Hiperglobalização
Expansão das transnacionais, transportes facilitados e em especial novos
acordos comerciais ameaçam desencadear outra rodada de ataques a
direitos sociais
Christophe Ventura
Christophe Ventura
O comércio internacional, que representava
9% do PIB mundial em 1870, 16% em 1914, 5,5% em 1939 e cerca de 15% nos
anos 1970, agora equivale a 33% [4].
Mesmo afetado pela crise financeira de 2008
e suas repercussões na redução do consumo, principalmente nos Estados
Unidos, na China e na Europa – o volume do comércio global cresceu 2% em
2012 contra 5,1% em 2011 (2,5% são esperados para 2013). Esse montante
com força inédita na integração comercial mundial, constitui, segundo os
dois pesquisadores, a primeira característica da “Hiperglobalização”.
Neste vasto movimento, novas tendências
estão surgindo. A hiperglobalização não se avalia apenas
quantitativamente pelo aumento do comércio internacional integrado, mas
também qualitativamente. Deste ponto de vista, ela corresponde à uma
mutação profunda e ainda não concluída das formas do sistema de produção
e de comércio em escala mundial que provoca impactos em todos os países
e regiões.
Ao longo dos últimos vinte anos, vivemos a
implementação de um esquema agora já estabilizado. A propriedade das
empresas, de patentes, de marcas, bem como a pesquisa e desenvolvimento
(P&D), concentram-se nos centros da economia-mundo (países da
tríade, essencialmente), a concepção, a montagem e a fabricação de
produtos se realizam nos países (Ásia, América Latina, África, Oriente
Médio) e empresas às quais são submetidas tais funções, bem como a
distribuição, a venda e serviços pós-venda (Magreb ou Índia, por
exemplo) [8].
Assim, as 80 000 multinacionais pesquisadas no mundo [9]
(seguramente dois terços do comércio internacional) são as principais
matrizes da construção desta nova organização da produção. Como explica a
Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), “as empresas
multinacionais dos países desenvolvidos transferem ou submetem uma
parte de seus processos produtivos para países em desevolvimento ou em
transição. Esta fragmentação geográfica da produção opera pelo
intermediário de vários canais como investimento direto estrangeiro
[10], comércio de bens intermediários [vindos de países diferentes] [11]
e da subcontratação de serviços [12]”. Mas acrescentam: “Em temos
simples, o que é pesquisado [em um contexto de redução de taxas
alfandegárias e dos custos de transportes, de informação e de
telecomunicação que permitem uma circulação sem entraves, multiplicada,
cruzada e à grande velocidade da mercadoria], é combinar tecnologia,
inovação e know-how de países desenvolvidos (économies de maison mère)
com os custos reduzidos da mão de obra dos países em desenvolvimento
(economias de fabricação)” [13].
Para a Cepal, assim será possível “identificar três
grandes redes de produção no mundo. A ‘usina Europa’ (com seu centro na
Alemanha), a ‘usina América do Norte’ (com centro nos Estados Unidos) e a
‘usina Ásia’ (com centro no Japão, de maneira tradicional e a China
desde o último período). Estas três ‘usinas’ se caracterizam por uma
taxa elevada de comércio intra regional que se organiza em torno da
produção de bens intermediários” para estes centros.
Segundo estimativas do ministério francês
do Comércio Exterior, a metade do valor das mercadorias exportadas no
mundo é constituida pelas peças e componentes importados. Na França,
essa proporção é de 25%. Nos países em desenvolvimento, ela se situa em
torno de 60%. O iPhone da Apple ou a boneca Barbie são os símbolos desta
mercadoria “Made in the World” (produzida no mundo).
É neste contexto que emergem, desde o início dos anos
2010 e ainda mais desde 2013, as novas formas de acordos de
livre-comércio fora do quadro multilateral da OMC. Trata-se de acordos
ditos “mega-regionais” ou “mega-bilaterais”: Grande mercado
transatlântico [14], Parceria transpacífica [15], Parceria Econômica
Integral Regional (que envolve 10 países da Associação das Nações da
Ásia e do Sudeste – ASEAN – [16]), Acordo de livre comércio União
Européia-Japão (em negociação), Acordo de livre comércio entre a China,
Japão e Coréia do Sul (idem).
A função destes acordos é ao mesmo tempo
política, geopolítica e econômica. Trata-se de organizar, a longo prazo,
a garantia de investimentos e de atividades dos atores financeiros e
econômicos globalizados. Isto, a fim de consolidar e de desenvolver o
valor adicionado da mercadoria no âmbito de espaços transnacionais
constituídos pelas cadeias de produção global nas quais agem e se apoiam
as multinacionais que têm interesses comuns com os atores econômicos
comerciais e financeiros regionais e locais.
Estes acordos de nova geração têm diversas
particularidades. Eles concernem os espaços calcados nas cadeias de
produção. Podem, se necessário, estender as geografias regionais e
desenhar novas fronteiras econômicas, financeiras e comerciais entre
países e blocos de países ou regiões. Recobrem os territórios físicos,
demográficos, políticos e econômicos imensos. Visam harmonizar não
somente as tarifas alfandegárias, mas também – diante dos padrões
jurídicos dos países hegemônicos da Tríade – as barreiras ditas “não
tarifárias” (normas sanitárias e fitosanitárias, condições de acesso aos
mercados públicos, direitos de propriedade intelectual (patentes),
seguridade de investimentos, política da concorrência, etc.).
Estas novas transformações do capitalismo
reforçam as dinâmicas de fusão entre os Estados envolvidos e os
interesses do mercado. Ao fazê-lo, promovem a desconexão entre a
capacidade de intervenção democrática dos povos – a única maneira de
controlar a força do capital – e a força do mercado para submeter nossas
sociedades ao seu domínio destruidor.
N’A Dinâmica do Ocidente (1939), o sociólogo
alemão Norbert Elias destaca: “Como isto se produz em cada sistema ao
equilíbrio instável, submetido a uma tensão concorrencial em rápida
progressão e desprovida de monopólio central, os Estados mais potentes,
que constituem os eixos principais do sistema, exercem pressão uns sobre
os outros, em um movimento de circular sem fim, para expansão e
fortalecimento de sua posição. Assim encontra-se a lógica do mecanismo
da luta pela hegemonia e – internacionalmente ou não – para a criação de
centrais monopolistas se estenderem pelos territórios de uma ordem de
grandeza claramente superior. E se é verdade que se trata, por enquanto,
de uma dominação limitada a alguns continentes, já vemos desenhar-se,
seguindo o transbordamento de interdependências em outras regiões, a
luta pela hegemonia em um sistema englobando toda a terra habitada”
[17].
A hiperglobalização se contituirá uma nova
etapa para a monopolização do mundo pelas potências econômicas,
financeiras e estatais do “mundo ocidental” ? Esta última noção
designará a integração das elites – de onde que elas vêm, do norte ou do
sul – no seio de uma classe superior oligárquica mundializada?
De qualquer forma, a hiperglobalização
constitui o novo quadro de enfrentamento objetivo entre os movimentos
anti-sistêmicos do planeta – enfraquecidos e localizados hoje em dia – e
das forças do capitalismo financeiro.
NOTAS
[1] Arvind Subramanian e Martin Kessler, “The
Hyperglobalization of Trade and Its Future”, Peterson Insitute for
International Economics, Julho 2013. (http://www.iie.com/publications/interstitial.cfm?ResearchID=2443)
[2]
Exceto durante os dois últimos anos. Relatório sobre o comércio mundial
2013. Fatores determinam o porvir do comércio mundial, Organização
Mundial do Comércio (OMC), 18 Julho de 2013. (http://www.wto.org/french/res_f/publications_f/wtr13_f.htm)
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] A respeito deste assunto, ler Christophe Ventura, “Que sont les douaniers devenus…” , Le Monde Diplomatique, Octobre 2013.
[6]
Eles representam 47% das exportações mundiais contra contra 34% em
1980. Para eles os economistas do centro do sistema-mundo representavam
53% contra 66% em 1980.
[7]
Isto representando 24% dos fluxos globais em 2011, contra 8% em 1990.
Os fluxos Norte-Norte representando 36%, contra 56% em 1990.
[8]
A respeito deste assunto, ler Jean-Luc Mélechon, “La Nouvel Ordre
Transnational”. Nesta reflexão, o co-presidente do Partido de Esquerda
(França) precisa: “um novo modelo de empresa (…) se contenta em possuir
patentes, marcas, um talão de cheques e cadastro de clientes. Esta forma
particular de desmaterialização da propriedade nos retorna
imediatamente à importância da questão das patentes e de licenças de
marcas e logos, que constitui o coração das novas formas de poder e de
propriedade capitalista. Inúmeras são as multinacionais que desenvolvem
esta estratégia visando retirar-se ou até desconectar-se totalmente da
produção para o lucro de atividades limitando o risco de investimento:
gestão de marcas, comercialização, distribuição, atividades financeiras”(http://www.jean-luc-melenchon.fr/2013/07/24/du-chaud-et-du-froid-des-hauts-et-du-bas/).
[9]
Arvind Subramanian e Martin Kessler, “The Hyperglobalization os Trade
and Its Future”, Peterson Institute for International Economics, julho
2013.
[10] O estoque de IDE no mundo passou de 10% do PIB mundial nos anos de 1990 à 30% em 2011. Ibid.
[11]
Segundo a OMC, “30% do total do comércio, consistem em reexportações de
bens intermediários, (…). Desde meados dos anos 1990, esta porcentagem
aumentou quase 10 pontos.
[12]
Segundo a OMC, em termos de valor adicionado, “a contribuição de
serviços no comércio total (…) foi quase duas vezes maior que a parte
correspondente medida em termos brutos, passando de 23% à 45% em 2008.
Os serviços contribuem significativamente ao comércio de mercadorias,
seja pelo seu papel de facilitador de transações internacionais, seja
através da sua incorporação no custo de produção total da mercadoria”.
[13] Panorama da inserção internacional da América Latina e do Caribe, Cepal, 2013.
[14] Ler Bernand Cassen, “L’alibi de l’emploi pour un grand marché (transatlantique) de dupes”, Mémoire de Luttes (http://www.medelu.org/L-alibi-de-l-emploi-pour-un-grand).
[15] Ler Christophe Ventura, “Washington se relance dans le nouveau jeu latino-américain”, Mémoire de luttes (http://www.medelu.org/Washington-se-relance-dans-le) e “Le Partenariat transpacifique, nouvel outil de l’hégémonie de Washigton”, Mémoire de luttes (http://www.medelu.org/Le-Partenariat-transpacifique).
[16]
Austrália, Birmânia, Bruneï, Comboja, China, Coréia do Sul, Índia,
Indonésia, Laos, malásia, Nova Zelândia, Filipinas, Singapura, Tailândia
e Vietnã. As negociações lançadas no início de 2013 devem, segundo os
iniciadores, ser concluídas em 2016.
[17] Norbert Elias, La Dynamique de l’Occident, Calmann-Lévy, coleção Agora, Paris, 1977 (tradução do tomo 2 de Uber den Progress der Zivilisation, 1939).
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