sábado, 23 de janeiro de 2010

HAITI - A "invasão" consentida.


A ''invasão'' consentida

Em novembro, tive a oportunidade de visitar Porto Príncipe durante dez dias e o que mais me chamou a atenção não foram os pobres, mas os ricos que vivem no Haiti e costumam passar despercebidos na maioria das crônicas jornalísticas. No imaginário social que esses relatos ajudam a construir, o Haiti é sinônimo de fome e desolação, mas sua característica mais distintiva não é a pobreza, mas a desigualdade, o que deixa entrever que alguns não andam tão mal. De fato, o coeficiente Gini, que mede o grau de concentração do ingresso, é o mais alto de toda a América com 0,66, inclusive acima do Brasil que tem 0,61.

A reportagem é de Fernando Krakowiak e publicada pelo jornal Página/12, 22-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

O primeiro indício sobre esta situação o tive ao ver circulando pelas poeirentas ruas da cidade alguns modelos novos de caminhonetes da Hummer, Ford, Nissan, Toyota e Mitsubishi. No entanto, fiquei mais surpreso quando fui fazer compras. Nas prateleiras de um dos Big Market do bairro PétionVille, encontrei uma ampla variedade de produtos importados que iam do uísque Chivas Brothers proveniente da Escócia até o leite integral longa vida Elle & Vire importado da França, passando pelo Cognac Hennessy da mesma origem, a margarina Marienne da Noruega e o suco Ceres da África Do Sul. Havia uma prateleira só com comida e shampoos para cachorros e gatos e outra com todo tipo de ervas e chás para emagrecer, algo chamativo em um país onde, já antes do terremoto, 23,8 por cento da população padecia má nutrição crônica e 61 por cento das crianças menores de cinco anos sofria anemia. Perto do hotel onde me hospedava, também encontrei uma galeria comercial que não perdia em nada para o Pátio Bullrich e uma casa de venda de ferrolhos de última geração.

Não foi fácil localizar as mansões que demandavam esses bens de luxo e os dispositivos de segurança para preservá-los. Tive que adentrar na montanha para ver as fortalezas “medievais” de pedra, localizadas em Boutelliers e Kenskoff, dois bairros que mal foram afetados pelo sismo. Ali vivem banqueiros, importadores, industriais, os donos das maquias e das empresas de serviços públicos que ganharam as privatizações dos anos 90, porque no Haiti não há muito, mas tudo é privado e está nas mãos de poucos empresários, entre os que se destacam Edouard Baussan, Richard Coles, Gilbert Bigio, Gregory Mevs e Réginald Boulos.

Eles são a cara visível de uma elite que vive com um pé nos Estados Unidos. Não só pelos vínculos comerciais que mantêm com capitais norte-americanas, mas porque passam grande parte de seu tempo na Flórida. Antes que ocorresse a tragédia, Air Caraïbes oferecia quatro vôos diários a Miami, American Airlines três, United Airlines dois e Delta, Spirit, Copa e Air France um cada uma, apesar do turismo estrangeiro praticamente viajar a Porto Príncipe. De fato, para a elite haitiana, o visto norte-americano é mais importante que a água. Por isso não é de estranhar que no meio da tragédia provocada pelo terremoto garantam o desembarque dos marines, que por estes dias controlam a segurança em pontos chave da cidade, como o aeroporto e as ruínas do Palácio Presidencial.

Para eles, não é uma “invasão” porque cada vez que seus negócios estiveram em risco pela recorrente instabilidade política e social repousaram sobre a principal potência continental à espera que pusesse a ordem. Sempre necessitaram das tropas norte-americanas para garantir que nada mudasse. De fato, foram os marines que em fevereiro de 2004 forçaram a renúncia de Jean Bertrand Aristide e o levaram ao exílio quando o então presidente avançou com algumas reformas sociais pondo privilégios em risco. Agora também não estão dispostos a que o terremoto permita analisar e dar de novo. Confiam nos marines para voltar a descansar no cume das montanhas, longe dos pobres e perto dos Estados Unidos.

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