quarta-feira, 31 de agosto de 2022

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Quarta-feira, 31 de agosto de 2022Contragolpe | Mulheres e o bode do aborto

Machismo pode definir o resultado da eleição presidencial.

Cantaram a bola há tempos sobre o papel das mulheres na eleição deste ano. Compondo 53% do eleitorado, elas têm o poder de definir os resultados das urnas em 2022. A primavera feminista no Brasil começou lá pelos anos de 2015, bem antes do #MeToo dos Estados Unidos, que só viria dois anos depois. Desde então, não parou um minuto sequer, ainda que com um governo empenhado em retroceder ao século 19 no que diz respeito aos direitos femininos. Dito isso, é óbvio que o presidente Jair Bolsonaro deu um tiro no pé ao tratar mal a jornalista Vera Magalhães e a senadora Simone Tebet, do MDB, durante o debate presidencial da Band na noite de domingo. A grosseria rendeu manchetes negativas em todos os jornais. Até o sisudo Financial Times mencionou o episódio. O fato é que o mandatário, agora, corre o risco de cair na armadilha que derrubou candidatos de direita de países vizinhos na reta final de eleições presidenciais, observou Andrei Roman, CEO da empresa de pesquisas Atlas Intel. “Tanto José Antonio Kast, nas eleições do Chile em 2021, como Rodolfo Hernandéz, na Colômbia este ano, cometeram erros semelhantes, subestimando o poder das mulheres na eleição”, me disse Roman. Kast, um ultradireitista saudoso de Augusto Pinochet, chegou ao segundo turno da eleição chilena como favorito diante de Gabriel Boric no final do ano passado. As posições conservadoras contra os direitos femininos do candidato, contudo, foram decisivas para sua derrota. Nos debates finais, Boric apontou as políticas ultraconservadoras para as mulheres no programa de seu adversário. O mesmo ocorreu com Hernandéz, na Colômbia, que perdeu pontos preciosos para Gustavo Petro ao desdenhar da lei do feminicídio em seu país e sugerir que as mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos filhos. “Nos dois casos, o voto das mulheres foi o fator decisivo para balançar a dinâmica da campanha a favor do candidato mais progressista”, avaliou Roman. As pesquisas divulgadas no final de semana e na segunda-feira — Atlas Intel, FSB/BTG e Ipec, respectivamente — mostram que a chance de um segundo turno entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula vem crescendo, embora o petista tenha uma vantagem de ao menos 12 pontos porcentuais, segundo agregadores de pesquisas, como o do jornal O Estado de S.Paulo. Se o debate da Band foi o termômetro, em que a temática feminina prevaleceu, é dedutível que ela deve dominar o resto da campanha eleitoral. E que é preciso encarar de frente a discussão sobre o aborto, uma seara sempre evitada por candidatos à Presidência. Só que Bolsonaro já começou a colocar esse bode na sala. Na Band, ele falou sobre sua posição: “[Fazemos] defesa da família, contra o aborto. Nós somos favorável à vida dele, à sua concepção”, afirmou. Eis que o presidente reforçou o conceito de vida sob um olhar fundamentalista. Com a "damarização" do seu governo, a concepção do feto tem ganhado mais relevância que a saúde física e mental da mulher, ainda que essa geração tenha ocorrido sob violência. A cartilha do Ministério da Saúde elaborada em junho que sugere que todo aborto é crime é mais uma tentativa de pesar a mão sobre o assunto. Pior ainda. Um terrorismo que ajuda a reduzir a força do aborto legal, que existe no Brasil desde a primeira metade do século 20. O fato é que 74% dos brasileiros acreditam que o direito ao aborto deve ser mantido nos casos já previstos em lei (estupro, má formação do feto e risco de morte para a mãe) ou ampliado em outras situações críticas à mulher, como mostrou uma pesquisa de março do Instituto Patricia Galvão. O assunto é espinhoso, mas o flerte com o “conto da Aia” bolsonarista precisa ser encarado pelos presidenciáveis nos próximos debates com o público. O Brasil inteiro viu uma juíza propondo a uma criança de 10 anos que segurasse a gestação, como denunciou reportagem do Intercept em junho deste ano. O caso horrorizou mulheres. Muitas, inclusive, que nem sabiam que o aborto é legal em caso de estupro de vulnerável. Pois os presidenciáveis têm na mão uma chance de ouro para desamarrar o país desse retrocesso e falar do assunto com o grupo majoritário que decide esta eleição.

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