Ricardo Kotscho: “É um governo de vingança, de maldade, não tem nada para construir”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o jornalista Ricardo Kotscho, ex-chefe de comunicação no governo Lula, faz um balanço dos primeiros cem dias de governo Bolsonaro. “O tratamento dado à imprensa na ditadura militar não era tão terrível como o que está acontecendo agora. Posso falar porque eu vivi isso: este é o pior momento do Brasil”, diz Kotscho. Confira:
Brasil de Fato: De modo geral, como o senhor avalia a relação do governo Bolsonaro com a imprensa?
Ricardo Kotscho: Eles atacam alguns jornalistas, alguns veículos, e escolhem alguns “amigos” com quem falam sempre. Desde que o Bolsonaro foi eleito, tem canais televisão, como a Record, o SBT e a Bandeirantes, que abrem câmera a hora que ele quiser. Ele fala o que quer, e só levantam a bola para ele. Daí, o presidente se acostumou mal. Não é esse o papel do jornalista.
Ele tem os “inimigos”, que são os repórteres “de verdade” – que, infelizmente, são uma minoria no Brasil. E tem aqueles caras que convivem com o poder, qualquer que seja o poder: querem estar bem na mesa do poder. Hoje [13 de março de 2019] teve um encontro do Bolsonaro com jornalistas, um segundo encontro, mas são caras escolhidos a dedo por ele. É só o pessoal em quem a equipe dele confia.
O que a postura adotada em relação à imprensa diz sobre o próprio governo?
É a filosofia do governo [Bolsonaro].
O governo está permanentemente em guerra.Tem os aliados e os inimigos – isso vale para tudo. O militar foi preparado para a guerra, inclusive esse capitão que é presidente hoje. Você olha para a cara, e ele está sempre acuado, sempre pronto para atirar. Tanto que a campanha dele tinha a “arminha”, e hoje a gente viu no que deu o negócio da arminha [a entrevista foi realizada no dia do massacre de Suzano].
O decreto dele e do Moro para liberar quatro armas por pessoa ainda nem foi aprovado, mas a Folha de S.Paulo publicou uma matéria mostrando que dá para comprar arma como quiser, com um curso mequetrefe. Todo mundo que quer ter arma já tem, e agora eles vão liberar mais.
Esta semana, Bolsonaro atacou uma repórter do Estadão, estimulou um linchamento nas redes sociais. E, na mesma postagem, atacou o pai dela.
O pai dela é o Chico Otávio, um dos grandes repórteres do Brasil, que já fez muitas matérias sobre as milícias no Rio e que vive ameaçado. Anteontem [11 de março], o Estadão fez um editorial rompendo com o Bolsonaro, detonando o Bolsonaro, aí ele ficou bravo e resolveu fazer esse negócio contra a repórter do Estadão – aproveitou e pôs o pai no meio. É tudo nessa base.
É um governo de vingança, de maldade, não tem nada para construir.
Qual a consequência disso a longo prazo?
Tudo que está sendo feito é para destruir os direitos que as pessoas têm, todos os direitos sociais dos últimos anos.
O Brasil deu uma bela melhorada. Se pegar os oito anos do governo FHC e os oito anos do Lula, foram 16 anos praticamente sem grandes crises, e o país cresceu muito no campo social. Estou completando mais de 50 anos de jornalismo, e nós nunca tivemos 16 anos tão bons para a maioria da população. Isso ninguém pode tirar, mas esse governo está aí, não tem nem 100 dias, e está destruindo tudo.
Já começou com o Temer, com a reforma trabalhista, e agora não vai sobrar nada com a reforma da Previdência. Querem vender tudo. Parece que pegaram o programa de governo do Lula, os avanços do governo Lula, e disseram: “Vamos acabar com isso aqui”.
Como você enxerga a postura do porta-voz do governo, o general Otávio Rêgo Barros?
Eu não consigo entender onde acharam aquela figura. Ele fala, fala e aí diz: “Agora, se alguém quiser fazer alguma pergunta…”. Aí, fazem duas ou três perguntas, ele encerra o negócio, vira as costas e fala: “Paz e bem”. Parece um pastor!
É uma mistura de general com pastor. Não dá para entender.
Os problemas de comunicação que o senhor aponta já se verificavam na campanha eleitoral?
Para você ter uma ideia, o Bolsonaro fez toda a campanha sem um assessor de imprensa oficial. Quem era o assessor de imprensa?
Antigamente, todos os candidato tinham um assessor de imprensa. Você sabia com quem tinha que falar. Ele não tinha. Eram ele e os filhos dele lá. Aquilo se transportou para o governo.
Agora, ele se cercou de generais por todos os lados. Tem mais militares hoje no governo do que eu peguei na ditadura militar. Nunca teve tanto militar no governo, nem quando os generais-presidentes mandavam no Brasil. Nunca teve.
O tratamento dado à imprensa na ditadura militar não era tão terrível como o que está acontecendo agora, ou no dia da posse. Foi uma coisa horrorosa. Deixaram sem comer e sem beber.
Nesse sentido, o senhor considera que o governo tem manipulado dados, escondido informações?
Vamos usar a palavra certa: mentir. Ele mente diariamente.
Há um levantamento que mostra que, em 60 dias de governo, ele mentiu 82 vezes. Ele mente como o [Donald] Trump, igualzinho. Ele dá informação errada…
Essa história da menina do Estadão, por exemplo, ele pegou e editou uma fala dela. Ele faz qualquer coisa como fez na campanha. O governo até agora foi o prolongamento da campanha, que foi a mais suja da história do Brasil.
O Sérgio Moro montou todo um esquema para tirar o Lula da eleição e depois acertou para ser ministro. Isso já mostra o caos institucional do país.
Tudo isso estava previsto, ou governo Bolsonaro é pior do que se imaginava?
Vou dizer uma coisa, e posso falar porque eu vivi isso: este é o pior momento do Brasil. Não só para a imprensa, para nós jornalistas, mas para o país.
Mesmo nos piores momentos da ditadura, você tinha líderes de oposição muito fortes, tinha jornalistas de combate, inclusive dentro da grande imprensa. A gente brigava, dentro da grande imprensa, para dizer alguma coisa e passar por cima da censura. A gente não estava acomodado.
Nessa época, eu estava no Estadão e trabalhava como se não existisse censura. A ordem do chefe de reportagem era essa: “Você faz a sua matéria, o outro lá [censor] vem à noite e corta. Não vamos nós cortar antes”. Não tinha auto-censura.
Não tem mais tantos jornalistas com autonomia, combativos. Os jornalistas da nova geração, principalmente de Brasília, são muito chegados no poder. É o que eu chamo de “jornalismo do prato feito”. Isso desde a Lava Jato.
Eles recebem vazamentos, fitas, documentos… é o prato feito! Almoçam e jantam com o poder. Mas tem exceções, é bom lembrar que tem exceções.
E é só pegar a história do rapaz [Bolsonaro] para ver que ia dar nisso. Aquele negócio de fazer arminha, de botar criança no colo e fazer arminha…
A gente, como jornalista, precisa ser equilibrado. Eu nunca acreditei nesse negócio de neutro, imparcial, isso aí não existe. Mas eu sempre achei que tem que ter equilíbrio. Mesmo como assessor de imprensa, nas campanhas do Lula, tinha colega nosso que cantava o jingle no palanque. Eu não cantava porque estava trabalhando, como jornalista.
Eu sei separar as coisas, mas está chegando um ponto em que não dá mais. Eu não tenho mais palavras, palavrões, para dizer o que está acontecendo. É inacreditável. Os jovens não têm ideia da gravidade do momento atual do Brasil. Não sei como vai acabar, mas não vai acabar bem.
Como você analisa os indícios de envolvimento das milícias com o governo federal e a morte da Marielle Franco, no Rio de Janeiro?
Eu escrevi no meu blog, o Balaio do Kotscho, sobre o esquema político protegendo as milícias. No Rio, qualquer repórter principiante sabe disso – quem são, como funciona, todo mundo sabe. O Chico Otávio já fez quinhentas matérias sobre isso. O [ex-ministro de Segurança Pública Raul] Jungmann, que fala, fala e não diz nada, mas deixou escapar [no final do ano] que já tinham mais informações sobre este esquema. Tanto é que chamaram a Polícia Federal para investigar a investigação da polícia carioca.
Ali é tudo mancomunado. A Polícia Militar, a Polícia Civil, a Justiça, o Tribunal de Contas…
O Sérgio Cabral não saiu do nada. Os Bolsonaro sempre foram ligados às milícias. Eu publiquei um estudo feito pelo Instituto Análise, listando 21 fatos que ligam o clã Bolsonaro às milícias. São fatos. Não é opinião, nem nada.
De volta à comunicação, quais eram as diretrizes do relacionamento com a imprensa quando o senhor estava na secretaria de comunicação?
Desde o início e em todos os sentidos, a gente procurou democratizar a informação. Não dava furo [informação exclusiva] para ninguém, não dava privilégio para ninguém. Podia ser um grande repórter da Globo ou um da Rádio Itatiaia, não tinha diferença. Todos eram atendidos.
Na secretaria de imprensa, tinha os setoristas que cobriam o Planalto – eram de 50 a 60 repórteres –, que ficavam lá direto. Incluindo técnicos, o pessoal que organiza as coletivas, o som, eram umas 50 pessoas. E desde o início eu deixei isso claro: tratamento igual para todos.
Eu trabalhava com a porta aberta e todo mundo podia entrar na minha sala. Às vezes, o Lula estava lá conversando e o pessoal entrava e falava com ele também. Era uma relação muito boa.
E como o Lula tratava a questão do presidente como figura pública?
Lembro do preconceito que tinha contra o Lula, por ser torneiro mecânico. O Lula sabia exatamente o papel dele como presidente. Ele se dava ao respeito e respeitava todo mundo. Você não consegue se lembrar de um episódio em que o Lula tenha desrespeitado o papel de presidente da República. Ele tinha noção do papel dele.
Esse rapaz [Bolsonaro] não sabe o que é Presidência da República, Constituição. Ele não sabe nada. Ficou 30 anos na Câmara e nunca fez nada.
Era uma figura folclórica. Ninguém prestava atenção nele a não ser quando ameaçava bater em alguém ou falava aqueles absurdos. Os jornalistas não sabiam? Não sabiam quem era essa figura? Por que saiu do Exército?
É só pegar o prontuário dele. Por que saiu com 33 anos? Por que é que foi preso? E [o problema] não é o fato de ter sido preso, porque tem gente que é preso político. Ele [Bolsonaro] foi preso porque ameaçou jogar bombas nos quartéis, na Cedae [Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro]. É um sujeito perigosíssimo, e entregam um país como o Brasil na mão dele.
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