“Carreaters” comprovam: a elite brasileira não é solidária nem no coronavírus
Por que os ricos do país jamais estão dispostos a fazer sacrifícios, mas exige que os pobres façam?
28 de março de 2020, 14h44
Não há nada que escancare melhor o egoísmo da elite brasileira do que as carreatas de bolsonaristas que estão surgindo país afora para pedir o fim do isolamento imposto pelo coronavírus, a despeito das orientações da Organização Mundial de Saúde. É uma manifestação de patrões, de empresários com um profundo desamor pelo povo, que não se importam a mínima com as mortes que esta pregação insana pode causar, contanto que seu lucro esteja garantido.
Sentados no conforto de seus carrões importados, com o ar condicionado a toda, gente branca e rica conclama o trabalhador para que retorne à labuta, espremidos nos vagões e ônibus do transporte público, enquanto eles mesmos não saem de dentro dos carros. A orientação dos organizadores é justamente essa: não saiam dos veículos. Ué, mas não é só uma “gripezinha”? Deveriam fazer, em vez de carreatas, passeatas. Mas cadê coragem?
Os “carreaters” dizem que “querem trabalhar”. Mas eles trabalham? Essa gente incapaz de liberar a empregada para que fique em casa porque não consegue limpar a própria privada, lavar a própria louça, fazer a própria comida ou cuidar do próprio filho, quer mesmo “voltar a trabalhar”? Ou será que eles querem que VOCÊ volte ao trabalho?
Em Curitiba, na última sexta-feira, tiveram a desfaçatez de declarar coisas como: “Eu preciso trabalhar. Ou morro de fome ou morro pelo vírus!” Deviam pelo menos usar palavras de ordem mais sinceras em vez de fingir estarem preocupados com o Brasil: “volte ao trabalho, quero garantir minha viagem a Miami este ano”; “lugar de escravo não é na quarentena, é no tronco”; “a escolha é sua: coronavírus ou demissão por justa causa”; “fim da quarentena já! Quem vai lavar minha BMW de meio milhão?”
Carreata em Curitiba. Prestem atenção nos carros do povo trabalhador que exige voltar ao trabalho.
27 mil pessoas estão falando sobre isso
A pandemia do coronavírus nos traz muitas perguntas sobre a sociedade em que vivemos. As palavras do papa Francisco, diante de uma praça de São Pedro historicamente vazia, ressoam em minha mente: “Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”.
A elite brasileira parece surda aos apelos do papa e segue em sua avidez descontrolada por lucro. Por que os ricos jamais estão dispostos a dar sua cota de sacrifício em nome da sociedade? Por que, ao contrário, exigem que sejam sempre os pobres a se sacrificarem? O que custa para um empresário destes segurar a onda durante dois meses, até passar a pandemia? Por que prefere cobrar a fatura do trabalhador? Egoísmo, falta de empatia, usura.
Os “carreaters” dizem que “querem trabalhar”. Mas essa gente incapaz de liberar a empregada porque não consegue limpar a própria privada, fazer a própria comida ou cuidar do próprio filho, quer mesmo “voltar a trabalhar”? Ou quer que VOCÊ volte?
Vemos por aí empresários, sem o menor pudor, publicando vídeos nas redes sociais onde defendem a morte de “uns 7 mil” como algo banal, para não “quebrar a economia”. É como se estivessem oferecendo o corpo de inocentes imolados para saciar a fome do deus mercado que tanto idolatram. Não sentem vergonha de nunca, nem uma só vez, pensar no próximo? E ainda se dizem “cristãos”?
Parafraseando a famosa sentença que Nelson Rodrigues, de galhofa, atribuía a Otto Lara Resende (“o mineiro só é solidário no câncer”), podemos dizer, sem medo de errar: a elite brasileira não é solidária nem no coronavírus.
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