terça-feira, 22 de dezembro de 2009

CHILE - A "desconcertação" chilena.

A ‘desconcertação’ chilena PDF Imprimir E-mail
Escrito por Carlos Rivera Lugo
19-Dez-2009

Sopram ares de mudança no Chile, ainda que contrariamente ao acontecido recentemente no Uruguai e na Bolívia, pois neste caso é de caráter bem mais regressivo. Após os sufrágios do último domingo, a Concertação de Partidos pela Democracia, uma coalizão de forças sociais-liberais e democratas-cristãs, se depara com o possível final de seu predomínio político de vinte anos à frente do governo chileno. Sua aposta decidida pela continuidade da ordem política e econômica neoliberal legada pela ditadura de Augusto Pinochet finalmente foi esgotando sua unidade interna e poder de mobilização.

A isso se soma um candidato presidencial pouco atrativo, para não dizer medíocre, como o ex-presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle, a quem de nada valeu a altíssima taxa de popularidade que desfruta a atual mandatária Michelle Bachelet, a qual alcança a cifra de quase 80%. Apesar disso, o democrata-cristão Frei só foi capaz de amealhar 29,62% dos votos, contra 44% por parte do candidato da direita, Sebastián Piñera Echenique. Assim, a direita, que já concentra em suas mãos grande parte do poder econômico do país, parece próxima de conquistar também a chefia do governo, em um segundo turno em que custará muito para Frei conseguir os 20 pontos percentuais adicionais que lhe faltam para se impor. "Estamos enfrentando a possibilidade de que a direita ganhe as eleições e devemos nos preparar para isso", advertia pouco tempo antes do pleito o reconhecido jornalista chileno Manuel Cabieses, diretor da revista Ponto Final.

Nenhum candidato da Concertação havia obtido menos de 45% no primeiro turno das eleições anteriores, inclusive o próprio Frei em 1993 alcançou 58% dos votos emitidos. O quadro se complicou também pela divisão sofrida no interior da Concertação, o que levou ao aparecimento de outros dois candidatos presidenciais: o socialista allendista Jorge Arrate e o jovem deputado social-liberal independente Marco Enríquez-Ominami. O segundo obteve surpreendentes 20,13% e o primeiro pouco mais de 6% dos votos. Unido, o voto de centro-esquerda somou pouco mais de 53% do total.

Desse modo, Frei se verá obrigado a negociar com Arrate e Enriquez-Ominami, cujos eleitores, apesar de críticos à Concertação, são imprescindíveis para superar Piñera no segundo turno, dia 17 de janeiro. E se bem é certo que Arrate declarou no mesmo domingo à noite que está inclinado a pedir a seus seguidores que votem em Frei no segundo turno, Enriquez-Ominami já não foi tão claro. Inicialmente, entendeu ser melhor deixar seu eleitorado livre para votar em quem desejasse. "Vocês são responsáveis e saberão o que fazer no segundo turno, que faz duelar dois líderes do passado". Agora, esclareceu: "Meu domicílio é a esquerda progressista e um governo de Sebastian Piñera seria um evidente retrocesso histórico para o Chile", agregou. O voto dos eleitores de Enriquez-Ominami será decisivo para decidir quem leva a vitória, ainda que este tenha advertido que, em caso de triunfo da direita, a única responsável será a própria Concertação, por conta da perda da preferência da maioria do eleitorado.

Bem, agora essa democracia à chilena, maniatada e coxa, cheia de enclaves autoritários, como bem assinala o sociólogo chileno Manuel Garretón, parece também ter se esgotado. E para maior preocupação, em sua atrofia crescente vai deixando um rastro de desencanto entre setores significativos da população, especialmente suas novas gerações, sobretudo, diante das terríveis desigualdades que ainda subsistem no país, não obstante o crescimento econômico dos últimos anos.

Os 20% mais ricos se apropriam de pouco mais de 50% da renda nacional, enquanto os 20% mais pobres ficam com 5%. O Chile está entre os 15 países com pior distribuição de renda no mundo. Este sério déficit democrático é acompanhado pela incapacidade de se reformar o sistema político legado pela ditadura, incluindo a Constituição, a qual propicia o domínio dos grandes blocos políticos, como a Concertação e a direitista Aliança pelo Chile. A atual mandatária qualificou, por exemplo, o sistema eleitoral como "uma camisa de força que consagra um empate artificial e distorce a vontade cidadã".

A desafeição política resultante se reflete no fato de que, dos aproximadamente 12 milhões de chilenos com idade para votar, somente 53% foram às urnas; 8.285.186 se registraram, e destes 6.539.570 (53% dos habilitados) exerceram o voto. Dos eleitores inscritos e obrigados por lei a votar, estima-se que aproximadamente um milhão deixaram de fazê-lo, 200 mil anularam o voto e outros 80 mil depositaram-no em branco. Além do mais, no que alguns especialistas qualificam como "envelhecimento" do perfil eleitoral, somente pouco mais de 7% dos chilenos entre 18 e 30 anos estavam inscritos para votar. Isso constitui uma queda significativa diante dos 35,5% que representava tal setor em 1988, o que se interpretou como outra manifestação da crise de representatividade e legitimação do atual sistema político.

Entretanto, a eleição colocou fim a vinte anos de exclusão de representação comunista no Congresso Nacional. Produto de um pacto eleitoral subscrito pelo Juntos Podemos Mais (coalizão que está integrada no Partido Comunista, junto com a esquerda cristã) com a Concertação, foram eleitos três candidatos comunistas para a Câmara dos Deputados, entre eles Guillermo Teillier e Lautaro Carmona, presidente e secretário geral do PC. Nesse sentido, em troca da citada representação parlamentar, os comunistas contribuíram com um novo avanço à esquerda da Concertação. Em termos gerais, a lista pactuada entre ambos para a Câmara dos Deputados ficou em primeiro com 44,41%, superando desse modo os 43,42% obtidos pela direitsta Coalizão pela Mudança.

Dessa forma, há quem, a partir da esquerda, lamente a "servidão a um projeto alheio", como Cabieses qualificou o apoio que dita esquerda resignadamente segue prestando a uma Concertação em crise "desgastada pela corrupção e um pragmatismo sem princípios". Tudo se reduz a decidir entre mais do mesmo ou algo pior. Está aí o dilema que crescentemente consome a esquerda chilena, em suas diversas manifestações: reduzir-se ao papel de mera isca do atual bloco de poder para habitar suas margens ou constituir-se como opção alternativa para a refundação econômica e política do país, apesar da atual institucionalidade liberal-capitalista, e desta forma fazer frente ao evidente ocaso da Concertação e o esgotamento da ordem política e constitucional atual.

Alguns observadores internacionais quiseram ver na candidatura de Enriquez-Ominami, postulada à margem dos blocos hegemônicos, uma alternativa refrescante que prometia romper com velhos esquemas ideológicos e práticos. Mesmo assim, apesar do significativo impacto midiático e de seus impressionantes resultados eleitorais, Enriquez-Ominami representou uma gama indefinida de forças, partindo de setores da direita neoliberal e atingindo frações de uma esquerda desafeta dos partidos tradicionais – daí derivavam as sérias contradições de seu programa eleitoral e a incerteza acerca do real peso de sua presença futura na nova conjuntura. Agora, porém, no plano imediato tem em suas mãos o destino da balança política que resultará dessa contenda eleitoral.

Carlos Rivera Lugo é professor de filosofia e teoria do Direito e do Estado na Faculdade de Direito Eugenio Maria de Hostos, em Mayagüez, Porto Rico. É também colaborador permanente do semanário porto-riquenho "Claridade".

Texto originalmente publicado na rede Alai de notícias.

Traduzido por Gabriel Brito.

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