terça-feira, 4 de novembro de 2008

BANCOS - A geometria dos cegos e a cupidez dos bancos.

por Mauro Santayana

Desde o famoso ensaio de Diderot, Lettre sur les aveugles, discute-se a percepção que os cegos têm da realidade. O texto de Diderot se divide em duas partes, redigidas com mais de 30 anos de intervalo. O que surpreende o filósofo – que cita, no primeiro texto, cientistas de sua contemporaneidade, como Condillac, Locke e Hume, que estudaram a mente humana – é a experiência dos cegos, narradas por eles mesmos, e a reação dos nascidos cegos, quando passam a ver. Quase sempre, os que vêem pela primeira vez sentem-se em diferente e instantânea cegueira: golpeados pela luz, cores e formas, embora com elas se deslumbrem, não conseguem entender as imagens do mundo.

Diderot cita o caso da senhorita de Salignac, cega de nascimento, que definia a diferença entre o cubo e a pirâmide ao dizer que dentro do cubo cabem seis pirâmides. "Os cegos são geômetras perfeitos" – ela explicava – "porque os geômetras passam a vida quase inteira de olhos fechados". Os cegos naturais, ao perceber e medir as coisas tangíveis com o tato, são também capazes de maior poder de abstração. Por isso, entre os casos citados por Diderot, estava o do professor de matemática Saunderson, que formulava e resolvia as equações mais complexas dentro da própria cabeça, sem grafar um só algarismo.

A senhorita de Salignac deixa, em seu diálogo com o escritor, a frase poética e enigmática: "Je ressemble aus oiseaux, je apprends a chanter dans les ténèbres". Nem todos os cegos aprendem a cantar, e os pássaros, quando não os cegam por maldade, têm vista excelente. Há cegos e cegos.

O New York Times, em editorial, denunciou que os bancos estão usando os recursos que lhes foram entregues pelo Tesouro norte-americano, a fim de comprar bancos sadios, concentrando-se e se tornando ainda mais poderosos. O dinheiro deveria servir para recuperar a economia, mediante os empréstimos e o financiamento das atividades produtivas, a fim de garantir os empregos, evitar a inadimplência, gerar tributos e, enfim, conjurar a recessão. Henry Paulson – cego por conveniência – deveria saber que seus clientes são hoje os contribuintes norte-americanos. Para o Times, eles e o Congresso têm todo o direito a exigir que o dinheiro seja usado em benefício de todo o povo, e não para maior concentração da riqueza. O secretário do Tesouro ainda está com as pupilas do Goldman Sachs, de que foi executivo: não quer enxergar as ruínas do sistema à luz do dia.

A atitude do governo norte-americano, ao entregar tanto dinheiro dos contribuintes aos especuladores, é a de quem joga dinheiro no lixo, conforme a observação de Paul Krugman. No Brasil, estamos correndo os mesmos riscos: a providência do governo em liberar o recolhimento compulsório não levou os bancos a reativarem a economia mas, sim, a continuarem especulando, na compra de dólares e de títulos do Tesouro, aproveitando as altas taxas remuneratórias da Selic. O jornal de Nova York recomenda que o Congresso não autorize novo aporte de dinheiro aos bancos e que o povo saiba o que está ocorrendo. No Brasil, o governo Lula deve manter a firmeza: se os banqueiros não cumprem o seu papel de estimuladores da economia, caberá ao Estado cumpri-lo, mediante as instituições que controla.

Tampouco o candidato Barack Obama não tem olhos de ver o horizonte como ele se desenha. O democrata promete aos eleitores mudar os Estados Unidos – o que é necessário – e mudar o mundo, o que não é de sua alçada. Durante os últimos 200 anos, os Estados Unidos se empenharam em mudar o mundo e trouxeram à História a cultura da violência, do desatamento dos laços familiares, da destruição da natureza, do mito do êxito individual, da competitividade selvagem, da concentração da renda e da destruição da natureza. O mundo deve dispensar a arrogância do candidato e, em sua mutação, os serviços de Mr. Obama.

A grande mudança que a Humanidade espera é a retirada dos norte-americanos para o seu próprio solo. Que seus marines e agentes secretos voltem ao território pátrio, suas empresas deixem de explorar os países produtores de matéria-prima, e as elites usem suas virtudes potenciais para tornar o próprio povo mais livre e sua sociedade mais igualitária, conforme o american dream dos peregrinos. Todos nós queremos que o povo dos Estados Unidos seja muito feliz e se desfaça daqueles que, de geração em geração, lhes conspurcam a História, e lhes ofuscam os olhos com as cores do ilusionismo.
Fonte: Blog do Rodrigo Vianna.

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