segunda-feira, 30 de agosto de 2021

"Uma combinação de fracassos"

 

''Uma combinação de fracassos'': por que 3.6 toneladas de lixo nuclear estão enterradas sob uma popular praia da Califórnia

A usina nuclear de San Onofre fechou anos atrás - mas residentes e especialistas se preocupam com o lixo que foi deixado para trás

 
29/08/2021 14:37

A extinta usina nuclear de San Onofre, próxima de San Clemente, Califórnia (Lenny Ignelzi/AP)

Créditos da foto: A extinta usina nuclear de San Onofre, próxima de San Clemente, Califórnia (Lenny Ignelzi/AP)

 
Mais de dois milhões de visitantes vão todo ano para a praia de San Onofre na Califórnia, um pedaço maravilhoso de costa ao norte de San Diego. A praia é popular entre surfistas, fica perto de uma das maiores bases da marinha dos EUA e de um ponto sagrado para os nativo-americanos. Também apareceu no videoclipe de “Surfin’ USA” dos Beach Boys em 1963.

Mas mesmo com toda a “good vibes” e com os momentos incríveis ao pôr do sol, abaixo da superfície está escondida uma ameaça em potencial: 3.6 toneladas de lixo nuclear de um grupo de reatores nucleares fechados há quase 10 anos atrás. Décadas de impasse político deixaram o lixo encalhado indefinidamente, suscetível a ameaças como a corrosão, terremotos e aumento do nível do mar.

Os reatores de San Onofre estão entre dezenas de reatores nos EUA que estão gradualmente fechando, mas especialistas dizem que são uma ótima representação do futuro incerto da energia nuclear.

“É uma combinação de fracassos, realmente”, disse Gregory Jaczko, que foi presidente da Comissão Reguladora Nuclear dos EUA (NRC), a principal executora federal, entre 2009 e 2012, sobre a situação em San Onofre.

Lixo enterrado

Esse lixo é o subproduto da Estação Geradora Nuclear San Onofre (Songs), três reatores primeiramente pertencentes à concessionária “Southern California Edison (SCE)”.

Reguladores federais já haviam citado a SCE por diversos problemas de segurança, incluindo o vazamento de lixo radioativo e registros falsificados de fiscalizações antifogo. Mas quando um novo gerador começou a vazar uma pequena quantidade de radioatividade em janeiro de 2012, apenas um ano após ter sido substituído, esse se tornou o problema mais sério da SCE. Um relatório subsequente do inspetor geral da NRC descobriu que inspetores federais haviam ignorado bandeiras vermelhas em 2009, e que a SCE havia substituído seus próprios geradores sem aprovação adequada. A SCE tentou consertar o problema, mas decidiu em 2013 fechar a usina de vez.

Ativistas pensaram que tinham conquistado uma vitória quando o reator foi fechado – até saberem que o lixo radioativo que tinham produzido permaneceria no local.

Esse não era para ser o caso. De acordo com a Lei de Política do Lixo Nuclear de 1982, o governo federal tinha que mover o lixo para uma instituição federal centralizada e remota em 1998. Em 2002, George W. Bush aprovou o “Yucca Mountain”, um local cerca de 100 milhas de Las Vegas, como repositório subterrâneo permanente para lixo nuclear. Mas em 2010, a administração Obama descartou esse plano controverso.

Sem um local designado pelo governo para guardar o lixo, a Comissão Costeira da Califórnia em 2015 aprovou a construção de uma instalação em San Onofre para guardá-lo até 2035. Em agosto de 2020, trabalhadores concluíram o longo processo de soterramento, carregando os últimos 73 tonéis de lixo para dentro de um compartimento de concreto.

San Onofre não é o único lugar onde o lixo é deixado encalhado. Enquanto cada vez mais usinas nucleares fecham, comunidades em todo o país estão entaladas com o lixo deixado. Combustível usado está armazenado em 76 lugares onde existem reatores em 34 estados, de acordo com o Departamento de Energia.

Como lidar com esses arsenais está em segundo plano para a NRC, a executora federal, disse Allison Macfarlane, outra ex-presidente da comissão.

“Não era um grande tópico na NRC, infelizmente”, disse Macfarlane. “Na indústria nuclear no geral a infraestrutura do ciclo nuclear não ganha muita atenção. Então nunca chega ao ponto de ‘ah, essa é uma questão muito importante, deveríamos estar fazendo algo sobre’.”

Muitos riscos e pouca supervisão

O lixo está enterrado cerca de 30 metros da linha costeira, ao longo da via expressa I-5, uma das mais utilizadas da nação, e não está longe de um par de falhas geológicas que especialistas afirmam serem capazes de gerar um terremoto de magnitude 7.4.

Outro problema em potencial é a corrosão. Em sua aprovação de 2015, a Comissão Costeira observou que o local poderia causar um sério impacto no meio-ambiente a longo prazo, incluindo no acesso costeiro e na vida marinha. “A [instalação] seria eventualmente exposta a uma enchente costeira e a danos advindos da erosão que estão além da sua capacidade, ou ainda exigiria a substituição ou expansão da blindagem existente da linha costeira da Songs, por proteção”, diz o documento.

Também foram levantadas preocupações sobre a supervisão governamental do local. Logo após o fechamento de San Onofre, a SCE começou a buscar exceções às regras de operação da NRC para usinas nucleares. A concessionária pediu e recebeu permissão para afrouxar as regras in-loco, incluindo aquelas que lidam com os registros, planos de emergência radiológica para reatores, zonas de planejamento de emergência e funcionários in-loco.

San Onofre não é o único reator fechado que recebeu exceções na sua licença de operação. As regulamentações da NRC sempre focaram na operação de reatores e presumiram que, quando um reator fecha, o lixo seria removido rapidamente.

É verdade que o risco de acidentes diminui quando uma usina não está operando, disse David Lochbaum, ex-diretor do projeto de segurança nuclear do “Union of Concerned Scientists”. Mas adaptar regulamentações por meio de exceções reduz a transparência pública, ele argumentou.

“Exceções são acordos de piscadela com a NRC”, ele disse.

“No geral, não é realmente uma ótima prática”, disse o ex-presidente da NRC, Jaczko, sobre as exceções. “Se a NRC está regulando por exceção, significa que tem algo de errado com as regras...ou a NRC não acredita que as regras são eficazes, e realmente não são muito úteis, ou a NRC não está mantendo a linha onde a NRC deveria estar mantendo a linha”, ele disse.

Por um triz

Em 2015, a NRC tentou, sem sucesso, revisar suas regras de desmantelamento e reduzir a necessidade de exceções. Mas os comissários nunca agiram, mesmo com uma auditoria de 2019 do Escritório do Inspetor Geral que questionou se o decreto algum dia veria a luz do dia e que estimou que eliminar as exceções poderia poupar à NRC, à concessionária e aos contribuintes cerca de 19 milhões de dólares por cada reator.

“O problema que você tem aqui é que a NRC simplesmente não está fazendo o seu trabalho de reguladora. Então o que ela fez foi permitir que a indústria basicamente determinasse as condições sob as quais esse material seria armazenado temporariamente no país”, disse o almirante aposentado Len Hering, que serviu mais de 30 anos na marinha dos EUA e que recebeu uma premiação presidencial em 2005 do presidente George W. Bush pelo seu trabalho na liderança da gerência energética federal.

Enquanto isso, em San Onofre, duas situações limítrofes geraram ira em ativistas e moradores locais. Em 2018, trabalhadores encontraram uma peça de equipamento solta em um dos tonéis, causando uma paralisação de 10 dias para garantir que o erro não era considerado uma ameaça ao público. Em um incidente separado, muitos meses depois, um tonel repleto de lixo radioativo ficou entalado quando funcionários o estavam depositando no subsolo e quase caiu cinco metros. O segundo incidente não se tornou público até um denunciante divulgá-lo em um evento comunitário.

Após esses incidentes, a NRC citou que a SCE falhou em garantir a disponibilidade de equipamentos para evitar uma possível queda, e em notificar a NRC na hora oportuna. Em um memorando, um funcionário da NRC disse à SCE que estava “preocupado com uma fraqueza aparente” na gerência de supervisão de estoque. A SCE foi multada em 116.000 dólares, mas obteve permissão para continuar a transportar toneis por um ano.

Outra preocupação é que o CEO da Holtec, a produtora dos toneis, disse em uma reunião comunitária em 2014 que os toneis são difíceis de consertar. “Não é prático consertar um tonel se estiver danificado”, disse Kris Singh.

Singh voltou atrás em relação a essa declaração no último mês de setembro, mas ainda permanecem dúvidas sobre o que San Onofre faria se um tonel realmente aparentasse estar danificado.

De acordo com um plano da Comissão Costeira da Califórnia, aprovado em julho de 2020, a SCE também inspecionará 2 dos 73 toneis enterrados a cada cinco anos, e um tonel de teste a cada dois anos e meio, começando em 2024.

Mas críticos dizem que não estão confiantes de que a SCE se autofiscalizaria tendo em vista o histórico da concessionária. “É uma indústria de autofiscalização”, disse Hering, o almirante aposentado. “E simplesmente não se pode confiar neles.”

Pensando sobre “como os sistemas falharão”

A Holtec não respondeu aos pedidos por comentários nessa história.

Em um email, um porta-voz da NRC se recusou a comentar sobre os incidentes de 2018 em San Onofre, e disse que os possíveis acidentes são significativamente menores do que em um reator em funcionamento.

“A NRC já revisou com rigor essa questão e acredita que o combustível gasto pode ser armazenado com segurança em San Onofre. Não pode ser removido do local pois não há outro local para depósito de lixo de alta periculosidade que seja aprovado por uma autarquia federal, embora estejamos atualmente analisando duas possíveis instalações para armazenamento no oeste do Texas e no Novo México”, disse o porta-voz.

Al Bates, gerente de assuntos regulatórios em San Onofre, disse que havia a possibilidade de que incidentes “feitos pelo homem ou pela mãe natureza” aconteçam em San Onofre. Mas se for o caso, ele disse, teria pouco impacto na segurança pública.

“A questão é que, existe, sim, esse lixo nuclear de alta periculosidade. Mas, sim, as tecnologias que estamos usando são extremamente robustas para qualquer cenário possível”, ele disse.

Ele também argumentou que o processo de exceções deixa o público fora do processo, observando que pedidos são de domínio público e que a SCE adiciona informações sobre desmantelamentos em seu website e por meio de um painel comunitário.

“É um livro aberto”, disse Bates. “Não estamos querendo nos safar com nada. Estamos fazendo o mesmo que outras concessionárias fizeram para ajustar regulamentações acerca da verdadeira natureza do desmantelamento e do fato de que o mesmo é um risco bem menor para a população...com isso, as regulamentações têm que reconhecer isso corretamente.”

“Não temos motivação para esconder nada. Na realidade, se você quiser perder o seu emprego no ramo da energia nuclear, tente esconder alguma coisa – você nunca mais vai trabalhar no ramo novamente”, disse Randall Granaas, engenheiro nuclear sênior em San Onofre.

John Dobken, porta-voz da Songs, também salientou que o lixo está armazenado com segurança, mas disse que o certo a fazer seria tirá-lo de onde está – uma decisão que somente o governo pode tomar.

“É importante saber que existem algumas pessoas que querem contaminar a situação com medo e não deveria ser sobre medo”, ele disse. “Deveria ser sobre fazer a coisa certa, e a coisa certa é reposicionar o combustível gasto de um armazém temporário para, eventualmente, um repositório geológico, e é para isso que estamos trabalhando.”

No entanto, muitos desses problemas em potencial poderiam ter sido evitados, disse Jaczko, se a SCE tivesse considerado outro local para o seu combustível, ao invés de deixá-lo no mesmo local que o retor, ou se tivesse consultado adequadamente a sua comunidade.

“Eu acho que uma melhor solução poderia ter sido alcançada com um pouco mais de trabalho. E isso não foi feito e agora criou uma comunidade muito polarizada que possui fortes preocupações sobre o que está sendo feito e não parece que a estão escutando. E realmente não estão”, ele disse.

É válido considerar como as coisas fracassam, argumentou Rod Ewing, professor de segurança nuclear do centro internacional de segurança e cooperação da Universidade de Stanford, e autor de um relatório de 2021 sobre lixo nuclear gasto que foca na questão de San Onofre.

“O problema com a nossa abordagem de análise de segurança é que gastamos muito tempo provando que as coisas são seguras. Não passamos muito tempo imaginando como os sistemas podem falhar”, ele disse. “E eu acho o último aspecto mais importante.”

*Publicado originalmente em 'The Guardian' | Tradução de Isabela Palhares

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