na prática rompiam com o Estado Democrático de Direito, no que tem mais de essencial, o respeito aos eleitos. Muitos se juntaram pela cassação de um mandato presidencial de uma presidenta, Dilma Roussef, eleita pelo voto popular, numa farsa denominada “pedaladas fiscais”, que o maior beneficiária dessa armação, GOLPE, o Sr. Michel Temer, diz candidamente que ela é “honestíssima, mas não soube se relacionar”.
O GOLPE de abril de 2016, que apeou Dilma da presidência, teve como impulsionadora, a famigerada Operação Lava Jato (boa parte dos signatários apoiavam e aplaudiam), que em dobradinha com a grande mídia, conspiraram contra Dilma e o PT, divulgaram áudios ilegais, por exemplo, criaram um clima e deu base a criminalização e escandalização contra Lula e o PT, logo em seguida, condenaram (Mídia e Lava jato) Lula, o impedindo de disputar as eleições de 2018, em que as pesquisas apontava-o como líder.
Na prática esses movimentos pariram Bolsonaro e sua trupe, que venceu as eleições e produziram esse 3 anos e 7 meses de absoluto caos, uma administração desastrosa, um presidente indigno, com comportamento desumano, que afronta as instituições, as pessoas, comete todos os dias crimes de responsabilidades, sem que lhe dessem um freio.
Até mesmo os maiores protagonistas da farsa do Golpe, hoje assinam a Carta, um silêncio ensurdecedor sobre os eventos recentes.
Obviamente que ninguém vai constranger ninguém, dia 11 de agosto de 2022, estaremos todos e todas na Faculdade de Direito da USP, pois há uma causa maior que nos reúne, que possamos dali criar regras claras para evitar que de época em época, estejamos emparedados por ameaças contra o país, sua soberania, sua democracia e suas instituições. Um compromisso contra todo tipo de GOLPE, tudo que fuja da regra legal e que não abra caminho para déspotas medíocres como Bolsonaro e outros.
Importante também nos unirmos, para que Lula vença no primeiro turno, não dando nenhuma chance para um questionamento ou movimentos contras as eleições. O Bolsonarismo se esvaziará com sua derrota e se houver um amplo campo de defesa da Democracia.
Independente de opinião política ou ideologia pessoal, alguns acontecimentos extrapolaram os limites territoriais de onde aconteceram, dando ao mundo novas perspectivas e muitas vezes mudando rotas. A revolução russa, assim como a revolução francesa, é considerada um dos mais importantes acontecimentos da história contemporânea, e significou a queda da monarquia russa que vinha como a principal organização da região a séculos, dando seu lugar a um novo modelo de governo, que até então, era novidade e ainda não fora tentado: o Comunismo.
Mas para entendermos como tal fato se consumou, devemos antes conhecer algumas figuras como Vladmir Lenin e Leon Trótski, que adaptaram a obra de Karl Marx e Friedrich Engels para realidade feudal da Rússia daquele período. A crise que afetava a sociedade russa no ano de 1917 (ano da revolução) era grave e não tinha perspectiva de melhora, pois haviam sido centenas de anos de um governo autoritário centrado em uma monarquia absolutista, o acumulo de erros administrativos drenavam cada dia mais a popularidade do Czar, e embora a revolução de fato ocorreu somente em 1917, os indícios de que a sociedade encaminhava para esse fato eram diversos. É nesse contexto que conhecemos mais o revolucionário russo Vladmir Lenin, líder do movimento Bolchevique, que era a junção da classe operaria e camponesa russa, e defendiam a revolução armada para chegar ao poder e implantar um governo focado no trabalhador.
Os Bolcheviques no que lhe concerne, eram uma das duas divisões que existiam no Partido Operário Social Democrata russo, e sua outra ala, era conhecida como Mencheviques, que eram a menor parte do partido, liderados por Plekhanov, defendiam o evolucionismo e conquista do poder por meios pacíficos como eleições, além de ser compostos de uma parte burguesa, que detinham ideias liberais. Desde sua criação, o partido era dividido e diversos debates aconteciam, mas sem um consenso sobre qual linha política seguir, esse fator foi predominante para retardar a revolução, mas acabou caindo em janeiro de 1905, quando um grande grupo de pessoas participavam de manifestações pacificas em frente ao Palácio de São Petersburgo, uma das sedes do governo, reivindicando melhorias nas condições de trabalho, democratização política e respostas sobre a crise enfrentada. Em meio a esse cenário, as tropas do czar acabaram abrindo fogo contra a multidão, matando mais de mil pessoas a queima-roupa, no episódio que ficou marcado como Domingo Sangrento.
Estava dada a largada para uma série de protestos (alguns com alto nível de violência) em todo país, e a situação que já era grave, piorou ainda mais quando a Rússia perdeu a guerra contra o Japão ainda em 1905, deixando a economia em frangalhos. Após os fatos, o czar criou um espaço para debate político chamado de duna, e transformou sua monarquia em uma monarquia ‘’parlamentarista’’, fato esse que trouxe os operários e cidadãos comuns para o debate publico, tal ato não era necessariamente uma ação para ouvir a sociedade, e sim conter sua agitação. A estratégia foi bem sucedida, e funcionou até a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial, quando se tornou membro da Tríplice Entente contra o Império Austro-Húngaro, sofrendo derrotas seguidas e desorganizando aquilo que já estava ruim, trazendo mais uma grande crise econômica como já havia sido vista durante o ano de 1905, e a percepção popular se deu conta de que o czarismo estava arruinado, e nenhuma solução pacifica poderia funcionar para conter os desastres administrativos feitos pela monarquia, e em março de 1916, foi deflagrado um movimento revolucionário iniciado em São Petersburgo, com greves que se espalharam por quase todos os centros industriais russos, em união com os camponeses.
Os militares passaram a apoiar o movimento, pois a própria inserção militar russa na grande guerra era considerada loucura pela maior parte do exército, que também começaram a reivindicar o fim do governo de Nicolau II, e em fevereiro de 1917 o czar abdica do trono. Após isso, foi formado um Governo Provisório, sob chefia de Kerensky, que passou a ter problemas com a ala socialista revolucionária, já que o mesmo, era considerado um liberal, e acabou exilando diversos radicais socialistas. Nesse contexto, até mesmo Lenin e Trotsky (líderes revolucionários bolcheviques) acabaram por serem exilados, e começaram uma espécie de segunda onda revolucionaria, defendendo lemas como ‘’paz, terra e pão’’ e ‘’todo poder aos sovietes’’, com intuito de remover os Liberais do poder e concentrar o governo nas mãos dos revolucionários socialistas.
No dia 7 de novembro, os operários e camponeses se uniram a Lenin e tomaram o poder, a partir disso, as decisões do governo provisório estariam centradas nas mãos dos Bolcheviques, e como primeira atitude, redistribuíram terras e lotes latifundiários a camponeses, estatizaram os bancos, estradas de ferro e industrias, tirando das mãos da indústria privada e colocando sob domínio operário. Em seguida, em 1918, foi assinado o tratado de Brest-Litovsk com as potências centrais da grande guerra, que garantiam a retirada pacífica da Rússia da grande guerra. Os primeiros anos do governo bolchevique foram marcados por uma intensa guerra civil, que continuava a drenar a economia russa, e como medida para evitar qualquer possibilidade de reabilitação monarquista na Rússia, o czar e sua família foram mortos em julho de 1918.
Em seguida, Trotsky criou o Exército Vermelho, composto por camponeses e operários para enfrentar os nobres e burgueses liberais, tendo êxito no objetivo e garantindo a soberania Bolchevique no poder. A União Soviética chamou esse primeiro momento como Comunismo de Guerra, feito de uma total estatização econômica e social, criando um estado forte e total, que garantiu por 4 anos a soberania soviética sobre oponentes políticos e militares, entretanto, continuava a afundar a economia do país que não conseguia sobreviver apenas de produção interna sem nenhum tipo de lucro sobre produtos, para restaurar a confiança no governo, em 1921 foi criada a NEP (nova política econômica) que permitia a entrada de investimentos estrangeiros e a retomada de empresas privadas em território russo, garantindo o crescimento industrial e agrícola na Rússia, em outras palavras, a NEP foi um sucesso.
Em 1922 com o caminho quase totalmente livre de adversários políticos e com a economia novamente rodando em novos moldes, mesclando o comunismo com o comércio privado, foi estabelecida então a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) sob a liderança do revolucionário Lenin. Durante quase dois anos, parecia que o novo modelo de governo estava finalmente chegando em seu momento mais confortável, e o país estava cada vez mais organizado político/economicamente, mas o momento de paz durou pouco tempo, e Lenin morre em 1924, iniciando uma nova luta interna pelo poder, dessa vez entre Trotsky, parceiro e grande estudioso comunista, e Stalin, general militar comunista.
Ampla mobilização popular sacudiu acordo que entrega saneamento a corporação internacional – e pode derrubá-lo em referendo. O que isso revela sobre as “smart cities”, a captura do Comum pelo capital financeiro e a cidadania insurgente
Por Reginaldo Luiz Cardoso | Colaborou: Maurício Ayer
Na histórica cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, um referendo pode reverter a privatização da água. A captura do abastecimento público foi realizada em 2019, por meio de um acordo a portas fechadas entre a prefeitura e a Saneouro, nome-fantasia de uma megacorporação coreana. Mas provocou revolta, tão logo veio a público. Alguns detalhes do negócio atiçaram a indignação na antiga Vila Rica dos inconfidentes. As contas d’água – hoje fixas, de R$ 26,77 mensais por moradia ou comércio – poderia saltar a valores dezenas de vezes maiores. E para marcar a mercantilização, as multicentenárias ruas e calçadas foram feridas a golpes de britadeira, para instalação de hidrômetros.
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A insurgência social assumiu formas múltiplas. A resistência dos moradores impediu a devastação hidrométrica. Em meio às ameaças da PM, um carro da Saneouro ardeu em chamas. Em 2020, elegeu-se um prefeito contrário à privatização – embora, como se verá, de convicções volúveis. Os vereadores viram-se forçados a promover uma CPI. Um Comitê Sanitário mais radicalizado está promovendo a destruição física das contas e a convocação a não mais pagá-las. Aprovado pela Câmara, o referendo depende agora apenas de uma formalidade: a marcação da data, pelo TRE mineiro.
Os fatos vêm sendo, previsivelmente, ocultados pelas mídias de mercado. Mas têm enorme relevância. Vinte e um anos anos depois da Guerra da Água em Cochabamba (Bolívia) e depois de a captura privada ser revertida em dezenas de cidades do mundo, o Brasil pode entrar na luta para desmercantilizar o acesso ao líquido que é símbolo da vida. Bem no momento em que uma lei proposta pelo governo Bolsonaro, e aprovada pelo Congresso, ameaça entregar tudo ao mundo corporativo. Este artigo narra os principais acontecimentos da longa luta de Ouro Preto e tira conclusões ligadas ao exame sociológico e político das sociedades contemporâneas e de suas lutas.
São várias as razões alegadas para tal processo de concessão. Uma delas, de que a inexistência de controle do consumo de água no Município provoca a escassez e até mesmo o desabastecimento em alguns pontos da cidade. Isto numa cidade em que água existe em abundância e cuja Prefeitura, mediante uma taxa mensal irrisória, fazia o fornecimento universal de água aos seus cidadãos. O que equivale a dizer que não havia hidrômetros instalados nos imóveis do Município. Mas, em nome da racionalidade técnica, da sustentabilidade, da desoneração dos gastos públicos, fez-se a operação via edital licitatório de concessão plena de água e esgoto. E entrega-se o controle da água a uma transnacional interessada em fazer de Ouro Preto uma plataforma para expandir sua atuação no país.
Neste sentido, é perceptível como o mercado financeiro global e as redes de informação atravessam e capturam as cidades. Não houve acaso na escolha de Ouro Preto como o lugar inicial das atividades da holding sul-coreana no estado de Minas Gerais. Foi operada como vitrine. Uma vitrine que tem o título de Monumento Nacional (1933) e o de Patrimônio Mundial pela Unesco (1980). Fato que foi destacado no site da empresa: “A cidade histórica de Ouro Preto será operada pela GS Inima Brasil” (A CIDADE, 2019).
Em todo caso, o rumo do território está posto em disputa. Dito isto, como é construída a narrativa da hegemonia do mercado sobre a sociedade? É possível construir uma narrativa contra-hegemônica, uma melhor forma de contar histórias, que tenha o exercício da cidadania como protagonista, conforme propõe a filósofa da ciência Isabella Stengers (2015)?
Rebelião em Vila Rica: uma outra história?
Um evento-marco dessa história ocorreu no dia 4 de julho de 2019, uma quarta-feira fria, quatro dias antes da comemoração dos 308 anos da fundação da cidade de Ouro Preto. Em cerimônia a portas fechadas, o então prefeito Júlio Pimenta (MDB) reuniu-se com um grupo de autoridades políticas locais e empresários para celebrar a assinatura da concessão plena do sistema de água e esgoto do município por exatos 35 anos. Os que participaram do petit comité saíram dizendo tratar-se de “um marco para todos nós”, “um grande passo para a cidade”, “um divisor de águas” (SILVA, 2019). O edital licitatório finalizado em 1º de março de 2019, foi arrebanhado por um candidato único, um consórcio entre as empresas GS Inima Brasil Ltda, IMP S/A e EPC S/A. Poucos meses depois, em janeiro de 2020, nascia a Saneouro, nome fantasia do grupo.
Retraçando a constituição deste consórcio, temos: uma empresa sediada em Seul, que controla uma empresa espanhola, que, por sua vez, exerce o mesmo tipo de controle através de uma empresa no Brasil, a qual, por sua vez, ao se consorciar com duas empresas mineiras, passou, via concessão plena, a ter o direito de explorar, por 35 anos, o sistema de água e esgoto de um município em Minas Gerais. Traduzindo de forma explícita: uma holding sul-coreana, a GS Group (GS, de Golden Star) através de seu braço GS E&C (Engineering and Construction), controladora da GS Inima Environment, sediada na capital espanhola, Madri, cuja subsidiária brasileira GC Inima Brasil Ltda., junto com as empreiteiras mineiras, sediadas em Belo Horizonte, a MIP Engenharia S/A e a EPC Engenharia Projeto Consultoria S/A, uniram-se no consórcio que veio a ser conhecido como Ouro Preto Serviços de Saneamento S/A – Saneouro, criada unicamente para gerir e operar a concessão de 100% do sistema de água e esgoto do Município de Ouro Preto.
Até então, em Ouro Preto, o saneamento básico era responsabilidade do Serviço Municipal de Água e Esgoto (Semae), criado através da Lei Municipal nº 13 de 24 de fevereiro de 2005. Este fato é digno de nota, já que em cidades do porte de Ouro Preto o serviço de água e esgoto, geralmente, está atrelado à Secretaria Municipal de Obras. Passava-se da chamada administração direta para uma autarquia. O Semae produziu uma série de melhoramentos ao longo de seus 15 anos de existência. Durante a gestão do prefeito Júlio Pimenta, o Semae sofreu um ataque neoliberal amplamente conhecido: sucateamento de um serviço público, consequente endividamento e, por fim, privatização, vista então como única saída plausível. O órgão foi extinto após a assinatura do contrato de concessão plena entre a Prefeitura e a Saneouro.
Este “marco”, “o grande passo”, feito com o aval dos poderes Executivo e Legislativo da cidade, ocorreu sob a justificativa – inconsistente, uma vez que o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) estava largamente desatualizado – de que o consumo era de 400 l/hab./dia, incluindo perdas por vazamentos e desperdícios, estimados em 50 %, e de que pouco mais de 1% do esgotamento sanitário sofria tratamento adequado etc. A resolução deste problema acarretava a imediata hidrometragem do consumo dos cidadãos da cidade e a utilização de equipamentos de alta tecnologia para tratamento da água, conforme salientou o CEO da GS Inima Brasil (SILVA, 2019).
Com a pandemia de covid-19, a situação calamitosa vivida no resto do país obviamente também incidiu diretamente em Ouro Preto: falta de vacinas, debates inúteis sobre estes ou aqueles medicamentos, letalidade crescente e a quarentena. Evidentemente, diante deste quadro caótico – crise sanitária, crise econômica, crise social etc. –, todo o controle cívico parecia ter arrefecido.
Indiferente a isto – ou por causa disto –, a Saneouro, sem o menor know-how e sensibilidade com o momento e no lidar com o patrimônio histórico material do lugar, começou a esburacar ruas, abrir valas e mais valas nas portas das casas dos cidadãos, e, principalmente em seu centro histórico, a quebrar lajotas de passeios centenários etc. (MACHADO, 2021). Esta operação de guerra era a execução das obras de instalação dos hidrômetros que, ao contrário de outros sistemas, foram instalados nos passeios, fora dos imóveis e não no seu interior, deixando-os à mercê da intervenção, para o bem e para o mal, de qualquer um alheio ao estabelecimento residencial ou comercial.
A desmedida foi tamanha que o Ministério Público, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Defesa Social foram acionados pela população (MACHADO, 2021). Conseguiu-se apenas aplacar a fúria avassaladora da empresa, uma vez que a mesma apresentou uma série de atestados e licenças cabíveis.
Cidade inteligente e cidadania insurgente
O comemorado marco é emblemático de um processo de progressiva inserção de uma cidade como Ouro Preto no “mundo do indistinto”, um espaço indeterminado no qual as ações pública e privada mesclam-se de tal modo que se torna imperceptível o que é próprio do campo de cada uma delas. Integrada na ideologia neoliberal, esta prática camufla os conflitos políticos reais e configura um cenário de poder sem centro. Um sintoma do novo design do Estado, extemporâneo às atividades cotidianas das pessoas. Isso nos revela um importante capítulo do movimento do capital, totalmente autônomo da zona civil, não nos escapando que o que se apaga e apazigua, com este dispositivo, é a dimensão política, portanto, pública.
Assim, a cidade apresentada como um espaço de e com diferentes escalas de consumo surge como um ideal a ser alcançado, algo capaz de fazer com que a maioria absoluta aceite consensualmente as suas condições através de um deslizamento de sentido em que tudo o que era distopia passa a ser desejado, em um abraçar voluntário e fantasmático de um mundo apenas visto e percebido enquanto negócio. É neste polo que se localiza o conceito de “cidade inteligente”, entendida em uma acepção que contém um sentido claramente segregador, um evidente desdobramento da lógica do condomínio fechado, que tanto prosperou nas cidades a partir dos anos de 1990.
Observa-se um processo de desterritorialização urbana em escala planetária, contínua e acelerada, que produz uma geografia do poder até então inimaginável, como vimos ao rastrear o caminho decisório que está por trás do consórcio Saneouro. Aos cidadãos resta criar mecanismos práticos de mobilização cidadã que estanque esse processo, como, por exemplo, a “cidadania insurgente” (HOLSTON, 1996, 2013).
Resistência e ação popular direta
Voltamos a Ouro Preto, agora ao lado da população ouro-pretana, que desde a publicação do edital de licitação já demonstrava a sua insatisfação com a medida. O advogado da Federação Associativa dos Moradores de Ouro Preto (Famop), Guido de Mattos, relata: “Havia um ‘consenso’ no meio político de que a cidade precisava tratar seu saneamento e que a hidrometração era necessária. Contudo, quando começaram as simulações de cobrança, percebeu-se que o valor tarifário era absurdo e muito acima dos valores cobrados em outras cidades”. No dia 12 de julho, o Jornal O Tempo noticiou que, pelas simulações, famílias que então pagavam R$ 22 passariam a pagar mais de R$ 1.000. Para Guido, a mobilização social que se instaurou na cidade foi construída a partir daí.
As manifestações dos movimentos sociais foram tão intensas que a Saneamento Ambiental Águas do Brasil S/A (SAAB), empresa que pretendia concorrer ao contrato, retirou-se do processo licitatório. Segundo um representante da empresa, “a reação popular muito forte em relação ao serviço, assustou a empresa”, que acabou desistindo.2
A população, que não foi consultada sobre a decisão a ser tomada ou das soluções alternativas que poderiam ter sido escolhidas, prontamente começou a tomar uma série de ações concretas. Entre elas, nas eleições do ano seguinte, expulsou da Prefeitura o então alcaide, que concorreu à reeleição. E o sucessor, Angelo Osvaldo de Araújo Santos (PV), foi eleito com a promessa pública de reverter o processo. Em um de seus panfletos de propaganda lia-se o seguinte: “Encerrar o contrato com a Saneouro e a volta com o Semae é a única solução”.
Ao tomar posse, o prefeito Angelo Osvaldo declarou que estava consultando notáveis juristas a respeito da reversão do processo de licitação. Ante a hesitação do Executivo Municipal frente às obras que, segundo a população, deveriam ser embargadas, as associações de bairros e dos distritos começaram a se articular. A ação imediata foi direcionada à Câmara Municipal. Pressionada pelos manifestantes, a Câmara atendeu à demanda popular instalando em 9 de março uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)3 para investigar o processo licitatório que resultou na concessão.
Entre os movimentos sociais que protagonizaram a luta pela remunicipalização do sistema de água e esgoto do Município, cabe destacar, primeiramente, o Comitê Central de Mobilização, uma reunião de partidos de esquerda, sindicatos, Famop, movimentos sociais de mulheres, coletivos antirracistas etc. Outro movimento importante foi o Comitê Sanitário de Defesa Popular de Ouro Preto, Mariana e região, organizado por anarquistas e lideranças de bairros.4As forças foram se somando e hoje reúnem mais de vinte movimentos, organizados em uma federação.5
Marilda Dionísia é representante dos coletivos Mulheres do Morro e Mãos Dadas, este último criado durante a pandemia para recolher e distribuir cestas básicas para as centenas de famílias que perderam seus empregos. Para ela, o contrato tem de ser anulado, pois se trata de uma questão de Saúde Pública. Além do mais, considera que é o próprio município que deve gerir as águas, um direito humano. “Vai cobrar? Vai. E é até justo, mas o investimento e a arrecadação fica no próprio município”. A privatização da água agravaria a já trágica situação da população pobre da cidade: “Ouro Preto vive um momento muito pesado. Quem não tem dinheiro para comprar comida, vai ter dinheiro para pagar água?”, questiona. Segundo Marilda Dionísia, o problema de Ouro Preto não é falta d’água e sim de má distribuição (isto é, má administração, incúria pública…). Para reforçar seu argumento, a moradora do Morro de São Sebastião, exemplifica com o seu território: “é aqui que nasce o rio das Velhas” (um importante afluente do rio São Francisco).
Com a CPI rolando na Câmara Municipal, os movimentos intensificaram a luta de pressão. No dia 28 de maio, publicaram conjuntamente a “Carta do Povo de Ouro Preto”, dizendo que:
“A privatização da água, se cabalmente completada pela atual gestão da prefeitura, além da continuidade da mais descarada política entreguista de nosso patrimônio, representará a retirada de um direito básico da população: o direito de acesso à água potável. A cobrança proposta afetará de forma mais grave os mais pobres, levando ainda mais miséria para a população, que já sofre todas as mazelas da maior crise econômica, social, política e sanitária da história.”
A Carta é incisiva ao questionar a postura do prefeito que, hesitante em relação aos seus compromissos de campanha, passou a se declarar “defensor das privatizações e das parcerias público privadas, demonstrando que não fará nada para impedir o roubo de nossa água, senão que arrastado por forte mobilização e pressão do povo”. Os movimentos enfatizam que não faz sentido falar em “falta d’água” como se a região não fosse rica em fontes naturais. Porém, a indiscriminada e secular atividade de mineração na região, causadora de imenso impacto sobre as fontes de água, não parece ser tratada com o mesmo rigor que o consumo doméstico passaria a ter com a privatização: “A falta d’água é causada pelo esgotamento dos lençóis freáticos devido ao volume de água extraído pela atividade minerária. Nossa água escorre diuturnamente pelos minerodutos da Vale, onde não há hidrômetros nem se fala em desperdício”.
Cerca de dois meses depois, na noite de 24 de julho de 2021, manifestantes ocuparam a Praça Tiradentes, em frente à Câmara Municipal, decididos a enfrentar o frio das noites de inverno e ali permanecer acampados até tirar a Saneouro do controle do sistema de águas e esgotos da cidade. O acampamento, iniciado pela Ocupação Chico Rei, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), à qual se somaram outros movimentos sociais, tinha um objetivo imediato e claro: não dar um centímetro de trégua aos vereadores na consecução dos trabalhos da CPI. Devido à pandemia, em acordo com as autoridades sanitárias, cada movimento montou uma única barraca – e elas se contavam às dezenas.
Em meio a toda essa movimentação sociopolítica, a Saneouro fez ouvidos moucos e continuou a instalação dos hidrômetros. No entanto, em vários pontos da cidade e em alguns distritos, funcionários do consórcio foram recebidos hostilmente pelas respectivas populações e expulsos ou impedidos de instalar os hidrômetros. Diante disso, equipes da Saneouro passaram a ir aos bairros acompanhadas de policiais militares (PMMG) com o objetivo de intimidar e reprimir os cidadãos que não deixassem os técnicos da empresa instalar os hidrômetros. Ao contrário do esperado, os cidadãos do bairro Pocinho, além de barrarem a instalação, fizeram uma ação de resposta, incendiando uma viatura da empresa uma semana após a tentativa de repressão. Largamente retratado nas redes sociais, o ato aconteceu em 28 de setembro de 2021. Não há notícias de prisões ou ações semelhantes (SOARES, 2021a). Os pontos de resistência não amainaram. Enquanto isso, nos sites das empresas consorciadas reinava a paz dos cemitérios. Tudo ali transpirava normalidade.
A vigília dos movimentos na Praça Tiradentes durou 74 dias e só terminou com a aprovação do relatório final da CPI. Em 5 de outubro de 2021, os vereadores aprovaram por unanimidade o Relatório Final, que recomendava, dentre outras medidas:
“Sejam adotadas as providências administrativas necessárias para a anulação da Concorrência Pública 006/2018 e do contrato de concessão dos serviços públicos de abastecimento d’água e esgoto sanitário devido às irregularidades apontadas, com a assunção dos serviços pela Administração Pública” (CÂMARA, 2021, p. 69-70).
Junto com o Relatório, assinaram ainda, por unanimidade, uma emenda aditiva indiciando o ex-prefeito Júlio Pimenta, responsável pela contratação do consórcio, por improbidade administrativa (SOARES, 2021b). Neste mesmo dia, ao lado dos vereadores, os movimentos sociais, representantes de partidos, militantes e moradores fizeram uma caminhada para a entrega do Relatório Final ao chefe do Poder Executivo – o prefeito –, e ao Poder Judiciário, – o promotor público da Comarca, representante do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Marilda Dionísia destaca que a CPI ajudou a reforçar a luta, pois, se no princípio a maioria dos vereadores relutavam em aprofundar a investigação, com a pressão popular ela teve um resultado muito além do imaginado. Só estranha o fato de o atual prefeito até agora não ter assinado (homologado) o Relatório Final.
Os dois vereadores mais atuantes durante a CPI, Júlio Gori (PSC) e Wanderley Kuruzu Rossi Jr. (PT), em reunião com este autor, em 14 de julho de 2022, véspera do recesso parlamentar, reafirmam este ponto de vista: “O mais triste é que até hoje a nossa CPI não teve um parecer nem do Ministério Público nem da Prefeitura”.
Para além dos hidrômetros
Em dezembro de 2021, a Saneouro anunciou que, a partir de janeiro de 2022, passaria a cobrar as tarifas. Foi impedida judicialmente pela Câmara Municipal, pois não havia o mínimo de 90% de hidrometração, condição sine qua non do contrato de concessão para início da cobrança. Segundo informe da Prefeitura (COELHO, 2021), havia, àquela altura, somente 73,57%, e afirmava, ainda, que este fato era resultado da incapacidade técnica e/ou falta de estudos preliminares por parte da empresa. Em maio de 2022, a Saneouro anunciou que já havia condições para a cobrança das tarifas e que, a partir de julho, passaria a cobrá-las. Um parecer da Câmara Municipal indicou 83% de hidrometração. Ato contínuo, a população, via seus representantes, responde a isso afirmando que não havia esta possibilidade aritmética, dadas as milhares de recusas e impedimentos, por parte da mesma, de instalação dos hidrômetros.
Desta vez, é a Saneouro que entra na justiça afirmando o seu direito de passar a cobrar as tarifas. Incrementa o quiproquó. As associações vicinais de bairros e distritos unem-se em torno de uma federação, a Força Associativa dos Moradores de Ouro Preto (Famop), o que lhes proporcionou uma maior agilidade na tomada de decisões. E é sob esta nova estrutura que a população retorna à Câmara Municipal, exigindo a assinatura de um requerimento propondo um referendo, conforme previsto no artigo n.º 14 da Constituição Brasileira, na Lei Federal n.º 9.709/1998 e na Lei Municipal n.º 23/2002. Assim, em 15 de junho de 2022, a Câmara Municipal de Ouro Preto, atendendo à demanda da Famop, assinou o requerimento. Ainda segundo as leis, o referendo será convocado após publicação de um decreto legislativo, que será encaminhado à Justiça Eleitoral depois de aprovado em plenário. Após este processo, caberá à própria Justiça Eleitoral abrir e conduzir o referendo.
Para Guido de Mattos, o que se vê, neste momento, é “bastante má vontade do Executivo e um certo ciúme do Legislativo pela iniciativa [do referendo]”. O assessor jurídico da Famop diz que estão se “mobilizando para fazer uma grande frente e trabalharmos pela estatização do serviço”. Para assegurar um processo seguro de reestatização, e não deixar a cidade sem serviço de água e esgoto, foi organizado um grupo de trabalho que está apresentando “uma estrutura provisória para o dia posterior ao referendo. E estamos dimensionando o custeio deste serviço e os impactos na cidade”.
Sobre o referendo, Guido explica que “a Câmara está para fazer uma consulta à Justiça Eleitoral acerca dos prazos, forma, custeio e data a serem observados, pois se trata de algo inédito”. Por ser ano de eleições, ele acredita que o referendo deverá acontecer no primeiro semestre de 2023.
Apesar das dificuldades, Marilda Dionísia acredita que a reestatização da água será conquistada. “Enquanto militante de movimento social, tenho que acreditar na luta, senão estou derrotada por antecipação. Portanto, que vai acontecer, vai! [Mas] não existe vontade política por parte dos poderes instituídos. A mudança, o restabelecimento do sistema público somente ocorrerá pela mobilização social. É isso que vai reverter o processo: mobilização social”.
Guido acredita que, dessa mobilização, pode vir uma “segunda Revolta de Vila Rica”. “Oxalá mostre os caminhos para as demais cidades do absurdo que é privatizar direitos tais como o acesso à água e o transporte público”.
Fragmentação das práticas e retorno ao território
A hegemonia neoliberal foi conquistada por uma guerra de narrativas. Como em todas as guerras, a das narrativas não tardou a reverberar por todos os campos, adaptando e criando termos. Nessa transição, a grande vedete do urbanismo atendia pelo nome de Planejamento Estratégico Urbano, uma simples aplicação de princípios de gestão privada de negócios ao mundo complexo, público e cidadão das cidades. Seus três fundamentos, as best practices, foram largamente estudados e debatidos ao longo da década de 1990 e início do 2º milênio: a cidade vista simultaneamente como empresa, como mercadoria e como promotora de si mesma, o city-marketing. Um modelo replicado nos quatro cantos do mundo, que se esvaiu a partir da avalanche de críticas e metamorfoseou-se em inúmeras outras iniciativas: acupuntura urbana, com seus parklets e ruas compartilhadas (shared spaces); new urbanism, planejando as cidades em escalas menores, afastando-se da monumentalidade das cidades globais; condomínios fechados horizontais e verticais; gentrificação; cidade sustentável; small city; edge city; available city; green-up city; urbanismo ecológico; H2PIA; cidade ao nível dos olhos; cidade como espaço sensual; cidade de pedestres, que retoma a argumentação já feita por Jane Jacobs no início da década de 1960. E, claro, smart city.
Não importa a denominação. No bojo dessa acelerada transformação estavam as subjetividades, que foram sendo reconfiguradas. Muito se diz sobre a transformação tecnológica da sociedade a partir dos anos 1970/80, da sua rapidez e de sua concretização global já na passagem deste milênio. Entretanto, pouco se diz ou se pensa, de como esta transformação foi extremamente violenta. Violência percebida na ruptura de referenciais com a terra, com a cidade, com a cultura e até mesmo com a esfera “infraindividual”. “Todos estão falando de desmaterialização, desenraizamento, desregulamentação, desterritorialização” (SANTOS, 2001, p. 27). Mas e o retorno do território? Não é disso que se trata a “Rebelião em Vila Rica”?
Essa gama de mudanças da face do capitalismo financeiro gerou uma gama de interpretações em inúmeros campos: na Sociologia, na Ciência Política, na Antropologia, na Psicanálise, na Economia do Trabalho, no Urbanismo, na Arquitetura, nos Estudos Literários, na Crítica Cultural. Poder-se-ia dizer que o intermezzo gramsciano trouxe mais confusão do que solidez. Mundo líquido, capitalismo turbinado, capitalismo artista, era do acesso, pós-capitalismo, pós-política, pós-socialismo… O embate aberto por essas interpretações ainda está em busca de um desfecho.
Em última instância, o que era verdade apenas para as cidades globais, passou a reverberar urbe et orbe. Como se diz na área business, as cidades globais transformaram-se em benchmarking. Enquanto se disputava o varejo, o atacado acabou se realizando. Podemos arriscar a dizer que o primeiro se originou em uma ponta das necessidades globais, complementada na outra ponta pelas necessidades locais.
Ao nos referirmos a Cidades Inteligentes, uma questão ficou no ar: como fazer uma cidade para todos, democrática, calcada no direito à cidade, se o uso dos procedimentos da democracia sempre encontrou limites, como nos lembra Bobbio (1987, p. 11), “nos centros de poder tradicionalmente autocráticos, como a empresa ou o aparato burocrático”? E acrescenta: “mais que uma falência, trata-se de um desenvolvimento não existente”. Como estabelecer, então, os parâmetros de exercício do direito à cidade, em um ambiente que cultiva a competição e, por conseguinte, a hostilidade?
Ao finalizar este relato, esperamos ter contribuído em três eixos específicos. No primeiro, o econômico, ajudar a entender como o mercado financeiro global atravessou e capturou as cidades, deitando raízes nos quadrantes mais improváveis do território nacional brasileiro, e de como o mesmo moldou os espaços. No segundo eixo, o político, demonstrar como as decisões políticas dos poderes instituídos estão referenciadas pelo eixo econômico entendido, criando assim, pelo menos, um esboço da economia política dessa construção. Por fim, no eixo social, observar como os atores que sofrem as consequências diretas e indiretas da economia política identificada estabelecem estratégias contra-hegemônicas para garantir e, no limite, provocar algum soerguimento de seus direitos sobre a cidade e, consequentemente, sobre suas próprias vidas.
Este artigo é o resultado parcial do projeto de pesquisa que o autor está desenvolvendo no estágio de pós-doutoramento, desde abril de 2022, junto ao INCT-LabEspaço/UFRJ com financiamento da FAPERJ. O projeto de pesquisa engloba também a cidade de Mariana (MG), que sofre processo semelhante, embora gerando problemas e reações de outra ordem.
Referências
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Notas
1Morozov e Bria (2019) propõem a expansão desse conceito, imiscuindo nele a noção de política e de sociedade, dotando-o de “realidade social”. Contudo, para efeitos analíticos, tomaremos o primeiro sentido como sendo o de Cidade Inteligente, enquanto projeto de cidade que se assenta em uma proposta asséptica.
2Em depoimento à CPI da Câmara Municipal de Ouro Preto, criada em 2021 para investigar o processo de licitação da concessão. Importante dizer que a SAAB, empresa interessada, denunciou o Edital ao Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCE) pelas irregularidades observadas. Ante a resposta insatisfatória do TCE e do fator destacado acima, a SAAB desistiu de participar do processo licitatório (CÂMARA, 2021, p. 27).
3 Projeto de Resolução 359/21: Apuração/Investigação do procedimento licitatório, modalidade Concorrência Pública nº 006/2018, “tendo como fundamentos as denúncias de irregularidades contidas no Procedimento de Investigação Preliminar – PIP nº 010/2021 do Executivo. A PIP nº 010/2021 foi finalizada em fevereiro de 2021 pela Procuradoria Geral do Município, e registrou indícios de irregularidade no procedimento licitatório e possível danos ao erário (CÃMARA, 2021).
4Havia ainda um terceiro, chamado Patrulha da Água, movimento ligado à direita bolsonarista.
5Comitê Sanitário de Defesa Popular de Ouro Preto, Mariana e região; Moradores do bairro Pocinho; Moradores do bairro Antônio Pereira; Federação das Associações de Moradores de Ouro Preto (FAMOP); Associação Comunitária do Morro São Sebastião (ACOMOSS); Associação de Moradores da Vila Aparecida (UNIVILA); Associação de Moradores do Saramenha, Bairro Tavares, Vila Santa Izabel, Maria Soares; Associação de Moradores do Alto da Cruz (AMAC); Associação de Proteção Ambiental de Ouro Preto (APAOP); Associação de Moradores do Bairro Taquaral (Juventude); Associação Comunitária Padre Faria; Associação de Moradores da Vila Residencial Antônio Pereira (AMVRAP); Associação de Moradores da Bocaina; Associação Comunitária de Moradores do Bairro São Cristóvão; Pro Melhoramentos (AMPBVI); Coletivo de Mulheres do Morro (São Sebastião); Coletivo de Mãos Dadas; Associação dos Docentes da UFOP (ADUFOP); Sindicato dos Trabalhadores Técnico-Administrativo da UFOP (ASSUFOP); Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação – SindUte/Ouro Preto; Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de São Julião; Sindicato dos Servidores e Funcionários Públicos Municipais de Ouro Preto – Sindisfop.