terça-feira, 4 de junho de 2019

MÍDIA - Da mídia de consenso à de conflito.


Da mídia de consenso à de conflito

Por Frei Betto, no site Correio da Cidadania:

De­finha o in­te­resse por no­tí­cias im­pressas ou te­le­vi­sivas. Pes­quisas re­velam que o pú­blico pre­fere notí­cias on­line.

Nos sé­culos 19 e 20, o modo de pensar da so­ci­e­dade tendia a ser mol­dado pelos grandes meios de comu­ni­cação: mídia im­pressa, rádio e TV. Tudo in­dica que ter­mina aquela era. Trump se elegeu atacando a grande mídia dos EUA. Só a Fox o apoiou. Os prin­ci­pais veí­culos da mídia bri­tâ­nica se opu­seram ao Brexit. Ainda assim a mai­oria dos elei­tores votou a favor dele. Bol­so­naro fez cam­panha pre­si­den­cial quase au­sente da grande mídia. Cri­ticou os prin­ci­pais veí­culos, e ainda assim se elegeu. O que acon­tece de novo?

O novo são as redes di­gi­tais, as novas tec­no­lo­gias ao al­cance da mão. Elas des­locam a no­tícia dos grandes veí­culos para com­pu­ta­dores e smartphones. Têm o mé­rito de de­mo­cra­tizar a in­for­mação, rom­pendo a bar­reira ide­o­ló­gica que evi­tava opi­niões con­trá­rias à ori­en­tação edi­to­rial do veí­culo.

Con­tudo, pul­ve­rizam a no­tícia. O que é man­chete na TV não me­rece des­taque na co­mu­ni­cação interper­so­na­li­zada na in­ternet. O re­ceptor corre o risco de perder ou não ad­quirir cri­té­rios de valoração das no­tí­cias. Pode ser que lhe seja mais im­por­tante ficar ci­ente de que seu co­lega tem nova na­mo­rada do que in­tei­rado do golpe de Es­tado no país vi­zinho ou da nova lei que re­gula o trân­sito em seu bairro.

Essa in­for­mação in­di­vi­du­a­li­zada, em­bora mais cô­moda, prêt-à-porter, tende a evitar o con­tra­di­tório. Cada in­te­res­sado se isola no in­te­rior de sua tribo no What­sapp, no Twitter, no Fa­ce­book, no Instagram, no You­Tube, no Te­le­gram, nos ser­viços de men­sa­gens no Go­ogle e do Pe­ris­cope.

Não há in­te­ração di­a­ló­gica. Não in­te­ressa o que dizem as tribos vi­zi­nhas, po­ten­ciais ini­migas. O que trans­mitem não me­rece cré­dito. A única ver­dade é a que cir­cula na tribo com a qual o in­ter­nauta se iden­ti­fica.

Ainda que essa “ver­dade” seja fake news, men­tira des­la­vada, farsa. Apenas um di­a­leto faz sen­tido para o in­ter­nauta. Des­pro­vido de visão con­jun­tural, ele se agarra ao que pro­pagam seus par­ceiros como quem acolhe orá­culos di­vinos.

Querer mudar-lhe o foco é como se al­guém ten­tasse con­vencer os as­tecas con­tem­po­râ­neos de Cortés de que o sol ha­veria de des­pontar no ho­ri­zonte ainda que eles não des­per­tassem de ma­dru­gada para ce­le­brar os ritos ca­pazes de acendê-lo. Com cer­teza não ou­sa­riam correr o risco de ver o dia inun­dado de es­cu­ridão.

Eis a pri­va­ti­zação da no­tícia. Essa se­le­ti­vi­dade in­di­vi­du­a­li­zada faz com que o in­ter­nauta se en­cerre com a sua tribo na for­ta­leza vir­tual do­tada de agres­sivas armas de de­fesa e ataque. Se a versão emitida pela tribo ini­miga chegar a ele, será ime­di­a­ta­mente re­pe­lida, de­le­tada ou res­pon­dida por uma ba­teria de im­pro­pé­rios e ofensas. É dever de sua tribo dis­se­minar em larga es­cala a única ver­dade admis­sível, ainda que ca­reça de fun­da­mento, como a te­oria do ter­ra­pla­nismo.

Os efeitos dessa ato­mi­zação das co­mu­ni­ca­ções vir­tuais são de­le­té­rios: perda da visão de con­junto; des­cré­dito dos mé­todos ci­en­tí­ficos; in­di­fe­rença ao co­nhe­ci­mento his­to­ri­ca­mente acu­mu­lado; e, sobretudo, total des­prezo por prin­cí­pios éticos. Qual­quer um que se ex­presse em lin­guagem que não coin­cida com a da tribo me­rece ser ata­cado, in­ju­riado, di­fa­mado e ri­di­cu­la­ri­zado.

O que fazer frente a essa nova si­tu­ação? Des­co­nectar-se? Ora, isso seria bancar a tar­ta­ruga que re­colhe a ca­beça para dentro do casco e, assim, se julga in­vi­sível. A saída deve ser ética. O que im­plica to­le­rância e não re­vidar no mesmo tom. Como su­gere Jesus, “não atirar pé­rolas aos porcos” (Ma­teus 7,6). Deixar que cha­furdem na lama sem, no en­tanto, ofendê-los.

A vida é muito curta para que o tempo seja gasto em guerras vir­tuais. Quanto a mim, pre­firo ig­norar ata­ques e atuar pro­po­si­ti­va­mente. So­bre­tudo, não trocar a so­ci­a­bi­li­dade real pela con­fli­tu­o­si­dade virtual. E muito menos li­vros por memes e zaps que nada acres­centam à minha cul­tura e à minha espi­ri­tu­a­li­dade.

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