terça-feira, 4 de novembro de 2008

LE MONDE E EUA: ESQUERDA REAL CONTRA DIREITA REAL.

Os comentaristas conservadores dos Estados Unidos se comprazem listando as razões pelas quais o candidato republicano não teria, segundo eles, a menor chance de ganhar a eleição presidencial: um presidente em fim de mandato no auge da impopularidade, nove em cada dez americanos descontentes com o estado do país, um Partido Republicano amplamente rejeitado, um Partido Democrata que soube se fazer amar. Atribuem a esses handicapes a derrota de John McCain, se ele perder.

Por Patrick Jarreau, editorialista do jornal francês Le Monde*

O raciocínio deles repousa sobre o postulado de que o país permanece firmemente ancorado no centro-direita. E portanto o candidato republicano devia vencer, sobretudo diante de um adversário, Barak Obama, classificado, conforme seus votos no Congresso, como o mais liberal (ou seja, "à esquerda") dos senadores. Portanto, se McCain for vencido, será por culpa de George Bush e da facção que conduziu o Partido Republicano, particularmente no Congresso.

Igual a Bush, só que melhor?

É verdade que o senador do Arizona foi o preferido dos eleitores republicanos, nas primárias, devido à postura crítica que adotou com freqüência desde 2001 e à vontade de "reformar Washington" que o caracteriza de longa data. Candidato derrotado por Bush nas primárias republicanas de 2000, ele em seguida diferenciou-se do presidente em relação ao campo de prisioneiros de Guantânamo, ao uso de torturas no interrogatório de suspeitos de terrorismo, aos fenomenais cortes de impostos de 2001 e 2003, a recusa em enfrentar o aquecimento global. Porém em todas as demais questões, a começar pela Guerra do Iraque, McCain podia criticar o método, ou a execução, mas concordava quanto ao essencial. Apresentava-se como o homem que teria feito igual a Bush, só que melhor.

A maioria das campanhas eleitorais termina no centro, com as propostas dos candidatos ou partidos se aproximando em muitos aspectos. Desta vez, a evolução foi ao contrário.

Obama apresentava-se como um democrata moderado, capaz de falar bem de Ronald Reagan e desejoso de superar os velhos gabaritos. McCain se afirmava como o republicano atípico que teria sido desde as primárias de 2000, insistindo sobre a distância que o separava de Bush.

Na reta final, opções opostas

Mas na reta final os dois adversários representam escolhas diametralmente opostas, antes de mais nada no plano econômico e social. A crise financeira jogou um papel decisivo na radicalização – ou clarificação – que se produziu.

Do lado de McCain, o alinhamento do candidato com as posições tradicionais de seu partido começou antes da quebra dos estabelecimentos financeiros de Wall Street. A alta do preço do petróleo levou-o a abandonar uma parte de seu compromisso ecológico e tomar posição a favor das perfurações no litoral, que antes condenava. Ele prometeu conservar os cortes de impostos de Bush, quando antes os julgara socialmente iníquos e orçamentariamente irresponsáveis. Ele até agregou a promessa de novos cortes, para empresas e indivíduos que investem na bolsa.

McCain apresentou um projeto, submetido a referendo em seu estado, contra o casamento gay. Reafirmou energicamente sua oposição pura e simples ao aborto e indicou que, como presidente, indicaria juizes da Suprema Corte que partilhem esse ponto de vista. Seu posicionamento mais claro, quanto aos temas que os americanos chamam "culturais", foi a escolha de Sarah Palin, governadora do Alasca, como candidata a vice. Sarah encarna as convicções mais caras à direita republicana: religião, negação do aborto, defesa da posse de armas, aferramento à "América de sempre".

Obama evoca Roosevelt

A evolução de Obama mesmo não sendo tão ampla não foi menos importante. O senador de Illinois tornou-se cada vez mais crítico à "filosofia econômica" republicana – a mesma política reaganiana cujo mérito parecia reconhecer. Condenou a desregulação cega das atividades financeiras, pela qual culpou Bush e McCain. Rejeitou a idéia de que a riqueza que aumenta na cúpula da pirâmide da renda "rega" toda s sociedade, a chamada "política da oferta", que prevaleceu desde os anos 1980.

O candidato democrata endossou desta forma a política tradicional de seu partido, sem apagar o centrismo que fez o sucesso de Bill Clinton mas evocando principalmente a figura de Franklin Roosevelt e a memória da era de prosperidade que se seguiu ao New Deal ('Novo Acordo', política aplicada por Roosevelt ao chegar na Casa Branca em 1933).

Sobre as questões morais, Obama exprimiu-se como um democrata clássico, defensor da legalização do aborto (garantido pela decisão "Roe contra Trade" da Corte Suprema em 1973), a favor das uniões civis mas oposto ao casamento gay, e evitando falar sobre controle de armas.

Caso McCain seja vencido

A gravidade da crise financeira e os primeiros sinais de recessão deixaram à margem os demais temas, em especial a política externa, onde McCain contava fazer valer sua experiência e firmeza diante de um adversário acusado de "ingenuidade". Mas a confrontação que se concentrou na economia, criticando Obama por querer "redistribuir" a riqueza, pôs em cena duas concepções sobre o interesse geral. No momento em que o economista Krugman, espantalho da destruição do consenso americano da "revolução conservadora", foi condecorado com o Prêmio Nobel, foram justamente estes os temas colocados no coração da batalha eleitoral.

Caso McCain seja vencido, ele não terá sido vítima de seus esforços para se distinguir do Partido Republicano, mas, ao contrário, porque se identificou com seu partido, com o núcleo duro de sua doutrina econômica e da política conduzida por Bush e os parlamentares republicanos, majoritários no Congresso em 2004-2006. São vãs as tentativas dos colunistas conservadores para imputar a provável derrota aos erros de seu candidato, todos esses argumentos visando poupar a política republicana propriamente dita. Caso Obama triunfe, não será tanto por ter sabido superar os limites do Partido Democrata, mas porque terá recuperado o espaço do reformismo social, longamente intimidado pela reação reaganiana e agora reabilitado pelas conseqüências desta.
Fonte: Le Monde; intertítulos do Vermelho

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