domingo, 7 de janeiro de 2018

POLÍTICA - Anos de Chumbo.

Do Blog do Mello

A incrível história da brasileira que sequestrou um avião de passageiros com os filhos de 2 e 3 anos para chegar a Cuba e escapar da ditadura no Brasil

 

De BBC Mundo [tradução minha]:
Com apenas 22 anos, a brasileira Marília Guimarães tomou uma decisão arriscada no Ano Novo de 1970: foi para Montevidéu para participar com seus dois filhos do sequestro de um avião cheio de passageiros.

Seu objetivo era desviar a aeronave para Cuba.

Lá pediu asilo ao governo de Fidel Castro para escapar do regime militar que havia sido imposto no Brasil em 1964 por um golpe sangrento que derrubou o primeiro presidente esquerdista desse país, João Goulart.

Marcelo e Eduardo, seus filhos, tinham apenas 2 e 3 anos de idade e acreditavam que estavam em uma viagem para visitar alguns amigos e seu pai.

A realidade era que o pai estava preso e que Marília não tinha planos de retornar no curto prazo.

Mas, como essa jovem mulher se envolveu em um incidente que atravessou o mundo?

Um tempo convulsivo

O golpe de 1964 começou duas décadas de severa repressão militar.

Mas alguns brasileiros começaram a se organizar para se defenderem.

"Chegamos à conclusão de que a única maneira de acabar com a ditadura era através da luta armada", explicou Marília à BBC.

"Devemos lembrar que naquela época, o mundo estava em convulsão: Paris, Londres, América Latina, África ... Eram tempos de libertação".

Marília era uma adolescente quando os militares tomaram o poder com a ajuda dos Estados Unidos.

Mas ela tinha sido uma fervorosa seguidora de Goulart, então, pouco depois de sua queda, ela se juntou a um pequeno grupo de resistência armada determinado a expulsar os militares do governo.

Foi chamado de Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

"No começo, eu me envolvi na logística. Por exemplo, se houvesse um assalto a um banco ou se precisássemos roubar um carro para alguma ação, um camarada e eu fazíamos a missão de reconhecimento, calculávamos quanto tempo demoraria para chegar lá e retornar", recordou.

No final dos anos 60, Marília morava no Rio de Janeiro com o marido, um dos líderes do grupo guerrilheiro.

Marília dividia o tempo entre cuidar das crianças e seu trabalho na escola local, o que em realidade desempenhava uma função dupla.

"A escola era um lugar onde os camaradas se encontravam e imprimiam livros e panfletos, já que servia de fachada".

"Sempre havia muitos pais e estudantes indo e vindo, por isso não levantava suspeitas. Era complicado, mas quando você é jovem, você tem muita energia para suportar".

Presa e interrogada

No início de 1969, a polícia prendeu um dos camaradas e apreendeu uma pequena impressora que o grupo usava.

Os agentes seguiram uma trilha que os levou a Marília, que foi detida para ser interrogada.

Após três dias de interrogatório, a polícia não conseguiu vinculá-la à guerrilha, então a soltaram ... Mas ela já não era mais uma desconhecida para as autoridades.

Então, seu marido foi preso e ela e seus filhos tiveram que fugir.

Mas eles não se atreveram a usar seus próprios passaportes para deixar o país por via aérea, e atravessaram a fronteira com o Uruguai.

O plano era chegar ao aeroporto em Montevidéu, a capital, onde se encontrariam com outros cinco sequestradores.

Um deles era o primeiro marido de Dilma Rousseff, que mais tarde se tornaria a primeira mulher a ser investida como presidente do Brasil.

Em 31 de dezembro, o aeroporto da capital uruguaia estava cheio de viajantes de Ano Novo.

"Eduardo tinha apenas 2 anos e Marcelo, 3. Eles eram muito jovens e estavam correndo pelo terminal, e um dos guardas teve que me ajudar a cuidar deles", lembrou Marília.

O guarda cuidava das crianças enquanto a mãe cuidava da bagagem.

"Foi muito engraçado porque as crianças não paravam de correr".

Até que finalmente era hora de abordar.

"Eu me sentei com as crianças e os outros camaradas se aproximaram dos nossos assentos e lhes dei as armas."

"Eu as levava sob meu vestido, amarradas firmemente à minha cintura com uma alça. Eu era muito magra e naqueles dias se usavam vestidos muito soltos", explicou.

Os pequenos estavam encantados em estar em um avião.

Uma vez no ar, os sequestradores tomaram o comando e disseram à tripulação e aos 60 passageiros que o novo destino era Cuba.

"Os passageiros ficaram muito nervosos no começo porque não sabiam o que aconteceria".

"Mas um dos camaradas tomou o microfone e disse-lhes que iríamos a Cuba para salvar Marcelo e Eduardo e que o fazíamos para denunciar a tortura do ditador".

"Nós dissemos a eles para manter a calma e que ninguém se machucaria, desde que se comportassem bem".

Marília comentou que uma mulher de São Paulo se tornou muito "agressiva" com ela: "Ela me insultou e me disse como eu poderia expor meus filhos a tal perigo".

Uma jornada complicada

Marilia com os dois filhos e um amigo nos anos 1970

Apesar de tomar o controle da aeronave, os guerrilheiros não podiam forçar o piloto a dirigir-se a Cuba imediatamente.

O avião sequestrado era pequeno e não podia transportar o combustível necessário para atravessar a América do Sul e o Caribe até Havana.

O piloto explicou que teria que pousar a cada duas horas para abastecer o avião.

A primeira parada foi Buenos Aires. A notícia do sequestro já estava nas manchetes internacionais e, apesar da relutância das autoridades argentinas, a aeronave foi autorizada a tocar a terra para reabastecer e decolar novamente.

No Chile, eles não tiveram muitos problemas, pois era governado pelo socialista Salvador Allende, que tinha uma opinião mais favorável sobre a guerrilha brasileira.

Mas a próxima parada, Peru, foi mais complicada.

"Naquela manhã, o aeroporto de Lima estava cheio de jornalistas e pessoas que vieram para ver a aeronave, e as autoridades decidiram fechar as instalações e dispersá-las".

"Nós estávamos olhando para eles das janelas. O presidente peruano enviou seu ministro das Relações Exteriores para tentar me convencer a descer com meus filhos, eles me ofereceram asilo político", lembrou Marília.

"O piloto desceu à pista para falar com ele e voltou dizendo que eles me dariam o que eu quisesse, desde que saísse. Eu disse que não:" Não vou me mudar, não deixarei meus companheiros para trás ".

"O que eles queriam era conseguir que eu e meus filhos saíssemos para que eles pudessem invadir o avião".

"Quando o governo peruano viu que eu não aceitaria sua oferta, o exército trouxe seus tanques, cercou a aeronave e a situação tornou-se muito tensa".

Após um impasse, o avião foi autorizado a decolar e sair para o Panamá.

O sequestro estava se tornando uma dor de cabeça política para os países vizinhos da América Latina.

Eles não simpatizavam com a causa dos sequestradores, mas, ao mesmo tempo, não queriam assumir a responsabilidade por um ataque potencialmente desastroso.

Enquanto eles se abasteciam no Panamá, o capitão desceu para falar com as autoridades, que lhe ofereceram uma arma para levá-la a bordo secretamente e usá-la para matar alguns sequestradores, algo que ele recusou.

Embora tivessem problemas com um motor defeituoso, o avião decolou novamente, desta vez, em direção a Cuba.

Quatro dias de viagem


"A tripulação tinha comida e bebida que a companhia aérea havia enviado para eles e para os passageiros. Mas não comemos nem bebemos porque estávamos preocupados de terem colocado algo dentro para nos drogar".

"Eu trouxe latas de leite em pó para as crianças, porque eu sabia que haveria uma escassez em Cuba, então eu também tinha muitas. E água engarrafada também".

Marília cantou para eles, jogou com eles e contou-lhes histórias para mantê-los entretidos.

"Às vezes nós os deixávamos correr pelo corredor para se cansarem".

Quatro dias depois, em 4 de janeiro de 1970, finalmente chegaram a Havana.

Os cubanos não sabiam como reagir e tentaram persuadir Marília e o resto dos guerrilheiros a irem para o México. Mas mais tarde os deixaram ficar.

Marília se instalou na capital, onde as crianças foram para a escola. Seu marido, o comandante guerrilheiro, se encontrou com eles mais tarde.

Somente em novembro de 1990 eles puderam retornar ao Brasil, depois que a democracia foi restaurada.

"As coisas são diferentes hoje. Naquela época, não tivemos outras opções, e se eu estivesse na mesma situação hoje, com meus filhos, sim, eu faria novamente", disse Marília, que agora tem 70 anos e vive no Brasil.

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