William Douglas mudou de ideia
O
autor do texto abaixo, William Douglas, é juiz federal (RJ), mestre em
Direito (UGF), especialista em Políticas Públicas e Governo
(EPPG/UFRJ), professor e escritor. O artigo foi publicado no site Pragmatismo Político.
Roberto
Lyra, Promotor de Justiça, um dos autores do Código Penal de 1940, ao
lado de Alcântara Machado e Nelson Hungria, recomendava aos colegas de
Ministério Público que “antes de se pedir a prisão de alguém deveria se
passar um dia na cadeia”. Gênio, visionário e à frente de seu tempo,
Lyra informava que apenas a experiência viva permite compreender bem uma
situação.
Quem
procurar meus artigos, verá que no início era contra as cotas para
negros, defendendo – com boas razões, eu creio – que seria mais razoável
e menos complicado reservá-las apenas para os oriundos de escolas
públicas. Escrevo hoje para dizer que não penso mais assim. As cotas
para negros também devem existir. E digo mais: a urgência de sua
consolidação e aperfeiçoamento é extraordinária.
Embora
juiz federal, não me valerei de argumentos jurídicos. A Constituição da
República é pródiga em planos de igualdade, de correção de injustiças,
de construção de uma sociedade mais justa. Quem quiser, nela encontrará
todos os fundamentos que precisa.
A
Constituição de 1988 pode ser usada como se queira, mas me parece
evidente que a sua intenção é, de fato, tornar esse país melhor e mais
decente. Desde sempre as leis reservaram privilégios para os abastados.
Não
me valerei de argumentos técnicos nem jurídicos dado que ambos os lados
os têm em boa monta, e o valor pessoal e a competência dos contendores
desse assunto comprova que há gente de bem, capaz, bem intencionada,
honesta e com bons fundamentos dos dois lados da cerca: os que querem as
cotas para negros, e os que as rejeitam.
Por
isso, em texto simples, quero deixar clara minha posição como homem,
cristão, cidadão, juiz, professor, “guru dos concursos” e qualquer outro
adjetivo a que me proponha: as cotas para negros devem ser mantidas e
aperfeiçoadas. E meu melhor argumento para isso é o aquele que me
convenceu a trocar de lado: “passar um dia na cadeia”.
Professor
de técnicas de estudo, há nove anos venho fazendo palestras gratuitas
sobre como passar no vestibular para a EDUCAFRO, pré-vestibular para
negros e carentes.
Mesmo
sendo, por ideologia, contra um pré-vestibular “para negros”, aceitei
convite para aulas como voluntário naquela ONG por entender que isso
seria uma contribuição que poderia ajudar, ou seja, aulas, doação de
livros, incentivo.
Sempre
foi complicado chegar lá e dizer minha antiga opinião contra cotas para
negros, mas fazia minha parte com as aulas e livros. E nessa
convivência fui descobrindo que se ser pobre é um problema, ser pobre e
negro é um problema maior ainda.
Meu
pai foi lavrador até seus 19 anos, minha mãe operária de “chão de
fábrica”, fui pobre quando menino, remediado quando adolescente. Nada
foi fácil, e não cheguei a juiz federal, a 350.000 livros vendidos e a
fazer palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho curto, nem
fácil.
Sei
o que é não ter dinheiro, nem portas, nem espaço. Mas tive heróis que
me abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço outros heróis,
negros, que chegaram longe, como Benedito Gonçalves, Ministro do STJ,
Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço vários heróis, negros, do
Supremo à portaria de meu prédio.
Apenas
não acho que temos que exigir heroísmo de cada menino pobre e negro
desse país. Minha filha, loura e de olhos claros, estuda há três anos
num colégio onde não há um aluno negro sequer, onde há brinquedos,
professores bem remunerados, aulas de tudo; sua similar negra, filha de
minha empregada, e com a mesma idade, entrou na escola esse ano, escola
sem professores, sem carteiras, com banheiro quebrado.
Minha
filha tem psicóloga para ajudar a lidar com a separação dos pais, foi à
Disney, tem aulas de Ballet. A outra, nada, tem um quintal de barro,
viagens mais curtas. A filha da empregada, que ajudo quanto posso,
visitou minha casa e saiu com o sonho de ter seu próprio quarto, coisa
que lhe passou na cabeça quando viu o quarto de minha filha, lindo,
decorado, com armário inundado de roupas de princesa.
Toda
menina é uma princesa, mas há poucas das princesas negras com vestidos
compatíveis, e armários, e escolas compatíveis, nesse país imenso.
A
princesa negra disse para sua mãe que iria orar para Deus pedindo um
quarto só para ela, e eu me incomodei por lembrar que Deus ainda insiste
em que usemos nossas mãos humanas para fazer Sua Justiça.
Sei
que Deus espera que eu, seu filho, ajude nesse assunto. E se não cresse
em Deus como creio, saberia que com ou sem um ser divino nessa
história, esse assunto não está bem resolvido. O assunto demanda de
todos nós uma posição consistente, uma que não se prenda apenas à
teorias e comece a resolver logo os fatos do cotidiano: faltam quartos e
escolas boas para as princesas negras, e também para os príncipes dessa
cor de pele.
Não
que tenha nada contra o bem estar da minha menina: os avós e os pais
dela deram (e dão) muito duro para ela ter isso. Apenas não acho justo
nem honesto que lá na frente, daqui a uma década de desigualdade, ambas
sejam exigidas da mesma forma. Eu direi para minha filha que a sua
similar mais pobre deve ter alguma contrapartida para entrar na
faculdade.
Não
seria igualdade nem honesto tratar as duas da mesma forma só ao
completarem quinze anos, mas sim uma desmesurada e cruel maldade, para
não escolher palavras mais adequadas.
Não
se diga que possamos deixar isso para ser resolvido só no ensino
fundamental e médio. É quase como não fazer nada e dizer que tudo se
resolverá um dia, aos poucos. Já estamos com duzentos anos de espera por
dias mais igualitários.
Os
pobres sempre foram tratados à margem. O caso é urgente: vamos
enfrentar o problema no ensino fundamental, médio, cotas, universidade,
distribuição de renda, tributação mais justa e assim por diante. Não
podemos adiar nada, nem aguardar nem um pouco.
Foi
vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma chance,
sofrendo, brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de tantas
agruras, que fui mudando minha opinião. Não foram argumentos jurídicos,
embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários “dias na cadeia”. Na
cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais, de um lugar
que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as
cotas fazem todo sentido.
Se
alguém discorda das cotas, me perdoe, mas não devem fazê-lo olhando os
livros e teses, ou seus temores. Livros, teses, doutrinas e leis servem a
qualquer coisa, até ao nazismo. Temores apenas toldam a visão serena.
Para
quem é contra, com respeito, recomendo um dia “na cadeia”. Um dia de
palestra para quatro mil pobres, brancos e negros, onde se vê a
esperança tomar forma e precisar de ajuda. Convido todos os que são
contra as cotas a passar conosco, brancos e negros, uma tarde num
cursinho pré-vestibular para quem não tem pão, passagem, escola,
psicólogo, cursinho de inglês, ballet, nem coisa parecida, inclusive
professores de todas as matérias no ensino médio.
Se
você é contra as cotas para negros, eu o respeito. Aliás, também fui
contra por muito tempo. Mas peço uma reflexão nessa semana: na escola,
no bairro, no restaurante, nos lugares que freqüenta, repare quantos
negros existem ao seu lado, em condições de igualdade (não vale
porteiro, motorista, servente ou coisa parecida).
Se
há poucos negros ao seu redor, me perdoe, mas você precisa “passar um
dia na cadeia” antes de firmar uma posição coerente não com as teorias
(elas servem pra tudo), mas com a realidade desse país. Com nossa
realidade urgente.
Nada
me convenceu, amigos, senão a realidade, senão os meninos e meninas
querendo estudar ao invés de qualquer outra coisa, querendo vencer,
querendo uma chance.
Ah,
sim, “os negros vão atrapalhar a universidade, baixar seu nível”,
conheço esse argumento e ele sempre me preocupou, confesso. Mas os
cotistas já mostraram que sua média de notas é maior, e menor a média de
faltas do que as de quem nunca precisou das cotas.
Curiosamente,
negros ricos e não cotistas faltam mais às aulas do que negros pobres
que precisaram das cotas. A explicação é simples: apesar de tudo a menos
por tanto tempo, e talvez por isso, eles se agarram com tanta fé e
garra ao pouco que lhe dão, que suas notas são melhores do que a média
de quem não teve tanta dificuldade para pavimentar seu chão.
Somos todos humanos, e todos frágeis e toscos: apenas precisamos dar chance para todos.
Precisamos confirmar as cotas para negros e para os oriundos da escola pública. Temos
que podemos considerar não apenas os deficientes físicos (o que todo
mundo aceita), mas também os econômicos, e dar a eles uma oportunidade
de igualdade, uma contrapartida para caminharem com seus coirmãos de
raça (humana) e seus concidadãos, de um país que se quer solidário,
igualitário, plural e democrático.
Não
podemos ter tanta paciência para resolver a discriminação racial que
existe na prática: vamos dar saltos ao invés de rastejar em direção a
políticas afirmativas de uma nova realidade.
Se
você não concorda, respeito, mas só se você passar um dia conosco “na
cadeia”. Vendo e sentindo o que você verá e sentirá naquele meio, ou
você sairá concordando conosco, ou ao menos sem tanta convicção contra o
que estamos querendo: igualdade de oportunidades, ou ao menos uma
chance.
Não
para minha filha, ou a sua, elas não precisarão ser heroínas e nós já
conseguimos para elas uma estrada. Queremos um caminho para passar quem
não está tendo chance alguma, ao menos chance honesta. Daqui a alguns
poucos anos, se vierem as cotas, a realidade será outra. Uma melhor. E
queremos você conosco nessa história.
Não
creio que esse mundo seja seguro para minha filha, que tem tudo, se ele
não for ao menos um pouco mais justo para com os filhos dos outros, que
talvez não tenham tido minha sorte.
Talvez
seus filhos tenham tudo, mas tudo não basta se os filhos dos outros não
tiverem alguma coisa. Seja como for, por ideal, egoísmo (de proteger o
mundo onde vão morar nossos filhos), ou por passar alguns dias por ano
“na cadeia” com meninos pobres, negros, amarelos, pardos, brancos, é que
aposto meus olhos azuis dizendo que precisamos das cotas, agora.
E,
claro, financiar os meninos pobres, negros, pardos, amarelos e brancos,
para que estudem e pelo conhecimento mudem sua história, e a do nosso
país comum pois, afinal de contas, moraremos todos naquilo que estamos
construindo.
Então, como diria Roberto Lyra, em uma de suas falas, “O
sol nascerá para todos. Todos dirão – nós – e não – eu. E amarão ao
próximo por amor próprio. Cada um repetirá: possuo o que dei.
Curvemo-nos ante a aurora da verdade dita pela beleza, da justiça
expressa pelo amor.”
Justiça
expressa pelo amor e pela experiência, não pelas teses. As cotas são
justas, honestas, solidárias, necessárias. E, mais que tudo, urgentes.
Ou fique a favor, ou pelo menos visite a cadeia.
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